O direito do trabalho e as novas relações jurídicas decorrentes da economia 4.0

Uma análise do caso Uber

Leia nesta página:

Trata-se da análise das características da economia 4.0 decorrente da quarta revolução industrial e sua ruptura com conceitos tradicionais do direito do trabalho em Portugal, utilizando-se como exemplo o caso da empresa Uber.

1. Introdução

Atualmente vivemos uma época um tanto quanto sui generis. Somente em poucos contextos históricos viu-se um rompimento de paradigmas tão grande quanto o que presenciamos, gerando a necessidade de redesignação de conceitos que já estavam enraizados na sociedade.

Estas modificações que ocorreram na humanidade durante o tempo tiveram como “gatilho” diferentes acontecimentos. Assim, já no século XVIII presenciamos algumas situações que transformaram de vez o modo de pensar e de agir dos cidadãos.

Neste contexto, a revolução americana e a revolução francesa foram um marco para a humanidade no sentido de possibilitar uma alteração na estrutura social, elevando o povo à categoria de sujeitos de direitos e estruturar de uma sociedade onde o Estado deveria fazer prevalecer sua vontade soberana, através de seus representantes eleitos.

Além da alteração do ponto de vista social, vislumbramos também a evolução tecnológica a partir da primeira revolução industrial com origem na Inglaterra. A produção em larga escala, mecanização da indústria, com destaque para a criação da máquina a vapor, influenciaram a alteração das relações de trabalho que, nesta época, pouco se atentavam para a proteção da parte mais vulnerável da relação empregatícia.

Já no final do século XXIX, em decorrência dos avanços decorrentes da revolução industrial, verificamos em diversas regiões do mundo a criação de ferramentas que contribuíram para facilitar a vida em sociedade. Foram desenvolvidos, assim, rádios, automóveis, telefones e televisores.

 A partir desta época, os avanços tecnológicos e as alterações nos contextos sociais foram ocorrendo cada vez mais rapidamente, inclusive com grande influência das duas guerras mundiais, que desafiaram o homem a desenvolver máquinas cada vez mais modernas para derrotar seus inimigos de batalha.

Assim, em meados do século XX iniciou-se a terceira revolução industrial, sendo esta, particularmente, de extrema importância, por romper barreiras nunca antes imaginadas. Caracteriza esta fase a modernização dos inventos realizados nas duas revoluções anteriores, mas principalmente, e como fator diferencial, a alteração das formas de produção.

Um dos principais motes desta revolução foi a produção a nível mundial. A globalização uniu países que nunca tiveram interesses comuns, e com auxílio de grandes pensadores foi possível alterar o modo de produzir bens de consumo, pois cada país poderia fornecer seus melhores “instrumentos” para produção de um bem remotamente. Assim, um automóvel poderia conter peças com origem em diversos países diferentes.

Contudo, a mudança que realmente alterou as estruturas do mundo como o conhecemos, cuja origem remonta a meados dos anos 70, foi o desenvolvimento e a popularização da internet. A partir da era digital, e com destaque para o início dos anos 90, passamos a ver o mundo em outra perspectiva.

Desta forma, o que a globalização havia aproximado a internet uniu de vez. Tanto os americanos quanto os japoneses passaram a ser nossos vizinhos. Nunca foi tão fácil manter contato com pessoas e até mesmo o idioma deixou de ser uma barreira. Bens e serviços passaram a ser adquiridos dentro de casa, ao clique de um mouse.

Com o avanço desta tecnologia que surge, nos dias atuais, a quarta revolução industrial, que caracteriza a economia 4.0. Devemos destacar que este processo se verifica, principalmente, pela decorrência natural da evolução da engenharia (com destaque para robótica) e da própria aplicação da internet.[1]

Uma das características da economia 4.0 que será o objeto do presente trabalho refere-se à alteração da clássica conceituação de uma relação de emprego[2]. Assim, como será desenvolvido, as figuras do empregador e do empregado não são facilmente verificáveis.

