Caracterização conceitual e evolutiva de democracia

28/01/2019 às 17:30
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Segundo a doutrina clássica, a expressão democracia inicialmente foi utilizada para designar uma forma de governo, cujo exercício teoria efetivo pertenceria, em tese, a todos os cidadãos. Como bem observa SAHID MALUF (Teoria Geral do Estado, 23a  ed., São Paulo, Saraiva, 1995, p. 275), “as antigas repúblicas gregas e romanas de vinte e cinco séculos passados, entre as quais se destaca como tipo clássico o Estado ateniense, foram as primeiras manifestações concretas de governo democrático”, salientando, logo a seguir, que “foram aquelas experiências as sementes da democracia, que os filósofos antigos e medievais conservaram vivas até que germinassem assinalando o advento dos tempos modernos”.

Destacam-se, neste aspecto, como os primeiros teóricos clássicos da democracia, ainda sob a roupagem genérica de forma de governo, entre os gregos, HERÁCLITO, HERÓDOTO, DEMÓCRITO, LICURGO, SÓLON, SÓCRATES, PLATÃO, ARISTÓTELES e POLÍBIO; e, entre os romanos, LUCRÉCIO, CALÚSTIO, CÍCERO, SÊNECA e TÁCITO.

(Deve ser registrado, repetindo lições de SAHID MALUF (ob.cit, p. 275) que, “nos  Estados helênicos e romanos, como mais tarde nos Cantões da Confederação Helvética, a democracia foi idealizada e praticada sob a forma direta, isto é, o povo  governava-se por si mesmo, em assembléias  gerais realizadas periodicamente nas praças públicas. Tal sistema primitivo foi possível  porque então o Estado-cidade (Polis, na Grécia, e Civitas, em Roma) era pequeno, restringindo-se aos limites da comunidade urbana. E, para bem funcionar a democracia, a população não podia  ultrapassar certos limites. PLATÃO, em “A República”, limitava em dois mil o número  de cidadãos; e mais tarde, no “Diálogo das Leis”, admitiu que o número de cidadãos atingisse  cinco  mil. E ARISTÓTELES, no Livro VII da Política, mostrando a conveniência de que os cidadãos  se  conheçam uns aos outros para que possam escolher com discernimento os seus magistrados, aconselhou também as limitações territoriais e demográficas, embora sem fixar precisamente esses limites. Chegou mesmo a afirmar que o Estado não deveria ir além do número de pessoas às quais pudesse chegar a voz do orador”).

Mais tarde, porém, conforme já advertimos, a democracia, sob o ponto de vista conceitual, evoluiu de sua concepção originária de forma de governo para traduzir a idéia de regime político, motivada, segundo muitos estudiosos, pela própria percepção quanto à sinérgica impossibilidade fática de se ter uma democracia direta (no sentido de o povo governar-se por si mesmo), como a experimentada em alguns Estados helênicos e romanos, em determinados períodos históricos.

Esta radical mudança de categoria jurídico-institucional que experimentou a democracia, no mundo moderno, deve-se também ao advento da idéia da representatividade no sentido amplo que permeou a concepção contemporânea de legitimidade e inaugurou os conceitos atuais de representatividade stricto sensu (legitimidade a priori) e de legitimidade a posteriori, todos calcados no princípio basilar da soberania popular, cujo corolário fundamental baseia-se na máxima de que todo poder emana do povo (na qualidade de titular do Poder Constituinte) e em seu nome é exercido (pelos agentes do Poder Constituinte).

"No mundo moderno, porém, a democracia surgiu sob a forma indireta ou representativa. Manteve-se o princípio da soberania popular (todo poder emana do povo e em seu nome será exercido), transferindo-se o exercício das funções governamentais aos representantes ou mandatários do povo. Democracia e representação política tornam-se, no mundo moderno, idéias equivalentes: fala-se em democracia e subentende-se o sistema representativo de governo. Realmente, o Estado moderno, pelo aperfeiçoamento dos meios de comunicação, superou os obstáculos do número e da distância, colocando em pleno funcionamento o mecanismo das  representações mantendo contato imediato com as imensas populações, a tal ponto que se chega a conceber a formação de Estados continentais e até mesmo de um Estado mundial" (SAHID MALUF, in Teoria Geral do Estado, 23a  ed., São Paulo, Saraiva, 1995, ps. 275-276).


1. DEMOCRACIA NOS SENTIVOS AMPLO E RESTRITO

Mesmo na tradução contemporânea de regime político, a democracia pode ser ainda entendida em sentido amplo (que alguns autores nomeiam como sentido substancial) e em sentido restrito (que alguns autores nomeiam como sentido formal).

Sob a ótica restrita, a democracia apenas designa o regime político da representatividade lato sensu, traduzindo, em última análise, os variáveis métodos formais de exercício da representatividade, associados aos seus diversos graus.

