Bens Jurídicos Penais Difusos e Coletivos

18/01/2019 às 18:10
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Análise dos chamados bens jurídicos penais coletivos em sentido amplo

             A evolução histórica da humanidade fez com que passássemos a procurar bens jurídicos de maior complexidade e abrangência, isto é, não só apenas aqueles pertencentes a um só indivíduo, mas a toda coletividade. Tal anseio é decorrente de maneira direta da evolução dos direitos e garantias fundamentais em ondas, gerações ou dimensões. Adotemos o termo dimensões.

            A primeira dimensão de direitos reconhecidos, em especial durante os séculos XVII, XVIII e XIX, diz respeito às liberdades públicas e aos direitos políticos. Aqueles que limitam o poder do Estado e oferecem participação na vida política entre os quais se inserem o direito de ir e vir, a manifestação de culto, a liberdade de reunião, e o direito de organização partidária.

            A segunda dimensão já passa a englobar direitos da coletividade (direitos socais) que são efetivados com um fazer estatal, como são o caso da saúde, educação, trabalho e lazer.

            A terceira dimensão, que açambarca os chamados direitos de solidariedade ou fraternidade, considera o ser humano a partir de sua inserção em uma coletividade que possui, dentre outras coisas, direito a um meio ambiente sadio e equilibrado.

            Quanto aos direitos da chamada quarta dimensão, os doutrinadores não se posicionam de maneira uníssona. Enquanto alguns afirmam que são direitos decorrentes da evolução da engenharia genética, uma outra corrente aponta que são direitos introduzidos pela globalização política, dentre os quais seriam destaques os direitos à informação, ao pluralismo e à democracia direta.

            Por fim, no que se refere aos direitos de quinta dimensão, também não há um consenso entre os estudiosos. Para alguns, estão adstritos ao progresso da cibernética. Para outros, o direito aqui em pauta seria o direito à paz.

            Portanto, podemos observar que a partir da terceira dimensão dos direitos fundamentais, já se procurou zelar pelos interesses metaindividuais ou supraindividuais, expressões estas que são sinônimas para a maioria.

            Em nosso ordenamento, as definições dos interesses coletivos em sentido amplo são trazidas pelo parágrafo único do art. 81 da Lei nº 8.78/90 (Código de Defesa do Consumidor), de acordo com o qual, interesses ou direitos difusos são os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato; interesses ou direitos coletivos, os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base; e interesses ou direitos individuais homogêneos são tidos como os decorrentes de origem comum.

            Reportando-nos ao nosso objeto de estudo, vigora atualmente amplo entendimento no sentido de que não só a proteção do indivíduo, mas de toda sociedade é missão do Direito Penal.

            Para Claus Roxin, a definição de bem jurídico não poder ser limitada a bens jurídicos individuais, ela abrange também bens jurídicos gerais.

            A sociedade progrediu, as relações interpessoais, as relações entre indivíduo e Estado, e até mesmo as relações interestatais se tornaram mais complexas. Daí decorreu o surgimento de novas formas de criminalidade, em especial referentes a interesses difusos, como os crimes ambientais e econômicos. O Direito Penal convencional, então, vai ficando obsoleto para lidar com tais problemáticas. Dessa maneira, a tutela penal dos interesses difusos e coletivos aparece como uma premente necessidade, visando proteger bens de grande monta para a sociedade.

Talvez o mais latente mandado de criminalização relativo aos direitos ora em comento esteja expresso no parágrafo 3º do art. 225, da Constituição Federal, que dispõe que “as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados”, tendo sido regulamentado pela Lei nº 9.605/98.

Nesse mesmo diapasão, ainda pode ser citado o parágrafo 5º, do art. 173 da Lei Maior, que preceitua que: “a lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes da pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-a às punições compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular”.

            Gianpaolo Poggio Smanio propõe a seguinte classificação de bens jurídicos penais:

1) de natureza individual, "são os referentes aos indivíduos, dos quais estes têm disponibilidade, sem afetar os demais indivíduos. São, portanto, bens jurídicos divisíveis em relação ao titular". São exemplos: a vida, a incolumidade física e o patrimônio.