Utilizando-se de metáfora, na relação jurídica entre indivíduos ainda temos o preto e o branco, contudo a área cinzenta entre essas cores aumentou de forma exponencial, e a configuração, ou não, de uma relação de emprego demanda muito mais de uma atividade interpretativa que apenas uma subsunção aos preceitos legais.[3]

Portanto, sem mais delongas, cumpre-nos nas próximas páginas tratar da economia 4.0 decorrente desta quarta revolução industrial, da sua ruptura com conceitos tradicionais do direito do trabalho e, como caso concreto, trataremos das decorrências jurídicas desta nova economia através do aplicativo Uber.

2. Da nova economia

Conforme destacado, vivenciamos uma época diferenciada na medida em que conceitos como empregador, empregado, e mesmo trabalho precisam ser adaptados às novas configurações tecnológicas que surgiram com o nobre intuito de aquecer a economia mediante a criação de novos postos de trabalho que nunca poderiam ter sido imaginados há recentes quinze anos atrás.

Neste sentido, a professora Teresa Moreira bem retrata este ingresso da tecnologia no ambiente laboral em seu livro Estudo do Direito do Trabalho, conforme fragmento abaixo:

“Nos últimos anos, o impacto das NTIC na sociedade tem sido notável e incidiu, com uma velocidade vertiginosa e com efeitos sinergéticos incalculáveis, não só no modo de viver, de pensar e de agir das pessoas, como também no mundo do trabalho, transformando em profundidade a estrutura empresarial, revolucionando todo o processo de produção, a programação e a organização da atividade do trabalho, assim como a própria profissionalidade e as condições de vida materiais e morais dos trabalhadores e, consequentemente, a própria configuração da relação de trabalho. E a centralidade da informação e da comunicação constitui uma das características da sociedade atual, sendo nesta sociedade informacional que a empresa dos nossos dias necessariamente se coloca e movimenta.”[4]

Portanto, em meados de 2009, por decorrência do avanço da internet, em conjunto com a praticidade dos smartphones, surgiram empresas que implementaram novos tipos de negócios que se assemelham pelo fato de realizar a comunhão, em tempo real, de pessoas que necessitam de determinado serviço e outras dispostas a fornecê-lo. Estamos tratando da economia colaborativa e da economia sob demanda.[5]

Os citados conceitos são próximos, contudo a sharing economy tem por objetivo o encontro de sujeitos que têm por objetivo compartilhar determinados bens e despesas, tais como a aplicação (app) de carona denominada BlaBlaCar. Visam, portanto, a eficiência na utilização dos bens. Já a on-demand economy representa serviços que têm por intuito a facilitação da interação entre o utilizador (cliente) e o prestador de serviço, para tanto propiciam a união desses sujeitos através de app específica desenvolvida para este fim.

Trataremos neste trabalho apenas da economia sob demanda, mais especificamente sobre a globalmente conhecida Uber, que propicia a união entre o condutor e o cliente, de forma que este possa ser transportado de determinada localidade para outra, tudo mediante a informação das respectivas coordenadas de GPS através da app da empresa.

3. Das características da Uber

A par das consequências muito noticiadas referentes à concorrência com outros players mais tradicionais do mercado, uma vez que referidas empresas baseadas na economia 4.0 conseguem oferecer ao usuário final um preço bastante inferior pelos serviços prestados, especialmente em decorrência do volume reduzido de investimento financeiro necessário para sua operação, faz-se necessário uma análise da relação jurídica existente entre os condutores e a empresa Uber.

Ao contrário das tradicionais empresas que operam no ramo de transporte, com destaque para as tradicionais empresas de taxi, a Uber não é proprietária dos automóveis utilizados pelos condutores, tampouco custeia as despesas decorrentes da atividade de transporte, tais como combustível, postagens, manutenção e seguro dos veículos.[6]

De qualquer forma, não podemos negar que a Uber revolucionou a forma como as pessoas se locomovem, proporcionando demasiada comodidade para o usuário, já que este passa a ter a sua disposição um “motorista” em qualquer localidade e horário, a preços reduzidos.

