Análise de caso real sob o direito a vida

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Ao paciente que necessita receber a transfusão de sangue, nos casos em que a religião insiste em proibir por seus dogmas a permitir que se faça, seria lícito manter o seu direito fundamental de opinar e de agir.

Ricardo Venâncio de Oliveira da Silva
 
 
 
 
 
 
 
Análise de caso real sob o direito a vida.
 
 
 
 
 
 
 
Belo Horizonte
Princípios Constitucionais e Direitos Humanos
Prof. Menelick de Carvalho Netto
Escola Superior Dom Helder Câmara
2007
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Introdução
Dissertar sobre um tema requer incialmente o entendimento de seu
significado literal sendo possível identificar a origem e como são interpretados e
aplicados nos dias precedentes e atuais. Sob o prisma do estudo da história de sua
existência se funde na esperança de um dia poder realizar seus sonhos. Ouve-se
dizer em democracia, liberalismo, liberdade, direitos do homem, limites do poder do
Estado e o sujeito de direitos ali, diante de tanta informação “desnecessária”  
inicialmente, pois, o que deseja é poder ter seus direitos fundamentais preservados
e garantidos., (BOBBIO, Norberto, 1ª ed.1988). A base deste ensaio tem como
instrumento  a análise de caso real entre poder e dever de escolher o direito à vida.
Há uma relação entre democracia e liberalismo no que tange a
igualdade na liberdade que o indivíduo tem para executar um certo número de
atividades sob a dupla condição de licitude. A defesa do indivíduo dos abusos do
poder, ou seja, a liberdade individual está garantida. E como primordial na vida das
pessoas está na igualdade perante a lei e na igualdade dos direitos. “Os homens
nascem e devem permanecer livres e iguais em seus direitos”, é o reconhecimento
dos direitos invioláveis da pessoa sobre os quais se funda o Estado Liberal para o
bom funcionamento da democracia. É o controle do poder do Estado, com a
participação do povo. O Liberalismo é a raiz dos Direitos Humanos, nasce no mundo
moderno na Inglaterra, a idéia protestante, ou seja, a visão religiosa favorece o
surgimento de associações de indivíduos livres.
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O indivíduo surge como uma unidade de referência fundamental,
tanto para si como para a sociedade. O estado de direito de opinar e agir, contando
que as suas ações não firam as proibições oficiais, no entanto, estará submetido às
proibições oficiosas que se lhe impõe o meio a que pertence.  Existe um amplo
acordo entre os sociólogos para admitir uma ligação de causa e efeito entre a
complexidade das sociedades e o desenvolvimento do individualismo.  
O que são Direitos Humanos?
Quando se fala de desigualdades, Rousseau formulou as questões
essenciais, resumindo em três proposições fundamentais: as desigualdades
resultam essencialmente de mecanismo de mercado cuja natureza varia de uma
sociedade para outra, mas que estão presentes em toda sociedade; as
desigualdades tendem a acumular-se; se quiser que o contrato social seja viável, a
autoridade pública deve fazer de tal modo, que “os ricos não sejam muito ricos e os  
pobres muito pobres” mas, ao mesmo tempo, não deve ter ilusões quanto aos limites
das políticas de igualdade (cf.verbete Rousseau).
Contra a exploração do fraco e o desprezo da lei comum surge a
necessidade das nações apresentarem uma proposta em que seja respeitado o
mínimo para o cidadão  e isso se traduz no âmbito de proteção e limites dos direitos
fundamentais, na solução dos conflitos de direitos que surge  das relações entre os
indivíduos, à comunidade a que pertence e  o Estado.  Embora haja regras que
proíbem ou permitem algo em termos definitivos. Os princípios exigem a realização
de algo, da melhor forma possível, de acordo com as possibilidades jurídicas, impõe
a otimização de um direito ou de um bem jurídico, tendo em conta a reserva do
possível. A norma universal garante que todos têm direitos a liberdade e à
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segurança, garantido um direito subjetivo de posições e relações individuais. A
