Esse estudo é fruto da minha participação no Doutorado em Direito de Tecnologia do Programa Erasmus Mundus sediado em Turim.
O tema proposto é de grande interesse porque criará oportunidades para os operadores do direito, uma vez que somente a aplicação das técnicas de compliance na administração pública não serão suficientes para um combate efetivo aos ilícitos cometidos em detrimento do dinheiro público.
Nos dois últimos anos fala-se muito, principalmente na Europa, sobre a tecnologia “blockchain” como um instrumento inovador para implementação de soluções tecnológicas avançadas na administração pública, que permitam uma gestão descentralizada e compartilhada dos serviços públicos digitais.
Na Europa se está trabalhando e estudando muito sobre esse tema no intuito de verificar a aplicabilidade e as vantagens que a tecnologia “blockchain” pode trazer, com escopo de transformar a administração pública.
Essas novas tecnologias, como a inteligência artificial por exemplo, têm sido instrumentos bastante utilizados pelas empresas com o objetivo de agilizar atendimentos e baixar custos.
Quem de nós não se deparou com um robô no outro lado da linha quando ligamos para resolver algum problema com a internet, por exemplo. Se não se deparou ainda, certamente irá muito em breve ter essa experiência, porque esse tipo de atendimento é o que dominará os mercados.
Todavia, toda essa novidade tecnológica poderia ser utilizada para a melhorar a prestação dos serviços públicos de forma mais abrangente, pois mesmo que em alguns países essas tecnologias têm sido um instrumento colocado a disposição do cidadão através de plataformas estatais digitais, mas algumas áreas não tem sido contempladas.
Mas o que falar do sistema “blockchain”, bem essa tecnologia tem sido utilizada em muitos países europeus, principalmente no que se refere a identidade digital, pagamentos, etc. A aplicação desse sistema nos serviços públicos têm sido amplo, todavia, o que falta ainda é uma legislação detalhada sobre o tema.
Existe um grande debate a nível internacional sobre a utilização da tecnologia “blockchain” nos registros e serviços públicos em geral, pois esses procedimentos poderiam ser utilizados para reorganizar o serviço público digital, baseando-se em critérios técnicos de última geração, gerando serviços muito mais eficientes do que os serviços centralizados tradicionais.
Podemos citar alguns cenários que utilizam esse sistema com sucesso, como no caso da descentralização e automação de todos os arquivos públicos, ou seja, o uso de uma governança algorítmica de registros pode simplificar e racionalizar os fluxos de gestão, criação, transmissão e conservação de dados, no intuito de eliminar intermediários.
Nesse contexto, a atividades administrativas têm sido eficientes e transparentes, reduzindo significativamente os custos operacionais e as despesas estruturais dos países que tem utilizado esse instrumento tecnológico.
O chamado algorítimo “timestamp” fornece uma prova concreta e irrefutável sobre a existência, data de criação, origem, conteúdo, segurança e integridade de quaisquer documentos como contratos, licenças, propriedades, etc, de forma digitalizada e automática, ou seja, sem a intervenção humana. Porém, esse sistema pode demonstrar a existência e a propriedade de um documento, mas sem mostrar seu conteúdo ou informações relativas ao seu proprietário, mas com relevante valor jurídico.
A privacidade e a confiabilidade são garantidos por protocolos criptografados, e a permissão de acesso a esses dados podem ser regulados conforme os objetivos e as necessidades do órgão a que pertencem, respeitando-se as normas daquele setor.
Todavia, é importante salientar que tais dados não podem ser modificados, pois se tornam imutáveis através do sistema “blockchain”. O objetivo é limitar a intervenção humana através de uma governança algorítmica, diminuindo, através da automação, os riscos do cometimento de ilegalidades, alterações voluntárias, corrupção, fraudes da parte dos “insiders” privilegiados, ou seja, daqueles funcionários que tem acesso aqueles dados.
Através desse sistema é possível criar, pois já fora feito em alguns países, um sistema único de identidade digital para os cidadãos e empresas, através do qual, os mesmos possam ter acesso a serviços de “e-government” sem haver a necessidade de revelar informações confidenciais a terceiros, por exemplo.
O sistema “blockchain” permite que a identidade digital de cada empresa ou cidadão possa conectar-se criptograficamente a propriedade de bens, contratos, certificados, licenças, etc, promovendo transações de maneira segura.
Outra grande vantagem que esse sistema tem demonstrado é a possibilidade de gerir os fundos públicos de maneira transparente, ou seja, de forma absolutamente segura e sem a possibilidade de haver algum ocultamento ou alteração voluntária. Logo, o principal objetivo é que a tecnologia “blockchain” possibilita a prevenção do uso ilícito dos recursos públicos, garantindo que os mesmos sejam utilizados somente com determinados escopos, através de sistemas digitais que são monitorados com precisão, melhorando a relação de confiança entre os cidadãos e as instituições públicas.