Do outro lado, também os condutores se beneficiam, pois têm a disposição mais uma forma de renda[7], através da remuneração pelos serviços prestados. Este conjunto de interações gera, por via direta, o aquecimento do mercado onde todos saem ganhando.

  Ocorre que, a par dos benefícios gerados para sociedade, e apesar de reconhecermos as vantagens decorrentes da evolução da forma de prestação dos serviços, não entendemos recomendável manter este tipo de trabalho fora do “guarda-chuva” estatal, sob pena de criação privilégios para esta categoria em detrimento de outras.

A elaboração de regulamentos normativos específicos para esta categoria ou mesmo a sua adequação aos preceitos legais vigentes mostra-se necessária. A insegurança jurídica causada pelo silêncio da lei somente aumenta a insatisfação dos agentes que vivem em sociedade.

Por fim, mas não menos importante, acreditamos que esta regulamentação deve ocorrer de forma gradual e ponderada, sempre tomando muito cuidado para não alterar as características básicas da aplicação e, por via direta, desestimular o empreendedorismo.

4. Da controvérsia

Como não poderia ser diferente, com o estabelecimento da Uber no mercado e a consequente popularidade da app, foi possível verificar algumas consequências acarretadas por tipo de serviço, especialmente no âmbito trabalhista.

Como os acontecimentos sociais se alteram em uma velocidade muito superior à regulamentação pelo direito, a Uber funcionou durante algum tempo sem qualquer regulamentação. Bastava que os condutores seguissem as diretrizes da empresa que poderiam operar sem a interveniência de terceiros, na qualidade de agentes autônomos.[8]

Aos poucos, em decorrência de diversos fatores, com destaque para o reduzido rendimento e a sobrecarga de trabalho para os condutores, estes se encontraram em posição de desvantagem em relação aos trabalhadores do setor de transporte que possuíam seus direitos trabalhistas assegurados. Desta forma, começaram a pleitear suas reivindicações judicialmente.

Assim, muito resumidamente, temos a seguinte situação: via de regra os condutores alegam que, na realidade, são empregados da Uber, diante das especificidades deste tipo de serviço prestado e, do outro lado, a Uber argumenta que, na realidade, são os motoristas verdadeiros prestadores de serviço autônomos, já que a empresa se caracteriza como uma empresa de tecnologia (e não de transporte) e somente realiza a mediação entre passageiros e motoristas.

Portanto, trataremos no próximo capítulo de elencar e analisar os principais argumentos trazidos por ambas as partes em processos judiciais e, no capítulo subsequente, chegaremos a uma conclusão.

Vale ressaltar que diante da atualidade do assunto não existe no direito português uma jurisprudência consolidada em relação ao assunto, tampouco encontramos doutrina específica. Desta forma, nossa análise se baseará nas decisões judiciais estrangeiras, nas normas trabalhistas positivadas e, também, nos princípios gerais que regem esta relação jurídica.

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4.1. Dos argumentos

Trataremos neste capítulo da análise sucinta dos argumentos trazidos pelos condutores e pela Uber, referentes à prestação do serviço de condução, de forma a chegarmos a uma conclusão referente à existência, ou não, de relação de trabalho.

4.1.1. Da remuneração pelos serviços prestados

Como não poderia ser diferente, o “calcanhar de Aquiles”, gerador de divergências, está concentrado na remuneração pelos serviços prestados pelos condutores.

Alegam os condutores que se encontram em uma situação de extrema desvantagem em relação à Uber, uma vez que esta empresa calcula isoladamente o valor das “corridas”, não possuindo os motoristas qualquer ingerência no preço, independente do dia ou horário em que prestam serviço.

Adicionalmente, informam que não possuem qualquer margem para negociar o percentual da sua remuneração, já que a Uber retém em torno de 10% a 20% do valor das corridas que, após serem pagas pelos clientes, são transferidas diretamente para conta bancária desta empresa. Vale ressaltar que os rendimentos dos condutores somente são a eles repassados quinzenalmente.