Porém, sob o prisma amplo, a democracia alude a uma série de valores (otimismo relativo acerca da natureza humana, governo e Estado como instrumentos da sociedade, inexistência do dever de submissão etc.) que, por fim, conduzem a um conjunto de características próprias que podem ser sintetizadas através dos seguintes tópicos: eleições livres (em contraposição às eleições manipuladas típicas do regime despótico), oposição política legal (em contraposição ao partido único típico do regime despótico), liberdade de expressão (em contraposição ao conformismo intelectual típico do regime despótico), governo da maioria com respeito aos direitos da minoria (em contraposição ao governo arbitrário típico do regime despótico), constitucionalismo (em contraposição ao pseudoconstitucionalismo típico do regime despótico), império da lei e da ordem legitimamente estabelecidas (em contraposição à lei e à ordem ilegítimas típicas do regime despótico) etc.

1.1. Democracia e Regime de Amplas Liberdades

No sentido amplo, alusivo ao vocábulo democracia, é também correto afirmar que o regime democrático se traduz como um regime de amplas liberdades em seus variados espectros (liberdade de ação, liberdade de pensamento, liberdade de reunião, liberdade de associação, liberdade de profissão, liberdade de locomoção, liberdade pessoal etc.), ainda que, por si só, tal característica não seja suficiente para definir a democracia.

(É oportuno assinalar que, de  modo geral, o leigo tende a associar o regime democrático com o regime de amplas liberdades, como se ambas expressões fossem sinônimas. A verdade, contudo, é que o regime de amplas liberdades é apenas uma condição necessária, porém não suficiente, para efetiva caracterização efetiva da democracia.)

No caso brasileiro, em especial, o regime político democrático atual - de inconteste matiz formal (aparente) com ênfase em elementos de legitimidade originária - caracteriza-se, sobremaneira, por um extenso conjunto de dispositivos constitucionais que tutelam a liberdade, ainda que nem sempre exista, por parte do Estado, a necessária ação comissiva garantidora, em última análise, desta mesma liberdade, teoricamente assegurada pela ordem jurídica estatal. (1)

“(...) A missão do Estado, ante a liberdade individual, não é puramente negativa, nem a de um espectador indiferente: ao contrário, é de natureza essencialmente positiva, para a realização da liberdade jurídica, assegurá-la contra o perigo de uma opressão exterior, ou uma supressão por parte do próprio indivíduo.(...)” (NAGIB S. FILHO, in Anotações à Constituição de 1988, Rio de Janeiro, Forense, 1989, p. 205).

1.2. Democracia e Igualdade

Outro postulado do regime democrático é, sem dúvida, o princípio da igualdade (isonomia), segundo o qual todos os nacionais devem ter tratamento equivalente e, especialmente, igualdade de oportunidades.

Sob a ótica geopolítica, é, inclusive, lícito afirmar que a concepção conceitual de democracia por muito tempo tem se baseado fundamentalmente nos pilares da liberdade e da igualdade, sendo certo que, nos tempos da chamada "guerra fria" (confronto ideológico e político-institucional entre o Ocidente e os países do bloco sino-soviético), as principais democracias ocidentais (EUA, França, Reino Unido, Canadá, República Federal Alemã etc.) denominavam-se "Mundo Livre" (numa visível alusão à primazia do elemento liberdade, característico de seus respectivos regimes políticos democráticos) em contraposição crítica aos Estados totalitários da denominada "Cortina de Ferro" que se afirmavam, pelo menos sob o prisma designativo, democracias populares, em uma pretensa referência à maior igualdade que tais povos esbravejam possuir.

De qualquer forma, é válida a afirmação segundo a qual a idéia contemporânea de democracia transcende os elementos da liberdade e da igualdade para, - além de incluí-los sob uma nova roupagem (que implica, conforme já assinalamos, uma participação ativa do Estado, como garantidor último dos direitos derivados desses (2)) -, também incluir a noção basilar do direito à própria existência do homem, através dos chamados direitos humanos.

(Não é por outra razão que, independentemente da caracterização transnacional dos direitos humanos, todos os Estados que se autonomeiam regimes democráticos consignam em suas respectivas Constituições um extenso (ou genérico) elenco de direitos individuais (e também coletivos e difusos) relativos à liberdade e à igualdade (isonomia) e, sobretudo, à vida (numa acepção particular e nacional dos direitos humanos), como não deixa de ser exemplo a Constituição brasileira em vigor.)


Notas:

1. Democracia Anárquica

Digna de menção é também a especial designação (“anárquica”) que alguns autores outorgam a eternamente jovem democracia brasileira  que se caracteriza, dentre outras, pela ampla discricionariedade (que muitos rotulam como arbítrio)  com que agem os  agentes públicos no mister de suas funções político-administrativas.

