A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E O DIREITO PENAL
* Marcelo Murillo de Almeida Passos
A Dignidade da Pessoa Humana.
Escorço histórico.
Como sustentou Luis Recaséns Siches, a dignidade da pessoa humana surgiu primeiro como uma ideia filosófica. Historicamente está ligada à revelação do Evangelho, pois que a filosofia dos povos antigos, como a filosofia grega e a romana, desconhecia a dignidade humana ao defender a legitimidade do instituto da escravidão como um dos sustentáculos da organização política do Estado[1].
A expressão “dignidade da pessoa humana” foi cunhada somente séculos depois do cristianismo. É atribuída à obra intitulada De hominis dignitate oratio (Discurso sobre a Dignidade Humana) escrita em 1480 pelo filósofo neoplatônico do período humanista Giovanni Pico (Mirandola, 1643 – Florença, 1494), que baseada numa doutrina mística da cabala-judaica, defendia que o homem quando filosofava, abandonava uma condição inferior com os seres rastejantes para ascender, à semelhança da escada de Jacó, ao ponto de perfeição, para se dedicar a uma vida angelical em comunhão com o Criador. Aliás, segundo essa mesma doutrina, que foi muito defendida posteriormente pelos doutores da Igreja, o homem foi criado à semelhança de Deus e dotado com a centelha divina – da inteligência – justamente para poder apreciar a grande obra do Criador: a Natureza.
Com efeito, séculos mais tarde, como aperfeiçoamento dessa teoria, no desenvolvimento do racionalismo, Emmanuel Kant substituiu a ideologia de “natureza divina do homem” pela expressão “natureza racional do homem”, baseando-se também na doutrina da “autonomia da vontade do homem”. E, resumiu a dignidade da pessoa humana nas seguintes máximas universais: 1) “todas as coisas têm preço, exceto o homem porque tem dignidade”, porque 2) “o homem é um fim em si mesmo, pois é o substrato para a realização de um valor absoluto”[2].
Esmiuçando a análise do racionalismo kantiano, Robert Spaemann assinala que o homem não tem, propriamente falando, valor, mas dignidade, porque um valor é intercambiável com outro valor e pode entrar em um cálculo comparativo, enquanto que a pessoa não, porque tem dignidade. A dignidade, assim considerada, é a propriedade mercê da qual um ser é excluído de qualquer cálculo por ser ele mesmo a medida do cálculo (Lo Natural y lo Racional, Madrid: Rialp, 1989, pp. 45, 48, 50 e 50)[3].
Mas foi somente a partir da Segunda Grande Guerra após as atrocidades do holocausto nazista e o temor da humanidade contra futuros excessos, que a dignidade da pessoa humana ganhou novos contornos e provocou a sua concreção normativa no ordenamento jurídico dos povos cultos através da Teoria dos Direitos Humanos.
Na relevante obra filosófica As Origens do Totalitarismo, Hannah Arendt (1906 – 1975) escreveu que “o anti-semitismo (não o simples ódio contra os judeus), o imperialismo (não a simples conquista), o totalitarismo (não a simples ditadura) demonstraram um depois do outro, um mais brutalmente que o outro, que a dignidade humana tem necessidade de nova garantia, que se pode encontrar apenas em um novo princípio político, em nova lei sobre a Terra, destinada a valer para toda a humanidade”[4].
E repudiando as concepções puramente utilitaristas que o princípio da dignidade da pessoa humana expurga, Robert Nozick (1938 – 2002) escreveu em Anarquia, estado e utopia, que “a inviolabilidade das pessoas significa exatamente que os indivíduos devem ser respeitados como fins. Ninguém pode impor sacrifícios a um indivíduo em benefício de outros indivíduos, e muito menos o Estado. A ideia fundamental é que existem indivíduos diferentes com vidas separadas e que ninguém pode ser sacrificado em favor de outros. Ninguém, e muito menos o Estado, pode decidir que alguns indivíduos sejam recursos para outros”[5].
Essas concepções filosóficas que consubstanciam o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1.º, III) são plenamente aplicáveis ao Direito Penal, sem nenhuma reserva.
A juridicidade da dignidade da pessoa humana.
Reflexos penais.
Esses conceitos filosóficos, sociológicos, históricos e culturais no estágio atual da evolução da sociedade sobre a pessoa humana podem ser perfeitamente trasladados para o preenchimento do conceito jurídico do que a dignidade da pessoa humana representa, porque como tem sustentado Karl Larenz com apoio em Bockenförde, a Constituição, sobretudo na parte relativa aos direitos fundamentais, serve-se frequentemente de conceitos carecidos de preenchimento, cuja interpretação não encontra um ponto de apoio suficiente nem na redação, nem no sentido linguístico, nem no texto de regulação[6].
