POR UMA INTERPRETAÇÃO COERENTE

E que não se sirva do “Cesarismo de Estado”.

03/02/2019 às 19:19
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Por uma hermenêutica democrática, que não se submeta ao realismo político, mas somente à realidade dos fatos iluminados pela Carta Política de 1988.

Na senda de uma interpretação que, cada vez mais, inclina-se ao distanciamento dos direitos fundamentais, não é de se estranhar que sobressaiam avocações e delegações de poderes inexistentes ou incoerentes.
1. Inexistentes: Na RCL 32989 MC/RJ, em sede de liminar, o Ministro Luiz Fux decide a “suspensão do trâmite do PIC 2018.00452470, até que o Relator da presente Reclamação se pronuncie quanto ao pedido de avocação do procedimento e de declaração de ilegalidade das provas que o instruíram, alegada pelo Reclamante”.

2. Incoerentes: Basta ver a delegação de poderes a cargos de escalão mais inferior para classificação no grau ultrassecreto de informações, consoante o Decreto nº 9.690, de 23 de janeiro de 2019 que altera o Decreto nº 7.724, de 16 de maio de 2012, que regulamenta a Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011 - Lei de Acesso à Informação.

 Tratando-se de maneira ampla a questão da interpretação, tem-se que existem limites à discricionariedade daquele que se põe a tal atividade. Ou seja, em tom de legalidade, ao intérprete é dado realizar aquilo que a lei permite – quando atua em nome do Estado – e, no âmbito das relações particulares, a possibilidade vem limitada por aquilo que o ordenamento jurídico não proíbe.
 Pois bem, considerando-se a posição dos agentes públicos, e aqui incluindo precipuamente servidores da área administrativa e judiciária, há duas situações de produção de atos: vinculada e discricionária.
 Os regramentos nascem com níveis de delimitação e determinando o comportamento do destinatário. Quando a regra impõe que Poder Público deva agir de tal forma, estritamente observando e cumprindo os requisitos elencados pelo ordenamento a que se submete, tem-se que o ato é vinculado. De outro lado, quando há mais de uma opção, quando é necessária a realização de um juízo de conveniência e oportunidade, na qual o Poder Público consegue inferir qual a melhor escolha, a mais adequada, tem-se que o ato é discricionário (DI PIETRO, 2009, p. 212).
 Descumprido o ato vinculado, comete-se uma ilegalidade – e ultrapassado o limite do ato discricionário é o caso de uma arbitrariedade ou de abuso de poder.
 Feita esta digressão, o objeto é a análise do caso concreto em que presos são impedidos de sair da prisão em consequência da morte de parentes. O direito violado vem insculpido no art. 120 da Lei de Execuções Penais:
Art. 120. Os condenados que cumprem pena em regime fechado ou semi-aberto e os presos provisórios poderão obter permissão para sair do estabelecimento, mediante escolta, quando ocorrer um dos seguintes fatos:
I - falecimento ou doença grave do cônjuge, companheira, ascendente, descendente ou irmão;
(...)
Parágrafo único. A permissão de saída será concedida pelo diretor do estabelecimento onde se encontra o preso.

 Da leitura fica evidente que o texto da lei não dá margem de discricionariedade. O comando legal é lógico: “se ocorre o evento morte, então o preso pode sair”. É quase automático, tanto é assim que o parágrafo único ilustra a competência do diretor do estabelecimento para praticar o ato administrativo.
Qualquer interpretação negando a saída contra legem é violadora do direito do preso. E porque alguns casos chegam ao STF? De início, a competência do ato é do diretor do estabelecimento, portanto, é um ato administrativo e não jurisdicional. Aqui, diante do artigo 120 da LEP, tem-se que “a atuação da Administração Pública no exercício da função administrativa é vinculada quando a lei estabelece a única solução possível diante da situação de fato” (DI PIETRO, 2009, p. 212).
Todavia, a questão foi submetida ao Juízo da Vara das Execuções Penais responsável, mas, ressalte-se que se a lei continua a mesma e a situação de fato não se alterou, não há que se falar em negativa judicial, mas em cumprimento da lei. No caso concreto do ex-presidente Lula, pelas mãos da “Força-tarefa Lava Jato”, a questão ganhou uma nova conotação, in verbis:
Conforme se observa da dicção legal, a permissão de saída não se confunde com direito do preso (art. 41 da LEP), senão como faculdade da administração penitenciária, condicionando-se a concessão à possibilidade de escolta, e, obviamente, à garantia à incolumidade do custodiado e de terceiros.