Já a Uber destaca que o modelo de negócio somente possui viabilidade quando o custo para os usuários, referente às viagens realizadas, assim como o percentual de repasse aos motoristas, são previamente calculados por esta empresa. Somente desta forma pode realizar o gerenciamento de suas receitas e, por consequência, promover promoções ou aumentar o preço dos percursos em determinadas situações, como horários de rush, em eventos, etc.

Em conclusão, mostra-se evidente que a Uber possui exclusividade no cálculo do valor da remuneração dos condutores, deixando os condutores em uma situação de subordinação aos seus interesses. Há, portanto, uma adequação ao critério de retribuição conforme constante no artigo 258, inciso 1º do Código do Trabalho.[9]

Entendemos ser compreensível esta imposição do preço pela Uber como forma de viabilizar seu negócio, contudo, partindo da premissa que os motoristas são os indivíduos que estão remunerando esta empresa, acreditamos que se encontram em certa situação de submissão, especialmente em decorrência do reduzido valor de suas remunerações, conforme fragmento da notícia abaixo:

“Fazendo a conta aos 26 dias que trabalhou, por cada uma das 312 horas recebeu 1,41 euros à hora. Brutos, porque grande parte dos motoristas são contratados em regime de recibos verdes e, daquele valor, ainda é preciso subtrair os impostos a pagar. Não há subsídio de férias, de Natal nem de almoço. Não há dias de férias pagos, nem proteção em caso de doença (...).”[10]

Ademais, como os pagamentos são realizados diretamente para conta bancária da Uber e distribuído, posteriormente, aos motoristas quinzenalmente, resta-nos evidente que esta empresa está a atuar de forma similar a um empregador, na medida que referidos pagamentos assemelham-se ao salário, apesar de variável.

Não podemos deixar de ressaltar a política da Uber que restringe ao motorista o recebimento gorjetas diretamente do passageiro, diminuindo ainda mais seus rendimentos.

4.1.2. Do processo de admissão

Em síntese, alega a Uber que qualquer interessado pode tornar-se um parceiro e passar a condição de condutor, ou seja, tratar-se-ia de um negócio aberto, a disposição de todos.

Contudo, após uma análise realista, vê-se que existem critérios para admissão no quadro de condutores da Uber, assemelhando-se, inclusive, a um processo seletivo para contratação de funcionário. Precisam os candidatos, de início, atenderem aos seguintes requisitos:

  1. concordar com o contrato de adesão, que contêm as políticas da Uber;
  2. concordar com o manual de sugestões da Uber, que elenca as “recomendações” da forma atuar;
  3. apresentar determinadas certidões, entra elas a de antecedentes criminais;
  4. possuir um veículo que apresente registo e seguro, sendo que este não pode ter mais de 10 anos; e
  5. em determinadas localidades, faz-se necessário, ainda, a realização de uma entrevista com um funcionário da Uber.

Para já, vê-se que existem critérios para admissão, o que é admirável. Realmente, a Uber precisa passar uma imagem de confiança a seus clientes, somente aceitando motoristas que atendam aos requisitos exigidos para contratação.

Mostra-se, contudo, que ao contrário do exposto por esta empresa, existe uma seleção de parceiros, que devem se amoldar às condicionantes da Uber, assemelhando-se, neste aspecto, à uma relação empregatícia.

4.1.3. Da liberdade na prestação do serviço

Alega a Uber que inexiste relação de emprego uma vez que o condutor possui liberdade para prestação dos seus serviços de transporte sem interferência externa. Assim, podem decidir como e quando preferem atuar, além de poderem escolher o local em que exercem a profissão.