proteção à vida, o domicílio, a religião, a criação artística.  
CASO REAL:
Menor com 11 anos, sexo masculino, filho de pais separados, com
atividade social normal dentre  os semelhantes, como opção religiosa “testemunha
de Jeová”, sofre crise asmática, socorrido em Hospital do interior, comenta com
médico, que tem alguma mancha nos membros inferiores, como hematomas,
habitual em crianças acostumadas a andar de bicicleta, skate, jogar bola etc. O bom
senso médico solicita então a colheita de sangue e através de um exame simples
chamado “hemograma” constata que as denominadas “plaquetas”, componente
sanguíneo, encontram-se em número de 14.000  sendo que o mínimo seria de
150.000.  Os estudos do sangue periférico (hemograma) e do sistema
hematopoético, em material aspirado da medula óssea (mielograma), são valiosos
na identificação de doenças hematológicas malignas, por mostrarem alterações dos
leucócitos, taxa baixa de plaquetas e presença abundante de células blásticas,
característico da leucemia aguda linfoblástica”.  
Inicialmente não é permitido que o menor deixe o hospital e tem início
ao tratamento caracterizado pela transfusão de concentrado de hemácias, todavia,
em razão de sua opção religiosa, “testemunha de Jeová”, que em sua doutrina não
permitem a transfusão,  a mãe e jovem fieis na sua crença e com apoio da
comunidade religiosa a qual frenquentam impossibilitam ao profissional de promover
a transfusão. Recorre-se então a um ardil benéfico, transfere-se o menor para Belo
Horizonte onde um renomado hematologista pediátrico assume o caso. O material
aspirado da medula óssea comprova o diagnóstico inicial, Leucemia Linfoblástica
Aguda ou LLA como é conhecida.  
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1. Leucemia é o câncer dos glóbulos brancos que são produzidos na medula óssea. Por alguma razão, algo acontece de errado (uma mutação) que o organismo não consegue corrigir e as células alteradas, chamadas de blasto, começa a se multiplicar dentro da medula óssea substituindo o tecido normal que produz sangue e elementos para coagulação. Estes blastos começam a sair para a circulação sangüínea, onde são detectados. O exame inicial para sua detecção é o hemograma completo. 2. As leucemias são os cânceres infantis mais comuns, representando 30-35% do total de doenças malignas, sendo que a LLA representa por volta de 75% dos casos de leucemia e o pico de incidência ocorre aos 3-4 anos. Ocorre em proporção um pouco maior nos meninos em relação as meninas. A LLA pode ocorrer em maior freqüência em pacientes portadores de outras doenças, como distúrbios genéticos (síndrome de Down é o exemplo mais comum) ou com imunodeficiência, mas na grande maioria dos casos não há uma explicação causal possível. Irmãos de crianças com LLA têm um risco de 2 a 4 vezes maior de também apresentarem LLA em relação à população geral e este risco ainda se multiplica nos gêmeos idênticos. 3. Os casos de LLA são subclassificados de L1 a L3 analizando as características das células cancerosas, chamados blastos. Mas necessita-se do exame chamado de biópsia de medula óssea para a total confirmação, cujo material é submetido à exames mais específicos. Alterações do material genético do doente podem ser identificadas em 80 a 90% dos casos. 4. A maioria dos pacientes com LLA possui doença disseminada ao diagnóstico, com blastos circulando no sangue e com envolvimento do baço, fígado e linfonodos (ínguas). Não existe estadiamento para a LLA, somente classificação celular. 5. Dois terços das crianças com LLA mostram sinais e sintomas da doença num período de um mês até o diagnóstico. Os primeiros sintomas não são específicos e incluem falta de apetite, irritabilidade e fraqueza. Pode haver história associada de infecção viral respiratória ou vermelhidão no corpo que não desaparece completamente. Com a progressão da doença na medula óssea, aparecem palidez, sangramentos não ligados à traumas e febre. Em 65% dos doentes, ao diagnóstico já há comprometimento das ínguas e aumento do baço. Em 25% dos portadores de LLA ao diagnóstico, há dores ósseas e nas juntas devido à doença estar aumentando a pressão dentro dos ossos. Raramente pode haver dor de cabeça e vômitos por envolvimento do cérebro. 