A nível europeu existe uma expectativa pela estatização dos sistemas com tecnologia “blockchain”, mas existem requisitos técnicos e de governança pública que precisam ser observados, pois sempre surgem problemas de difícil solução na gestão dos serviços públicos, os quais, existem para proteger os cidadãos contra interesses privados ou antidemocráticos. O principal problema que tem sido colocado em pauta para discussão nos países que adotam a tecnologia “blockchain” na administração pública se refere principalmente a legitimidade desses serviços, ou seja, se terão validade civil e jurídica. Portanto, o que salta aos olhos nesse momento é a necessidade de haver um quadro normativo claro em relação a esse tipo de serviço prestado pelo Estado.
A solução que tem sido adotada nesses países sobre a legitimidade diz respeito principalmente a observância, por analogia, de todos os princípios que o legislador estabeleceu em cada país para tutelar o interesse público na gestão de serviços digitais. Significa dizer que para uma legítima aplicação do sistema “blockchain” é necessário garantir segurança jurídica, confiabilidade dos “networks”, responsabilidade dos funcionários, confidenciabilidade das transações, proteção e conservação de dados por um longo período de tempo, mas também a possibilidade de modificação ou cancelamento de dados ou informações conforme a necessidade da administração pública, todavia, no que se refere a este último a dificuldade seria grande, uma vez que o sistema “blockchian” não permite a alteração de dados.
Importante observar ainda, que existe a necessidade de haver maior transparência por parte das instituições públicas, e uma maior participação do cidadão na gestão da coisa pública poderá ser alcançada através dessas novas tecnologias, mas esse mundo dos serviços digitais é ainda muito novo e complexo.
Precisa haver também uma adequada difusão dessas arquiteturas digitais descentralizadas, seja a nível técnico como a nível jurídico, através de princípios inovadores e uma forte governança pública, sabendo-se introduzir e não desconsiderar novas formas de coordenação descentralizadas, ou seja, descentralizar o quanto possível e regulamentar apenas o necessário.
Um exemplo de “blockchain” que está dando certo é o “Trustedchain” utilizado na Europa, que é um sistema que efetua a descentralização dos serviços públicos através de registros criptografados e distribuídos para outros setores.
O que se observa é que existem cada vez mais entes e organizações públicas europeias que estão experimentando a tecnologia “blockchain” sobre alguns setores, todavia, se conclui que cada vez mais é necessário passar a uma fase operacional nova, discutindo-se sobre o aperfeiçoamento das práticas a serem utilizadas e sobre a criação de plataformas únicas que permitam a utilização de vários serviços ao mesmo tempo. Mas existe a ideia difusa de que o sistema “blockchain” possa mudar de forma radical as relações entre os cidadãos e a administração pública em razão de uma lógica descentralizada que permita uma maior proximidade e participação na gestão pública pela sociedade.
Segundo os dados do “Observatório Blockchain 2018”(1) quando se referem a projetos baseados nessa nova tecnologia, demonstram que existe um grande interesse das empresas em experimentarem esse novo instrumento, tais dados afirmam ainda que existe uma melhora concreta na eficiência dos serviços públicos, que acabam por trazer consigo maior transparência, confiabilidade e oportunidades de acesso. (1) (www.eublockchainforum.eu)
Portanto o cenário tem sido bastante favorável, porque a maioria dos países europeus já estão utilizando esse instrumento, bem como, fazendo experimentações sobre vários tipos de plataformas digitais.
Todavia, existem problemas que começam a ser identificados e poderão impedir uma maior utilização do sistema “blockchain” na administração pública se não forem resolvidos rapidamente. Dentre alguns, podemos citar os mais importantes, quais sejam: a necessidade de haver um quadro normativo detalhado sobre a utilização da tecnologia “blockchain”; as dificuldades em se debater sobre a necessidade de haverem orientações claras e precisas a nível governamental com relação a gestão desses novos procedimentos e a lógica que deverá ser utilizada nas relações entre as várias “stakeholders” na organização dos projetos “blockchain” entre empresas, usuários e terceiros.
Existe uma certa necessidade de haver um empenho maior por parte das administrações públicas no sentido de desenvolver, encorajar, e difundir os casos concretos de utilização desse sistema que estão dando certo, bem como, a difusão de novas habilidades nesse setor.
Através de todos esses cenários estão surgindo debates sobre a possibilidade de utilização da “blockchain” em vários âmbitos de atuação, e como exemplo podemos citar o sistema jurídico italiano onde se pretende utilizar essa tecnologia nos registros públicos e nos registros de empresas, trazendo vantagens significativas em termos de transparência, economia de custos, gestão e uma visão mais clara sobre as responsabilidades dos atos administrativos públicos digitais.