Neste contexto, a escolha da forma de atuar, além dos dias, horário e local de trabalho estariam completamente à discrição do condutor, restando ausente a subordinação do prestador de serviço, necessária para caracterizar a relação de emprego, conforme consta do art. 11, CT, a seguir reproduzido:

“Artigo 11.º: Noção de contrato de trabalho

Contrato de trabalho é aquele pelo qual uma pessoa singular se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua atividade a outra ou outras pessoas, no âmbito de organização e sob a autoridade destas. (grifos nossos)”

Neste mesmo sentido a decisão do sr. Relator Belo Videira abaixo:

“Mas é pela subordinação jurídica que mais se revela a referida caracterização e que o distingue do contrato de prestação de serviços, havendo que considerar um elenco de índices externos em que tal subordinação jurídica se revela: A vinculação a horário de trabalho, a execução da prestação em local definido pelo empregador, a existência de controlo externo do modo da prestação, a obediência a ordens e a sujeição à disciplina da empresa.”[11]

Em contrapartida, alegam os condutores que referida liberdade não reflete a realidade. Na prática devem respeitar as instruções da Uber que, apesar de estarem caracterizadas como “sugestões” em seu manual, caso sejam descumpridas podem acarretar no desligamento do motorista infrator.

Dentre as “sugestões”, destacam-se as seguintes:

  1. aceitar ao menos 80% das viagens que forem solicitadas pelo cliente durante o desempenho da atividade;
  2. realizar ao menos um transporte a cada 180 dias (categoria UberX) ou a cada 30 dias (categoria Uber Black);
  3. manter a cordialidade para com os usuários;
  4. deixar o rádio do veículo desligado ou com música soft em volume baixo; e
  5. respeitar o dress code.

Do exposto, considerando que referidas “sugestões” influenciam diretamente o modo do trabalho do condutor, que deve se adequar ao padrão de qualidade da Uber, e a não observância pode resultar no desligamento do funcionário, parece evidente que estamos diante do equivalente ao poder disciplinar do empregador.

Assim, realmente, pode o condutor escolher os dias e horários em que presta seus serviços, desde que trabalhe, ao menos, em um período de 180 dias (UberX) ou 30 dias (Uber Black).

Também, durante o período ativo (online), deve o condutor aceitar no mínimo 80% das corridas que forem solicitadas, ou seja, há uma vigilância intensa sobre sua atividade, já que a Uber controla suas corridas aceitas e rejeitadas, sendo todo este conjunto de dados utilizados como critério de avaliação.

Em relação ao local de trabalho, está condicionado a atuar somente nos locais onde a Uber possui atividade, com limitação de prestar os serviços dentro do país de registo das atividades.

Ou seja, estamos diante de uma relação que certamente proporciona ao condutor maior liberdade que um trabalhador tradicional que atue no setor de transportes, contudo, não podemos entender legítimo o argumento da Uber no sentido de que os condutores possuem plena liberdade para atuar conforme seus interesses.

4.1.4. Da classificação

Por questão de didática, deixamos por último o critério da classificação do condutor, pois caracteriza uma situação em que vislumbramos concretamente a interferência do poder disciplinar da Uber sob os motoristas.

Conforme já exposto, deve o motorista atender a certos critérios estabelecidos pela Uber para iniciar sua operação e, também, para manter-se no quadro de condutores ativos.

Desta forma, a par do controle exercido diretamente pela Uber, também o usuário pode influir na relação do motorista através de sua qualificação, que pode variar entre zero e cinco estrelas, pelo serviço prestado na corrida.

Assim, o somatório das notas informadas pelos usuários refletirá a classificação do motorista e, como não podia ser diferente, este também compreende um critério de exclusão do motorista dos quadros da Uber, pois não pode possuir qualificação geral inferior ao padrão estabelecido pela Uber em sua localidade, sendo que esta pode variar de 4.5 a 4.7.

Portanto, além de todos os critérios destacados nos itens anteriores, caso o motorista receba uma qualificação inferior a base definida pela Uber no local onde atua, também poderá ser desligado desta empresa.