2) de natureza coletiva, "que se referem à coletividade, de forma que os indivíduos não têm disponibilidade sem afetar os demais titulares do bem jurídico. São, dessa forma, indivisíveis em relação aos titulares". Estão compreendidos dentro do interesse público. Como exemplos, temos a proteção à incolumidade pública e à paz pública.

3) de natureza difusa, "que também se referem à sociedade em sua totalidade, de forma que os indivíduos não têm disponibilidade sem afetar a coletividade. São, igualmente, indivisíveis em relação aos titulares". Todavia, trazem uma conflituosidade social que contrapõem diversos grupos dentro da sociedade. São exemplos a tutela pelo meio ambiente, pelas relações de consumo, pela saúde pública, pela economia popular, pela infância e juventude e pelo bem estar dos idosos.

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            A distinção entre os bens jurídico-penais de natureza individual e os de natureza coletiva e difusa é que estes últimos são indivisíveis em relação aos titulares e os indivíduos não têm disponibilidade sem afetar os demais titulares, enquanto os primeiros são divisíveis quanto aos seus titulares e as pessoas têm disponibilidade sem afetar os demais.

No que diz respeito aos bens jurídicos de natureza difusa há uma conflituosidade social que contrapõem os grupos dentro de uma sociedade. Por exemplo, é o que ocorre com a proteção ao meio ambiente e às relações de consumo, questões em que há polos opostos, via de regra, representados pelo embate entre pessoa jurídica de direito privado e população civil na tutela ao meio ambiente, e pela contenda entre fornecedores e consumidores na proteção das relações de consumo. Tal não acontece com os bens jurídicos coletivos em sentido estrito.

Ainda quanto aos interesses difusos, não há um vínculo associativo entre os titulares, mas sim um vínculo fático entre eles, que não são determinados individualmente. Outra característica é a indivisibilidade do bem jurídico, não comportando a partilha entre os titulares, embora pertença ao todo, mas nunca exclusivamente a uma pessoa.

Os bens jurídicos coletivos em sentido estrito decorrem de um consenso coletivo em que existe a unanimidade social pela proteção. O conflito que aqui pode acontecer é entre o Estado, que busca a “persecutio criminis” ao infrator da lei penal, ou seja, ao indivíduo que com sua conduta atinge o bem jurídico penal coletivo.

Para encerramento deste artigo, também servindo como exemplos, na Lei nº. 2889/56, que criminaliza o genocídio, para a ampla maioria dos doutrinadores, o bem jurídico então tutelado seria um bem jurídico coletivo, isto é, a existência de um grupo nacional, racial, étnico ou religioso, embora uma minoria enxergue que o que está em pauta é o resguardo de bens jurídicos individuais, como a vida, a integridade física e a liberdade.

Em relação à Lei nº 9.434/97, que regulamenta a doação de órgãos no âmbito doméstico, entendo que o diploma tutela bens jurídicos individuais, como a vida e a incolumidade física, ao penalizar as extrações de órgãos em pessoas vivas, em desconformidade com os ditames legais, das quais decorram lesão corporal de natureza grave ou gravíssima ou a morte, e, em sentido amplo, a dignidade da pessoa humana, princípio corolário no nosso sistema. Ademais, acredito que a saúde pública, como bem jurídico de perspectiva coletiva, também seja alcançado pelo referido texto legal.

Concluo que conforme a coletividade evolui e se percebe que os interesses metaindividuais têm mais relevância que interesses unicamente individuais, como são os casos do zelo pela Terra e da preocupação com a paz pública e o bem estar social, aparece como tendência natural de nossa sociedade a busca pela proteção de bens jurídicos penais de cunho coletivo ou difuso, não sendo isto algo esporádico, mas sim que pende a ganhar espaço com o decorrer dos anos.                    

Sobre o autor
Renne Müller Cruz

Delegado de Polícia em São Paulo. Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Especialista em Direito Penal e Processual Penal pelo Complexo Jurídico Damásio de Jesus. Mestre em Direito Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo com a obtenção de Nota Máxima pela Defesa da Dissertação: "O descompasso entre o princípio da intervenção mínima e a Lei das Contravenções Penais".

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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