A dignidade da pessoa humana não é uma dádiva do Estado ou de quem quer que seja a um indivíduo; por ser ínsita a todo ser humano ninguém pode perdê-la ao curso de sua vida. Diz-se ainda que a dignidade da pessoa humana perdura mesmo após a morte do indivíduo[7].
De acordo com Reinhold Zippelius (Das Bonner Grundgesetz, Kommentar, 3 ed. 1989, anotações marginais 50 e 7 ao § 1), a dignidade fundamenta-se no reconhecimento da sua qualidade de ser humano pelo mero fato de sê-lo.
Isso implica no reconhecimento da superioridade humana frente aos demais seres e coisas e ao mesmo tempo na sua condição de estrita igualdade em relação aos demais seres humanos. Essa dupla projeção de superioridade/igualdade a possui todo ser humano com independência de suas circunstâncias pessoais ou sociais (v.g., ainda que esteja privado da liberdade, seja de condição humilde, careça de instrução, ou ao contrário, que ostente riqueza ou poder), de suas capacidades físicas ou mentais e de sua própria conduta (v.g., esteja impedido ou tenha defeitos psíquicos graves, seja pouco inteligente ou se trate de uma criança ou um lactante).
Na sua projeção jurídica, o respeito à dignidade humana carrega consigo a ideia de legitimação democrática e significa ao mesmo tempo seu reconhecimento como princípio material de justiça, prévio e imanente ao Direito positivo[8].
A Constituição Federal reconhece a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos jurídicos e políticos da nossa República. O artigo 1.º da Constituição Federal proclama que: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...) III – a dignidade da pessoa humana”. Verifica-se que a dignidade humana constitui ao mesmo tempo em um princípio estrutural e regente da ordem democrática com cogência normativa.
E justamente por carregar no seu bojo o conteúdo dos Direitos Humanos é o princípio da dignidade humana que confere o atributo de democrático ao Estado dito Democrático de Direito, que sem a obrigatoriedade da realização da “dignidade humana” como principal meta perderia o atributo de democrático, reduzindo-se simplesmente a um Estado de Direito.
Ernst Benda ex-presidente do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha reconhece que por estar a dignidade inserida na Constituição ela deixa de ser um mero valor moral para se transformar também em regra jurídica de natureza cogente, diante a força normativa dos princípios constitucionais. E reconhece que seria verdadeiro contrassenso que o Estado de Direito exerça a sua autoridade contra os fins definidos na Constituição.
Destarte, sustenta o grande constitucionalista alemão que a realidade fática demonstra que existem grupos ameaçados (doentes, minorias étnicas, desajustados etc.) e que, portanto, a ordem constitucional deve reagir contra essa experiência para estender a sua proteção também a essas pessoas.
E na atualidade observa que
“a definição de pessoa humana transmitida pela Constituição não pode ser mais aquela baseada em concepções idealistas, abstratas e ético-sociais do homem como ser livre e racional, como era reconhecido majoritariamente pela doutrina racionalista. A não ser que se quisermos despojar as pessoas que vivem na periferia social da proteção constitucional, devemo-nos contentar com uma definição bem mais modesta da dignidade da pessoa humana, isto é, baseada na capacidade abstrata e potencial do ser humano para realizar-se como tal, ainda que no plano fático isso seja impossível. Deste modo, o Estado deve omitir-se de proferir um juízo concludente (absoluto ou negativo) sobre o indivíduo. Em qualquer caso, o Estado se vê juridicamente obrigado a preservar a dignidade humana e protegê-la no marco de suas possibilidades”[9].
Como valor máximo do ordenamento jurídico, a intangibilidade da dignidade humana constitui para o investigador o princípio guia e delimitador supremo[10].
Outra consequência apontada por Castillo Alva é que o reconhecimento da dignidade humana implica nas construções do Direito Penal em considerar o crime como um fato social, que embora indesejado, deva ser resolvido pela própria sociedade como algo que lhe é peculiar, o que repudia a ideia de que o crime seja um corpo estranho, como um tumor que deva ser extirpado a qualquer custo da sociedade. Por esse motivo, entende que a dignidade humana impede que o delinquente seja considerado como um inimigo da sociedade[11].