5. Da conclusão

Por todo exposto, resta cristalino que estamos diante de uma nova categoria de trabalho e critérios tradicionais positivados de classificação de uma relação de emprego devem interpretados conforme as características próprias deste tipo de serviço.

Primeiramente, vale destacar que o negócio desenvolvido pela Uber, apesar de híbrido, mais se assemelha à categoria de serviços de transporte quando comparados com serviços de tecnologia ou intermediação. Isso porque o cliente acessa o app para solicitar uma corrida; quer ser transportado de uma localidade para outra. Obviamente, existe tecnologia na aplicação, contudo a atividade preponderante reflete o transporte de passageiros.

Adicionalmente, a Uber possui relevante influência no modo de prestação dos serviços de seus condutores, apesar de não ser proprietária dos automóveis, nem custear sua manutenção.

Neste contexto, a Uber recruta, impõe regras, vigia e pune seus condutores.

Por outro lado, os condutores realmente têm liberdade, dentro dos parâmetros impostos pela Uber, para trabalhar nos dias e horários que melhor lhes convier.

Desta sorte, parece-me claro que esta relação está mais próxima de uma relação de trabalho, conforme definido pelo artigo 11, CT, apesar da divergência existente em relação a subordinação, que um simples trabalhado autônomo[12]. Contudo a aplicação dos preceitos trabalhistas obviamente não se encaixaria nesta relação.

Precisamos nos conscientizar que, com o advento da economia 4.0, as relações de trabalho precisam ser também 4.0. As novas possibilidades de exercício da profissão por meio da internet tornaram os critérios previstos no artigo 12, CT obsoletos para verificação da presunção da existência de contrato de trabalho.

Desta forma, o condutor não exerce atividade em local previamente determinado pelo empregador, não utiliza os equipamentos da empresa, não observa horários determinados para trabalhar, não recebe quantia certa periodicamente e não desempenha função de direção ou chefia na estrutura da empresa.

Portanto, entendemos ser crucial a regularização do serviço em todos os países em que a Uber possui atividades, já que, atualmente, os motoristas estão sendo tratados como donos do negócio, assumindo os riscos do empreendimento, já que são eles (e não a Uber) que estão nas ruas, utilizando seus próprios automóveis, sujeitos ao ingresso em locais inóspitos, ao pagamento de eventuais multas e postagens, etc.

E mais, como mencionado na introdução deste trabalho, a simples sujeição desta categoria de profissionais às obrigações constantes na legislação trabalhista poderá simplesmente desencorajar o empreendedorismo, seja em função da majoração excessiva dos custos do negócio, ou mesmo a assunção de deveres que não são compatíveis com este tipo de atividade.

Por fim, apesar de referidas profissões decorrentes da economia 4.0 terem surgido recentemente, podemos verificar que existem certas características semelhantes entre elas, facilitando, assim, a elaboração de um conjunto de normas a elas aplicáveis. Assim, no VII Colóquio Sobre Direito do Trabalho, a autora Joana Vasconcelos destaca os seguintes argumentos repetidos pelas partes em procedimentos judiciais:

“(...) os prestadores de serviços on demand irão, designadamente, basear as suas pretensões na alegação de que: - a sua remuneração é periodicamente paga (à semana) pelo dono da aplicação, que cobra directamente aos utilizadores do serviço o preço constante da tabela por si estabelecida e divulgada ao mercado (não tendo os prestadores qualquer papel na fixação de tais valores); - o dono da aplicação controla e avalia o desempenho dos prestadores (com base, desde logo, nas avaliações dos utilizadores da aplicação); - os prestadores de serviços estão sujeitos a um conjunto de regras impostas pelo dono da aplicação, que por tal modo organiza e dirige a respectiva actividade; tais regras versam aspectos tão diversos como os procedimentos a observar no desempenho e nos contactos com os clientes, a imposição de uniforme ou dress code ou a indicação de materiais ou equipamentos vedados; - o dono da aplicação tem prerrogativas disciplinares relativamente aos prestadores, aos quais pode, de novo segundo um conjunto de regras por si estabelecidas, recusar temporária ou definitivamente, o acesso à mesma, em caso de queixas de clientes ou avaliações insatisfatórias, e após um apuramento e apreciação sumário dos factos por aquele. 

