Permissão de saída: instituto antídoto ao suplício da pena - no caso Lula, imponderação que conduz à exceção

30/01/2019 às 13:26
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Aborda o instituto da permissão de saída do condenado ao contexto do Caso Lula e aplicação da teoria da razoabilidade e estado de exceção

            Permissão de saída: instituto antídoto ao suplício da pena - no caso Lula, imponderação que conduz à exceção

            O corpo do condenado não lhe pertence. O poder estatal que se materializa na pena, toma o condenado por inteiro. Essa referência na história das penas é objeto de luta permanente em favor da  humanização.   Foucault (1999) constatou que mesmo com a mudança de paradigma – a espetacularização sai de cena e entrega os holofotes ao utilitarismo das prisões – o suplício não desapareceu no todo. [1]

            Se o suplício deixa de ser empregado como técnica oficial de sofrimento, cedendo lugar para a transição das perdas de direitos do condenado, se concentra em uma retórica e prática, que ainda guarda morada na expiação. Redução de alimentos, de contatos externos, negativa da sexualidade,  afetações morais, emocionais e psíquicas, enfim, um conjunto de artefatos para provocar dor, desmerecimento, vexame, humilhação,  incômodo e sofrimento são exemplos comuns.

            A permissão de saída do condenado do estabelecimento prisional, prevista no art. 120, Lei de Execução Penal é uma medida que visa exatamente minimizar os efeitos do suplício no cumprimento das penas privativas da liberdade (inerentes a sua própria execução), estabelecidas propositadamente ou de forma involuntária como plus. O benefício é direcionado aos presos provisórios ou definitivos, que estejam em cumprimento de pena no regime fechado ou semi-aberto.

            A saída do estabelecimento prisional deve ser realizada com escolta e pelo tempo estritamente necessário para a finalidade que a justifica:  falecimento ou doença grave do cônjuge, companheira, ascendente, descendente ou irmão;   necessidade de tratamento médico, se não puder ser realizado na própria prisão, sendo atribuição do diretor do estabelecimento prisional analisar o pedido do preso – art. 14, 120, I e II e 121, LEP. É uma providência de natureza administrativa, embora se compreenda que a autoridade judiciária possa deliberar a respeito, como ensina Marcão (2009), que sublinha razões humanitárias para a permissão da saída.[2]

            O fundamento na humanização da pena é a sinalização clara de que  a permissão de saída funciona como um antídoto ao suplício na aplicação da pena. Obviamente, que a perda de parentes próximos como referidos pela norma permissiva, constitui elemento de padecimento moral e emocional no condenado. A retenção obrigatória do condenado na prisão, quando se manifesta no sentido de participar das exéquias, liturgias ou outras atividades por ocasião da morte dos parentes (e essa opção é de cunho pessoal), implica de modo automático na imposição de um viés desumanizante no cumprimento da pena.

            As Regras Mínimas da ONU para Tratamento dos Reclusos descreve no item 44.2 a obrigação do Estado em assegurar ao preso, o direito de ser notificado quanto à morte de parente próximo, e em caso de doença grave, se as circunstâncias permitirem, sair do estabelecimento prisional para visita, com ou sem escolta. Como explica Mirabete (1997) houve uma ampliação dessas garantias pela Lei de Execução Penal brasileira com a permissão de saída com escolta, nos termos do dispositivo do art. 120, I e II, LEP, aqui incluindo a morte de um irmão. [3]

            As ligações de origem familiar são balizas que orientam a preservação da humanização da pena e serve como meios próprios para uma racionalidade da execução penal – o Estado ativa sua ética pelo direito para com o cidadão preso e contribui para a construção do reconhecimento como ponderado por Honneth.[4]

            Não há discricionariedade da autoridade penitenciária ou judiciária na aferição dos requisitos. Estabelece a norma, um direito individual ligado às liberdades públicas do condenado (não afastado com a condenação, ao contrário assegurado). No caso do ex-Presidente Lula, quando postula por seu direito à participação nas cerimônias fúnebres de seu irmão Vavá, a adoção de um fundamento que relativize e condicione a permissão a critérios de logística, extrapola à enunciação da norma jurídica e flerta  de maneira promissora com a exceção.