Nessa mesma linha de ideias, sustenta Canotilho que o reconhecimento da dignidade da pessoa humana como um princípio fundamental implica no reconhecimento da República como entidade coletiva, que deve assumir um papel de comunidade constitucional inclusiva (de todos, e não só da maioria) pautada pelo multiculturalismo e pela diversidade política e ideológica, pois que o republicanismo não pressupõe nenhuma doutrina, verdade, filosofia ou religião absolutas[12].
Por esse motivo, afirma Luigi Cornacchia, que
“o Estado deve ser capaz de tratar os seus súditos com ferramentas dialógicas que possibilitem o confronto aberto, por meio da expansão da cultura, da educação e da informação completa, e que não utilize o Direito Penal como instrumento de opressão ideológica ou política de censura, que não incrimina a lesão a um bem jurídico, mas uma ideologia ou uma forma de pensar contrária ao Estado, mesmo daquelas críticas que lhes sejam mais corrosivas e demolidoras, que naturalmente se desenvolvem no seio de uma sociedade multicultural e livre”[13].
A dignidade da pessoa humana encontra-se situada no ápice do ordenamento jurídico brasileiro, e, por conseguinte, como ressalta o Min. Barroso, “está na origem dos direitos materialmente fundamentais e representa o núcleo essencial de cada um deles”, e no seu âmbito “se inclui ‘a proteção do mínimo existencial’. Aquém daquele patamar, ainda que haja sobrevivência, não há dignidade”[14].
E por situar-se na raiz dos demais princípios democráticos a negação do princípio da dignidade da pessoa humana abre as portas para o Estado totalitário autorizando a discriminação das minorias e das diferenças (políticas, ideológicas, culturais, étnicas, sociais etc.). Sua negação gera a intolerância. Isso porque, por se encontrar a dignidade humana na substância dos princípios fundamentais, os direitos fundamentais constituem o paradigma de legitimação do regime político democrático. E quanto mais um Estado caminha na concreção dos direitos fundamentais, tornando-os eficazes, mais legitimidade esse Estado adquire perante a comunidade internacional, considerando-se menos democrático e legítimo o regime político que desrespeita e propicia a agressão a esses direitos[15].
Critérios utilitaristas não se compadecem com o princípio da dignidade da pessoa humana e comprometem a legitimidade do Direito Penal, porque o ser humano não pode ser objeto de nenhum tipo de discriminação, nem utilizado como instrumento (coisificação) para alcançar fins que lhe são alheios, por mais valiosos ou nobres que sejam esses fins[16].
Como exposto por Edilson Pereira de Farias, a dignidade humana, contudo, não pode ser avaliada apenas num contexto único, porque o homem é tanto ser individual como ser social no conceito aristotélico de zoon politikon (Johannes Messner, Ética Social, São Paulo: Quadrante, p. 127). O ponto de equilíbrio entre as duas forças: puramente individualistas vs. puramente coletivistas, de acordo com Antonino Scalasi (Il valore della persona nel sistema e i nuovi diritti della personalità. Milano: Giuffrè, 1990, p. 25), está na medida em que o indivíduo deve ceder ao todo, até o quanto que não seja ferido o valor da pessoa, ou seja, na sua dignidade ou na plenitude do homem enquanto homem. Toda vez que se quiser ultrapassar a esfera da personalidade haverá arbítrio[17].
Essas considerações são muito pertinentes ao estudo do princípio da proporcionalidade (e o estudo da teoria do núcleo essencial) e os seus reflexos sobre o Direito Penal, assim, a dignidade da pessoa humana não afeta diretamente apenas o princípio da humanização das penas como a doutrina tradicional tem ressaltado, mas a intervenção penal como um todo e em todas as suas fases: legislativa, judiciária e executiva. E também, o Direito Penal na sua frase embrionária-preventiva (de investimento nos mecanismos de controle social prévio).
Conforme propomos cada uma dessas afetações foram por nós analisadas detalhadamente no estudo individual dos princípios constitucionais penais (intervenção mínima ou subsidiariedade, legalidade e reserva legal, alteridade ou proteção exclusiva dos bens jurídicos, fragmentariedade, ofensividade, insignificância, adequação social, culpabilidade, estado de inocência, proporcionalidade, humanização das penas, responsabilidade pessoal), e suas complicações: legalidade x tipos penais em branco; ofensividade x tipos penais de perigo abstrato; alteridade x suicídio, drogas; direito penal do inimigo; humanidade x pena de morte; prisão perpétua x duração máxima das penas; ressocialização do preso x condições dos presídios etc., com base no estudo doutrinário do direito comparado: alemão, português, italiano, espanhol e latino-americano, entre autores clássicos, como: Liszt, Manzini, Mezger, Cuello Calón, Jiménez de Asúa etc., e modernos como: Claus Roxin, Jakobs, Jescheck, Konrad Hesse, Zippelius, Bustos Ramírez, Muñoz Conde, Cobo del Rosal, Stéfano Canestrari, Canotilho entre outros[18].