Insta salientar ainda, que a simplificação administrativa é um dos principais objetivos desse sistema, e poderá ser alcançada com a utilização de “smarts contracts”, por exemplo, os quais permitem uma automação, tornando a máquina administrativa mais eficiente e rápida, acelerando fases de controle graças a criptografia e a distribuição das informações sobre todos os nós da rede, oferecendo níveis elevados de segurança, confiabilidade e garantia das informações obtidas.
Um exemplo concreto é o registro público automobilístico europeu que tem sido objeto de projetos baseados na tecnologia “blockchain”. É um sistema que coloca a disposição informações certificadas e de infraestrutura para gerir os dados sobre os veículos, desde as taxas automobilísticas até as revisões.
Obviamente que os serviços públicos deverão ser revistos, pois necessitam ser muito mais eficientes, não criando obstáculos aos cidadãos e as empresas, todavia, a chave da questão seria definir claramente quais seriam as operações, ações de controle e de governo corretas, que não criem dificuldades nas atividades privadas e na vida dos cidadãos. Portanto, a questão a ser desvendada seria sobre a governança pública propriamente dita, e não necessariamente sobre a tecnologia utilizada, pois uma má gestão poderá influenciar negativamente as novas plataformas públicas digitais, uma vez que tudo deverá estar baseado “standarts” pré-definidos.
Os temas relacionados com a governança pública são fundamentais para a criação de uma rede operacional que atue como um verdadeiro sistema de cidadania digital e que se comunique de forma transparente com a sociedade.
As áreas de atuação desse sistema são muito amplas e impactam diretamente a vida quotidiana das pessoas físicas e jurídicas, como no caso da conservação e arquivamento de documentos, por exemplo, que geram grandes despesas públicas e necessitam cada vez mais de ideias tecnológicas inovadoras para serem realizadas com eficiência, portanto um projeto “blockchain” nesse sentido poderá trazer grandes vantagens, como a economia de custos e a diminuição de espaços físicos, por exemplo.
Existem cinco grandes fatores que favorecem a aplicação de projetos “blockchain” na administração pública:
1.A confiabilidade e imutabilidade dos registros, pois esse sistema é uma cadeia cronológica de transações e cada transação é registrada de maneira imutável e permanente, e todas as novas transações são unidas de forma cronológica e linear, criando uma cadeia de blocos precisa e inalterável.
2.A transparência, porque o sistema “blockchain” é conceitualmente aberto e transparente, consentindo que todos possam ver, mas garantindo que ninguém possa modificar um dado arquivado e certificado.
3.A certeza no acesso e na inalterabilidade dos dados, mesmo não estando associado a nenhuma autoridade pública ou a um órgão central, representa um fator de aproximação com as expectativas da sociedade.
4.Cria um novo conceito de valores, porque as transações representam uma transferência de valores, ou seja, cada transação entre pessoas, órgãos ou instituições é um “assento de valor” em relação ao tipo de informações que estejam dividindo, e esta transação é autorizada e arquivada através do sistema “blockchain” que opera como uma terceira parte interessada e confiável em relação aos participantes ou autores daquela transação.
5.Através desse sistema cria-se uma escala organizacional de informações e um novo modo de verificação e utilização daquelas informações, atuando através de um controle e fiscalização mais rápidos, eficientes e menos onerosos, em comparação aquelas realizadas através dos departamentos públicos tradicionais, aumentando a confiança dos cidadãos em relação aqueles atos administrativos públicos, mesmo que sejam os mais comuns e quotidianos.
Podemos concluir com esse estudo é que a aplicação da tecnologia “blockchain” traz inúmeras vantagens evidentes, mas deve haver a utilização inteligente desse sistema para que ocorra uma transformação legítima da administração pública, permitindo a criação de serviços transparentes, inclusivos e seguros, aproximando a administração pública da sociedade e não constrangendo o cidadão a sempre ter de cobrar mais rapidez e eficiência.
Todo esse sistema poderá inclusive criar uma administração pública descentralizada, que divida as responsabilidades entre regiões, permitindo uma maior autonomia com relação as realidades locais, mas sempre seguindo as diretrizes impostas pelo governo central e pela legislação pertinente.
A confiabilidade que gera a tecnologia “blockchain” é o fator principal que está levando muitos países europeus a utilizar esse novo instrumento em vários setores públicos.
Pensando no futuro, com certeza essas novas tecnologias criarão nichos de mercado e diversas oportunidades para os operadores do direito, por ser um novo seguimento (público e privado) de atuação e cujas necessidades iminentes - como por exemplo a necessidade de haver uma legislação precisa sobre o tema - não tem sido muito exploradas ainda, mas poderão representar um grande diferencial competitivo para as empresas e principalmente para os advogados que se interessem por essa área de atuação.