            O STJ no julgamento do HC n. 170.197/RJ -2012, Rel. Min. Gilson Dipp [5]  entendeu que a permissão de saída não constitui direito subjetivo do reeducando, devendo ser avaliada em cada caso concreto pelo juízo das execuções criminais, utilizando-se de pertinência e razoabilidade.  Essa interpretação exige que a autoridade penitenciária e judiciária utilize um juízo de ponderação ou razoabilidade, quanto à permissão de saída.

            Os chamados casos difíceis, nos quais se confrontam princípios que se antagonizam a partir da sua aplicação no caso concreto, devem ser resolvidos pela razoabilidade. Se o princípio da humanização da pena se conflita com a segurança pública, risco de frustração da execução da pena, ordem pública, tranquilidade ou defesa social, quando se cogita da permissão de saída ao ex-Presidente Lula, os pesos devem ser atribuídos aos elementos em conflito no dizer de Ana Paula de Barcellos (2008 ).[6]

            O que não se pode permitir é um banimento completo e automático de um dos valores em jogo hermenêutico. Se as razões que levem ao sacrifício do direito assegurado ao reeducando contra o suplício forem estabelecidas de maneira uniforme em questões de logística – para a saída do estabelecimento prisional, assim como a hipótese do ex-Presidente Lula – todas as saídas poderão ser inviabilizadas ou como queiram retoricamente,  fechadas.

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            Toda a saída exige uma logística de escalas diferentes. A própria LEP traz uma ferramenta geral para o cumprimento da permissão de saída: a escolta do condenado. Não há como se reputar equilibrada a razoabilidade, se o peso preponderante for sempre direcionado a um dos lados. Para problemas de logística, soluções de logística, diferentes e individualizadas, pois é a dimensão do caso concreto que interessa.

            O estatuto de um fio condutor genérico para a solução dos casos concretos, que exijam a razoabilidade, cria um ambiente perfeito para se burlar o mecanismo de interpretação e inaugurar uma normalização do iníquo e do desrespeito ao Estado Democrático de Direito.  É a necessidade que segundo Agamben (2004 ) serve como parâmetro para a exceção, um caso particular em fuga à observância da lei. [7]

            Receio que a lógica do estado de exceção inviabilize outro antídoto contra o suplício –  eventual saída para tratamento médico, se não for possível realizá-lo no estabelecimento prisional (art. 120, II, LEP). Votos de saúde ao ex-Presidente Lula!

           

           


[1] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Nascimento da prisão, Tradução: Raquel Ramalhete, 20ª edição, Petrópolis, Vozes, 1999.

[2] MARCÃO, Renato. Curso de Execução Penal, 7ª edição, São Paulo, Saraiva, 2009.

[3] MIRABETE. Execução Penal, 8ª edição, São Paulo, Atlas, 1997

[4] HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento – A gramática moral dos conflitos sociais, São Paulo, 34, 2003.

[5] https://ww2.stj.jus.br/processo/pesquisa/?tipoPesquisa=tipoPesquisaNumeroRegistro&termo=201000737970&totalRegistrosPorPagina=40&aplicacao=processos.ea

[6] BARCELLOS, Ana Paula de. Alguns parâmetros normativos para a ponderação constitucional, 3ª edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, apud SANTIAGO, José Maria Rodrigues. La ponderación de bienes e intereses em El derecho administrativo, Madrid: Marcial Pons, 2000.

[7] AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. Tradução de Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004

Sobre o autor
Amaury Silva

Juiz de Direito. Juiz Eleitoral. Magistrado no Estado de Minas Gerais. Especialista em Direito Penal e Processual Penal. Mestre em Estudos Territoriais (ênfase em Criminologia e Direitos Humanos). Doutor em Ciências da Comunicação interface com Direito Professor na Graduação e Pós-Graduação (Direito Penal, Processual Penal e Direito Eleitoral). Autor de diversas obras jurídicas.

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