Se uns dos fins do Direito Penal é a proteção da sociedade contra a criminalidade, essa proteção deve se dar dentro de um marco de justiça, isto é, considerando o delinquente como um cidadão com direitos e deveres, titular de dignidade como ser humano, cujo castigo há de sujeitar-se a determinados requisitos contidos geralmente em normas de nível constitucional[19].
Existe um programa constitucional do Direito Penal que deve ser cumprido pelo Estado brasileiro (função garantista e mandados de criminalização), cujo ápice está a dignidade da pessoa humana, sendo que os demais princípios constitucionais são decorrência dela.
Os princípios constitucionais do Direito Penal ao funcionarem como fundamento e limite da intervenção penal, no controle do exercício da atividade punitiva, revelam ter um conteúdo ético na medida em que resguardam a liberdade do homem com relação à preservação à dignidade humana, sendo inadmissível a aplicação do jus puniendi estatal com violação a esses princípios.
[1] RECASÉNS SICHES, Luis, Tratado General de Filosofía del Derecho, 3 ed. México: Pórrua, 1965, pp. 548-550.
[2] RECASÉNS SICHES, Luis, Tratado General de Filosofía del Derecho, 3 ed. México: Pórrua, 1965, p. 550.
[3] YACOBUCCI, Guillermo J., El sentido de los principios penales, Buenos Aires: Ábaco, 2002, p. 206.
[4] Cf. REALE, Giovanni & ANTISERI, Dario, História da Filosofia, vol. 6. São Paulo: Paulus, 2006, p. 224.
[5] Cf. REALE, Giovanni & ANTISERI, Dario, História da Filosofia, vol. 7, São Paulo: Paulus, 2006, pp. 246-247 – destaquei.
[6] LARENZ, Karl, Metodologia da Ciência do Direito, 6 ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2012, pp 515-516.
[7] BENDA, Ernst, Dignidad Humana y Derechos de la Personalidad, in: BENDA, MAIHOFER, HESSE & HEIDE, Manual de Derecho Constitucional, 2 ed., Madrid: Marcial Pons, 2001, pp. 120.
[8] Apud in: ROMEO CASABONA, Carlos María, El Derecho y la Bioetica ante los limites de la Vida Humana, Madrid: Ramón Areces, 1994, pp. 44-45.
[9] BENDA, Ernst, Dignidad Humana y Derechos de la Personalidad, in: BENDA, MAIHOFER, HESSE & HEIDE, Manual de Derecho Constitucional, 2 ed., Madrid: Marcial Pons, 2001, pp. 120 e 124-125.
[10] ESER, Albin, Genética, Gen-ética, Derecho Genético?, in: Derecho Penal, Medicina y Genética, Lima: IDEMSA, 1998 p. 232.
[11] CASTILLO ALVA, José Luis (coordenador), Código Penal Comentado, t. I. Título Preliminar y Parte General. Lima: Gaceta Juridica, 2004, pp. 27-28.
[12] CANOTILHO, J. J. Gomes, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 2 ed. Coimbra: Almedina, 1998, pp. 219-220.
[13] Cf. CANESTRARI, Stefano & CORNACCHIA, Luigi & DE SIMONE, Giulio, Manuale di Diritto Penale, Parte Generale, Bologna: Il Mulino, 2007, pp. 233 e 234.
[14] BARROSO, Luís Roberto, Curso de Direito Constitucional Contemporâneo, São Paulo: Saraiva, 2009, pp. 251 e 253.
[15] PEREIRA DE FARIAS, Edilsom, Colisão de Direitos, Porto Alegre: Safe, 1996, p. 17.
[16] ROMEO CASABONA, Carlos María, El Derecho y La Bioetica ante los limites de la Vida Humana, Madrid: Ramón Areces, 1994, p. 45.
[17] PEREIRA DE FARIAS, Edilson, Colisão de Direitos, Porto Alegre: Safe, 1996, pp. 49 e 47-48.
[18] Cf. PASSOS, Marcelo Murilo de Almeida, Direito Penal: uma introdução por seus princípios constitucionais, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015, 318 pp.
[19] RODRÍGUEZ RAMOS, Luis, Compendio de Derecho Penal, Parte General, Madrid: Trivium, 1984, p. 18.