Em juízo de mérito, imbuindo de discricionariedade a determinação legal, são levantadas as situações de conveniência e oportunidade, em que o Parquet pontua: (i) a impossibilidade de, ao tempo e modo, conduzir o custodiado mediante escolta e com as salvaguardas devidas, aos atos fúnebres de seu irmão; (ii) Quanto às salvaguardas à integridade e incolumidade física do custodiado, servidores públicos e demais pessoas, há carência de efetivo tanto da Polícia Federal quando da Secretaria de Segurança Pública. E com esta roupagem o caso chegou para decisão na Vara de Execuções Penais.
A interpretação é um processo lógico, e por mais que se fale que há normas que não precisam ser interpretadas, para estabelecer “a” premissa, é necessário interpretar. Isso porque, interpretar é uma busca pelo sentido, significado, limite e alcance da norma, e por isso é que são estabelecidos métodos de interpretação, conhecidos como hermenêutica. No processo penal, há peculiaridades:
Em princípio, a interpretação da lei processual penal está sujeita às mesmas regras de hermenêutica que disciplinam a interpretação das leis em geral. O que pretende o legislado com o art. 3º do CPP (“a lei processual admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito”) é simplesmente demarcar a distinção entre o direito penal e o processo penal: naquele, não se admite qualquer forma de ampliação hermenêutica dos preceitos incriminadores, muito menos o emprego de analogia em prejuízo do acusado (in malam partem); no processo penal, todavia, o art. 3º do CPP dispõe que é possível não apenas a interpretação extensiva e aplicação analógica, mas também o suplemento dos princípios gerais de direito.
(...)
Quando o art. 3º do CPP dispõe que a lei processual penal admite o emprego de analogia, há de se ficar atento à verdadeira natureza da norma, ou seja, se se trata de uma norma genuinamente processual penal, ou se, na verdade, estamos diante de norma processual mista dispondo sobre a pretensão punitiva e produzindo reflexos na liberdade do agente. Afinal, na hipótese de estarmos diante de norma processual mista versando sobre a pretensão punitiva, não se pode admitir o emprego de analogia em prejuízo do acusado, sob pena de violação ao princípio da legalidade. (LIMA, 2017, p. 100-102)

É esta análise, interpretação, que se observa em todos os casos assemelhados (isonomia) ou se aplica um tipo de discrímen negativado à esfera penal/criminal (IN PEJUS)? Para muitos, incluindo-se o senso comum jurídico, trata-se da mesma tônica.
E esta variedade inusual de adaptações, interpretações, faz aproximar o predecessor Pragmatismo Jurídico – substituto não-aclamado do Positivismo Jurídico – com um Punitivismo Regressivo. Este “regressivo” vem de empréstimo de Antonio Gramsci (2000), ao prefigurar condições político-jurídicas em que as instituições estatais estão a serviço não-mais da normalidade e da regularidade (Estado de Direito), mas sim do realismo político regressivo (em termos de Processo Civilizatório) e repressivo – notadamente no campo político-ideológico e em direção de confronto com a legitimidade dos movimentos sociais.
Quando este caso, em especial, alcançou a alta corte, legitimou-se uma interrogação: em que velocidade de direito penal estamos? Haverá, neste tempo/velocidade, espaço para o Estado de Direito mais elementar?