Por seu turno, os donos das aplicações ou plataformas online irão seguramente alegar, entre outros, que: - os prestadores não estão obrigados a assegurar um número determinado de horas, por dia, semana ou mês, nem estão sujeitos qualquer horário de trabalho – pelo que trabalham se e quando querem; - os equipamentos e instrumentos de trabalho pertencem aos prestadores de serviços; - estes não estão exclusivamente vinculados à plataforma, podendo aceder ao mercado e prestar a respectiva actividade através de outras, concorrentes.”[13]

Diante de todo exposto, e tendo por base as notícias veiculadas, além dos argumentos característicos de ambas as partes da relação jurídica, entendemos que possuímos condições de elaborar um instrumento normativo visando a regulamentação deste tipo de serviço típico da economia 4.0, a nível global.

[1] Maiores informações sobre a economia 4.0 pode ser obtida através do website <URL: https://www.forbespt.com/economia-4-0/?geo=pt>, consulta em 27/12/2018.

[2] Gerando a necessidade de implementação das diretrizes do trabalho 4.0.

[3] LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes – Direito do Trabalho. Coimbra: Almedina, 5ª ed., 2016, p. 142.

[4] MOREIRA, Teresa Alexandra Coelho – Estudo de Direito do Trabalho, Livro 2. Coimbra: Almedina, 2011, p. 191.

[5] Mais informações disponíveis através do diagrama elaborado pelo Gabinete de Estratégia e Planeamento, com título Economia Colaborativa em Perspectiva, disponível através do website: <URL: http://www.gep.msess.gov.pt/estudos/pdf/ecp.pdf>, consulta em 26/12/2018.

[6] Um interessante comparativo entre os custos para desenvolvimento das atividades de Taxi e Uber pode ser verificado no website: <URL: https://www.jornaldenegocios.pt/empresas/transportes/detalhe/taxi-versus-uber-o-que-dizem-as-duas-leis>, consulta em 27/12/2018.

[7] Vale fazer a referência que grande parte dos motoristas da Uber possuem um segundo emprego, e os rendimentos desta atividade vêm a complementar suas rendas.

[8] Conforme ensinamentos de Liane Zavascki em seu livro ZAVASCKI, Liane Tabarelli e outros – Diálogos Constitucionais de Direito Público e Privado nº 2. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013.

[9] O Código do Trabalho passará a ser denominado, simplesmente, como “CT”.

[10] Esta reportagem foi publicada no portal Observador, sendo acessível no site <URL: https://observador.pt/especiais/excesso-de-horas-precariedade-baixos-salarios-a-vida-dos-motoristas-da-uber/>, consulta em 26/12/2018.

[11] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 29-04-1992 (proc. nº 0076354), relatado pelo Conselheiro Belo Videira [consult. 24/12/2018]. Disponível em WWW: <URL: http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/e6e1f17fa82712ff80257583004e3ddc/fc396931441a54c38025680300010e2a?OpenDocument>.

[12] Esta conclusão parte da interpretação de que na relação entre os motoristas e a empresa Uber estão presentes a prestação de atividade, a retribuição e a subordinação jurídica.

[13] VASCONCELOS, Joana – Problemas de qualificação do contrato de trabalho – VII Colóquio sobre Direito do Trabalho, 2015, p. 7. [Consult. em 26/12/2018]. Disponível na Internet: <URL: https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2015/07/profdrjoanavasconcelos.pdf>.

Sobre o autor
Victor Calegare Largura Queiroz

Advogado especializado em Direito Imobiliário. Graduado em Direito e pós-graduação em Direto Imobiliário pela PUC-Rio. Curso de MBA em Gestão Empresarial pela FGV-Rio. Mestrando pela Universidade do Minho, localizada em Braga-Portugal.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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