66% apresentam massa no mediastino, evidenciada com exame de raios-X de tórax. 6. Os tratamentos podem diferir um pouco levando em conta a idade do paciente e características dos exames de sangue e medula óssea e exames radiológicos. O programa geral de tratamento inclui a indução, onde é administrada a quimioterapia até que a medula óssea não mostre mais células cancerosas e tratamento profilático do sistema nervoso central. Depois é feito a consolidação e a manutenção, tudo com quimioterapia sistêmica durante um longo tempo (mais de 2 anos) para não deixar nenhuma célula maligna escapar. 7. Apesar de todas as drogas e tempo de tratamento não é raro a recaída, isto é, o retorno da doença. Ela pode voltar em vários locais, sendo a medula óssea o mais comum, seguido pelo sistema nervoso central e testículos (nos meninos). Nesses casos de recaída pode-se tentar o uso de outras quimioterapias não usadas no primeiro tratamento ou se possuir doador compatível, realizar o transplante de medula óssea, que seria o tratamento de escolha.
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8. A idade do paciente (se menor de 1 ano ou maior de 10 anos), a contagem inicial dos glóbulos brancos no hemograma e a presença de anormalidades cromossômicas influenciam no prognóstico, mas essas características clínicas não são determinantes. Cada vez mais o que interessa é o tratamento utilizado. Os melhores centros de oncologia infantil do mundo curam a LLA numa taxa de até 70%, onde os doentes ficam mais de 5 anos livres da doença. (Sasse, Emma Chen, Pediatra)
Como recurso socorrista a internação é imediata e o processo na
busca da cura tem início. A quimioterapia não sofre qualquer rejeição por parte do
paciente e sua genitora, no entanto, quando da informação da necessidade de
transfundir hemácias e plaquetas, fundamentais na sustentação do tratamento, há uma resistência  negativa a ponto do paciente dizer: “prefiro a morte a ter que receber transfusão de sangue”. A postura médica nestes casos deve ser firme, porém, a explicação científica não consegue  de imediato surtir o efeito, ou seja, a
compreensão de que o caso é grave, pode ocasionar o óbito se não efetivada a
transfusão.  Neste interregno, surge a figura paterna e determina sob a outorga do
“pátrio poder” a transfusão.  
Durante o período de internamento, o paciente recebeu terapia de
reposição através de infusão de albumina humana e transfusão de concentrado de
hemácias, antibióticos (amicacina, cefalotina e ceftriaxona), corticóides
(dexametasona e prednisona) e drogas citostáticas em várias combinações (L
asparaginase, citarabina, daunorrubicina, doxorrubicina e vincristina).
Aspectos jurídicos  do caso:
Ao paciente que necessita receber a transfusão de sangue, nos
casos em que a religião insiste em proibir por seus dogmas a permitir que se faça,
seria lícito manter o seu direito fundamental de opinar e de agir, contando que as
suas ações estão submetidas às proibições oficiosas que se lhe impõe o meio a que
pertence, no caso a “Congregação das Testemunhas de Jeová”, com seus anciões
etc, estariam defendendo a crença religiosa independente da ciência que lhe
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assegura uma sobrevida com os procedimentos necessários.  Quais os princípios
estão sendo argüidos e aplicados neste caso. A idéia abstrata de um Deus que
exige de seus seguidores abdicar do direito à vida.
O caso em estudo apresenta outra característica a ser observada,
trata-se de menor, e este deve ser representado. Pode então à vontade do
representante prevalecer sob o direito daquele. Ocorre que a personalidade jurídica
ainda não se encontra totalmente sob o domínio do menor.
 “Não basta, porém, dizer que a “vida”, a “arte”, o “domicílio” são