Mesmo em casos simples, registra-se, com inacreditável constância, o absoluto desrespeito às leis – e,  sobretudo, à concepção vinculativa do binômio poder-dever (que corresponde ao próprio âmago do regime democrático) -, por intermédio, particularmente, do permanente arbítrio com que agem as autoridades públicas, decidindo subjetivamente seu atuar em situações perfeitamente delineadas pela legislação vigente. É o caso de fato ocorrido no Rio de Janeiro, onde quatro turistas suecos foram conduzidos à delegacia policial por terem sidos flagrados se banhando na praia de Ipanema sem roupas (ato obsceno, art. 233 do Código Penal brasileiro) e, ainda assim, foram imediatamente “liberados” pela autoridade policial, sem o competente registro da ocorrência,  por decisão “soberana”  do delegado plantonista (O Globo,  14.2.99, p. 20), independentemente de qualquer conhecimento do fato pelo representante do Ministério Público que,  no âmbito de sua competência constitucional, poderia requerer o eventual arquivamento do inquérito policial (que não chegou sequer a ser instauração), em face da pretensa presença in casu de erro de proibição (considerando ser, na Suécia, pretensa prática comum o nudismo em certas praias).

Outro exemplo grotesco é o caso de um cidadão que, afirmando incorporar o espírito de um médico alemão, durante vários anos praticou os crimes de exercício ilegal da medicina e curandeirismo (arts. 282 e 284, ambos do Código Penal brasileiro),  com pleno conhecimento por parte das autoridades públicas e tendo até mesmo atendido, em cirurgias mediúnicas, muitas delas.

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2. Papel Ativo do Estado na Proteção Efetiva dos Postulados Democráticos

Conforme já reiteradas vezes registramos, não se pode simplesmente rotular como genuinamente democrático o Estado que, apenas em sua  previsão normativa abstrata (ainda que de índole constitucional), assegura os postulados fundamentais do regime democrático, quais sejam: a liberdade, a igualdade e, acima de tudo, o sagrado direito à vida.

Entender de outra forma seria qualificar de democráticos  os mais terríveis regimes totalitários que, sob o ponto de vista teórico-legislativo, se autonomeavam democracias,  através dos mais diferentes sofismas (democracias populares (totalitarismo comunista), democracias nacionais (totalitarismo nazi-fascista) etc.).

Em essência, apenas os Estados que verdadeiramente fazem valer ativamente os próprios direitos que asseguram podem ser corretamente chamados de Estados democráticos de direito, o que, lamentavelmente, exclui o Brasil do passado e da atualidade.

Nesse sentido, apenas a título de ilustração, vale registrar que, em nosso País, formalmente dotado de um regime democrático, foram furtados ou roubados, somente durante o ano de 1998, 305  mil automóveis (um recorde histórico, mais que toda a produção da Fiat (a segunda maior montadora do Brasil)), embora a Constituição expressamente assegure o direito de propriedade. Também passou para o cotidiano nacional o controle de extensas áreas de cidades brasileiras (particularmente o Rio de Janeiro) por grupos privados paraestatais com cenas no mínimo curiosas, como o caso em que bandidos determinaram o fechamento do comércio no bairro carioca de Laranjeiras, por um dia, em sinal de luto pela morte do chefe do tráfico de entorpecentes do Morro do  Pereirão (O Globo,  28.12.98, p. 8), em local onde se encontra a sede do próprio governo estadual (Palácio Laranjeiras), o que, na época, causou extrema indignação, especialmente ao ex-candidato à presidência pelo Partido Verde, ALFREDO SIRKIS,  morador da localidade, que externou sua opinião afirmando ser o caso “uma questão de segurança nacional, sendo inadmissível que grupos armados controlem áreas da cidade”. Em outro episódio (de um conjunto infinito), o secretário de segurança do Rio de Janeiro foi pessoalmente à favela Congonhas acompanhar a destruição de quatro manilhas cravadas verticalmente na rua para impedir a passagem de veículos policiais no principal acesso à comunidade (ocasião em que nenhum dos três mil moradores saiu de casa para acompanhar a comitiva, em claro e evidente sinal do poder do tráfico) (O Globo, 6.2.99, p. 13).

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Sobre o autor
Reis Friede

Desembargador Federal, Presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (biênio 2019/21), Mestre e Doutor em Direito e Professor Adjunto da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Graduação em Engenharia pela Universidade Santa Úrsula (1991), graduação em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1985), graduação em Administração - Faculdades Integradas Cândido Mendes - Ipanema (1991), graduação em Direito pela Faculdade de Direito Cândido Mendes - Ipanema (1982), graduação em Arquitetura pela Universidade Santa Úrsula (1982), mestrado em Direito Político pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1988), mestrado em Direito pela Universidade Gama Filho (1989) e doutorado em Direito Político pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1991). Atualmente é professor permanente do Programa de Mestrado em Desenvolvimento Local - MDL do Centro Universitário Augusto Motta - UNISUAM, professor conferencista da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, professor emérito da Escola de Comando e Estado Maior do Exército. Diretor do Centro Cultural da Justiça Federal (CCJF). Desembargador Federal do Tribunal Regional Federal da 2ª Região -, atuando principalmente nos seguintes temas: estado, soberania, defesa, CT&I, processo e meio ambiente.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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