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“Uma característica do regime do Estado de Direito consiste precisamente em que, com respeito aos administrados, a autoridade administrativa somente pode empregar meios autorizados pela ordem jurídica vigente, especialmente pelas leis. Isto implica duas coisas: por um lado, quando entra em relação com os administrados, a autoridade administrativa não pode ir contra as leis existentes, nem se apartar delas, ela está obrigada a respeitar a lei. Por outro lado, no Estado de Direito em que se tenha alcançado seu completo desenvolvimento, a autoridade administrativa não pode impor nada aos administrados se não for em virtude da lei, e não pode aplicar, com respeito a eles, senão as medidas previstas explicitamente pelas leis ou ao menos implicitamente autorizadas por elas; o administrador que exige de um cidadão um feito ou uma abstenção deve começar por mostrar-lhe o texto da lei de onde toma o poder para dirigir-lhe esse mandamento”.
“Por conseguinte, em suas relações com os administrados, a autoridade administrativa não deve somente abster-se de atuar contra legem senão que ademais está obrigada a atuar somente secundum legem, ou seja, em virtude das habilitações legais. Finalmente, o regime do Estado de Direito implica essencialmente que as regras limitantes que o Estado impôs a si mesmo, em interesse de seus súditos, poderão ser alegadas por estes da mesma maneira que se alega o direito, já que somente com esta condição terão de constituir, para o súdito, verdadeiro direito”.
“O Estado de Direito é então aquele que, ao mesmo tempo, formula prescrições relativas ao exercício do seu poder administrativo, e assegura aos administrados, como sanção de ditas regras, um poder jurídico de atuar ante uma autoridade jurisdicional com o objetivo de obter a anulação, a reforma ou pelo menos a não aplicação dos atos administrativos que as tiveram infringido. Portanto, o regime do Estado de Direito se estabelece em interesse dos cidadãos e tem por fim especial preservá-los e defendê-los contra a arbitrariedade das autoridades estatais”.
“O regime do Estado de Direito significa que não poderão impor-se aos cidadãos outras medidas administrativas, que não sejam aquelas que estejam autorizadas pela ordem jurídica vigente, e, por conseguinte, exige-se a subordinação da administração tanto aos regulamentos administrativos quanto às leis. Não se pode confundir, entretanto, esta fórmula governamental com aquela que se conhece habitualmente sob o nome de governo convencional ”.
“Ademais, o desenvolvimento natural do princípio sobre o qual descansa o Estado de Direito, implicaria que o próprio legislador não pode, mediante leis feitas a título particular, derrogar as regras gerais consagradas pela legislação existente. Estaria igualmente de acordo com o espírito de dito regime que a Constituição determinasse princípios e normas superiores, e garantisse aos cidadãos aqueles direitos individuais que devem permanecer fora do alcance do legislador . O regime do Estado de Direito é um sistema de limitação, não somente das autoridades administrativas, senão também do corpo legislativo”.
“Mas, por outro, não se há elevado o Estado de Direito até a perfeição, pois, se bem se assegura aos administrados uma proteção eficaz contra as autoridades executivas, não se obriga o legislador a um princípio de respeito do direito individual que deva impor-se a ele de um modo absoluto. Para que o Estado de Direito se encontre realizado, é indispensável, em efeito, que os cidadãos estejam providos de uma ação de justiça, que lhes permita atacar aos atos estatais viciosos que lesionem seu direito individual ”.
 “A Constituição não somente exige que o administrador atue intra legem, senão que lhe manda atuar secundum legem, no sentido de que todo ato administrativo deve fundar-se em leis que lhe autorizem, ou nas quais busque a execução. Neste sentido está certo afirmar, sem forçar o alcance natural das palavras, que a administração é somente um poder de ordem executiva. A expressão função executiva traduz unicamente a idéia de que a atividade das autoridades, diferente do legislador, apenas pode exercer-se em virtude das leis; mas não existe nenhuma categoria particular de atos que sejam, pela sua mesma natureza, atos executivos (Malberg, 2001, p. 449-461 – tradução livre – grifo nosso)”.
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Vivemos sob determinadas condições de violação distópica da Constituição?
A violação distópica da Constituição agride violentamente as regras, as interpretações correntes de tais regras, sua própria aplicação – como vinha sendo realizado –, os direitos fundamentais, a lei em espécie, e mais profunda e profusamente o Estado de Direito. Portanto, viola-se o equilíbrio, a ideia de durabilidade, a estabilidade normativa e o bom senso (lido agora como jurisprudência: iuris prudentia), como a nos mergulhar em tempos em que a única certeza é a incerta compreensão dos fatos. Portanto, se a Constituição é (ou era) uma utopia a ser buscada, realizada sob as condições idearias e objetivas da cultura e da sociedade, esta grave violação promove uma reversão não apenas de uma suposta hermenêutica, mas, sobretudo, dos fatos. Chegamos então à distopia, passando pela distorção. O requinte aqui é a decisão de HC em que se permite ao defunto ir ao encontro do irmão preso – e não o contrário. A distopia, historicamente, sempre ressoa à perda dos sentidos (mas, colidente à racionalidade) e acaba no caminho da vingança. Em síntese, perde-se o bom senso.
Um dos critérios que esquecemos – na vigência do realismo político – é a institucionalização dos procedimentos do Estado de Exceção. Como no Princípio Democrático negado, violado, a exceção também cuidas de estabelecer dimensões materiais e dimensões organizativo-procedimentais. Ilações e conjecturas são tratadas como provas, no Estado Judicial ou Estado de Não-Direito (Canotilho, s/d).
E mais, este é o caso de pensarmos a presença do Estado de Exceção (Agamben, 2004) como sombra do absolutismo ou, antes disso, como rebotalho mal-disfarçado do instituto golpista que teve emprego certeiro com o general romano Caio Júlio Cesar – e, por isso, resultando no apelido de cesarismo?
A expressão cesarismo vem de analogia ao general romano – como tratamos de orquestração institucional, do próprio Poder Político, aqui denominamos de Cesarismo de Estado. Nosso quesito, neste texto, portanto, é um só:
• Por uma hermenêutica democrática, que não se submeta ao realismo político, mas somente à realidade dos fatos iluminados pela Carta Política de 1988.


Vinícius Alves Scherch
Mestrando em Ciências Jurídicas - UENP
Universidade Estadual do Norte do Paraná

Vinício Carrilho Martinez (Pós-Doutor em Ciência Política)
Professor Associado da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar
Departamento de Educação- Ded/CECH


BIBLIOGRAFIA
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo : Boitempo, 2004.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estado de Direito. Lisboa : Edição Gradiva, 1999.
DI PIETRO, Maria Sílvia Zanella. Direito administrativo, 22. ed. São Paulo: Atlas, 2009.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. (Org. Carlos Nelson Coutinho). Volume III. Nicolau Maquiavel II. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 2000.
LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal. Volume único. 5ª ed. Salvador: JusPodivm, 2017.
MALBERG, R. C. de. Teoría general del Estado. 2. reimp. Cidad México: Facultad de Derecho/UNAM : Fondo de Cultura Económica, 2001.

Sobre o autor
Vinício Carrilho Martinez

Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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