domínios materiais a que se refere o âmbito de protecção dos respectivos direitos
materiais são jurídico-constitucionalmente protegidos. (CANOTILHO, J.J.Gomes, 7ª
ed. Almedina, Direito constitucional e Teoria da Constituição, 448-449)
As restrições constitucionais são positivadas pelas próprias normas
constitucionais garantidoras de direitos, a Constituição Federal garante em seu artigo 5, incisos II que – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei; VII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa fixada em lei (grifo nosso). Da mesma forma veda a pena de morte,  no inciso XLVII, alínea a.  
“É possível a renúncia a direitos fundamentais, a vontade pura do
particular não pode conduzir a uma relativização completa do princípio da reserva
legal, a Constituição só permite restrição através de lei e nos casos nela
expressamente previsto”. Assim, é irrenunciável qualquer direito medularmente   
inerente à dignidade da pessoa humana como a vida etc, os direitos fundamentais
são irrenuciáveis.  
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A colisão de direitos fundamentais requer análise da predominância
de um estado de direito em que nos momentos de tensão entre vários princípios,
sendo que estes não obedecem, em caso de conflito, a uma “lógica tudo ou nada”,
devendo ser objeto de ponderação e concordância prática consoante as
circunstâncias do caso. Ocorre a colisão quando o exercício de um direito
fundamental por parte de seu titular colide com o exercício do direito fundamental
por parte de outro titular. Existe uma regra de prevalência a fixar a decisão, o direito
a vida tem, nas circunstâncias concretas, um peso decisivamente maior do que o
exercício de qualquer outro.
Desta forma, poderá existir uma relação de tensão entre um direito
como direito do indivíduo e um direito da pessoa na sua qualidade de unidade
interativa inserida em formações sociais, no caso em comento, não importam quais
as vontades livres da decisão, ou seja, da mãe, do paciente, do  pai ou do médico, a
congregação não tem legitimidade para interferir embora presione seus fieis,
estabelecendo a culpa por “princípio”. Em verdade o princípio que deve prevalecer é
o direito a vida, e tudo que for preciso para mantê-la.
Durkheim designa a importância da autonomia concedida ao ego, isto
é, ao indivíduo, na “escolha” de seus atos e crença (...) essa autonomia varia
conforme  o meio social e cultural em que está imerso o indivíduo, e pode variar
também em função da conjuntura. (BOUDON, Raymond, BOURRICAUD, François,
Ática, 1993, 285).
A ideologia revolucionária francesa pela tríade “liberte, egalité et
fraternité”, demonstra que somos uma comunidade de pessoas que se respeitam
como livres e iguais para sermos fraternos. Neste contexto, o sujeito de direito, teria
sim o direito de escolher em não receber a transfusão, mas seu pai teria o de
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autorizar. Essa dupla ética existe. Saber quando há um tratamento justo de
igualdade ou desigualdade não é tarefa fácil. Afinal as garantias fundamentais
devem prevalecer.
Qual é o ser do ser conhecendo-se no tempo, qual o ser da
consciência se tudo para nós é interpretação. A integridade terá sentido numa
sociedade perfeita. O desafio seria usar o mesmo padrão para todos, todavia, um
caso nunca se repete, são individuais, cada caso é um caso. Conclue-se que cada
um em seu espaço, deve garantir que os direitos fundamentais e conseqüentemente
os direitos humanos sejam mantidos e assegurados a todos e principalment o direito
à vida.
 
 Belo Horizonte, 30 de Março de 2007.
Ricardo Venâncio de Oliveira da Silva
 
 
 
 
 
 
Prof.  Menelick de Carvalho Netto
Belo Horizonte
Escola Superior Dom Helder Câmara
2007

Sobre o autor
Ricardo Venâncio de Oliveira da Silva

Delegado de Polícia Federal aposentado - agora no exercício como advogado. Pós-graduado em Segurança Pública e Direitos Humanos e Ciência Policial e Investigação Criminal.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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