Um dos grandes expoentes da divisão social e intelectual do trabalho – na verdade, um acirrador da divisão e da luta de classes sociais –, Henry Ford teria dito que “o pensar” é incômodo: “Pensar é o trabalho mais difícil que existe. Talvez por isso tão poucos se dediquem a ele".
Provável seguidor de Durkheim, Ford (talvez) não lhe acompanhou em tudo, ou num dos pontos mais relevantes: “mas todo o mundo, agora, é obrigado a não ser ignorante” (em seu Da Divisão do Trabalho Social). Com forte esperança na ciência e no Iluminismo, Durkheim, assim como Weber e Marx, outros grandes da sociologia, era seguidor do Esclarecimento. Por isso, juridicamente, a ninguém a dado o direito de alegar ignorância da lei.
Na esteira do filósofo Kant, os três acreditavam piamente no “sapere aude”, isto é, na crença do dever em desafiar a ignorância, em apostar que devemos “ousar-saber”, procurar incansavelmente o saber das coisas. A diferença política está em saber (ou crer) se todos são capazes da busca do saber ou se será tarefa de alguns abnegados ou de uma classe social – afinal, em nome do “governo dos ilustrados” já se fez muita barbárie e injustiça. No capitalismo acirrado, quem deve sair da escuridão da caverna?
Fiz ou retomei essas associações porque, um dia desses, lembrei-me de um fato relevante (mais dos outros, do que de mim) sobre a deficiência física. Há muito tempo, ainda na graduação, namorei uma moça que também despertava interesse em outro sujeito. Disso soube mais tarde e quando ela me informou foi para dizer do inconformismo que eu provocara.
O outro sujeito lhe teria perguntado algo como: “ – O que ele tem de melhor?”. A referência direta era quanto à minha deficiência física e o porquê dela ter-me escolhido e não a ele (que se julgava “perfeito”). Obviamente que nunca respondi à pergunta, mas sempre soube que o “melhor em mim” jamais faria tal pergunta. E acho que por isso me escolheu.
Esta lembrança acabou me trazendo outro pensamento: por que muitos se incomodam quando uso o secador de mãos, mais prolongadamente, nos banheiros públicos? Devem, imagino, pensar que estou fazendo cera ou que a frescura foi longe demais. A verdade, neste caso, é que, se tivessem calma, pensariam diferente: “por que seca tanto as mãos?”. Se pensassem um pouco mais, veriam que uso muletas e provavelmente chegassem a alguma conclusão inteligente: as mãos escorregam nas muletas, então, é preciso enxugar mais do que os outros.
A menor pressa em resolver os próprios problemas, colocando-se no espaço público em que os diferentes precisam conviver, provocaria algum lampejo de bom senso. A educação, do berço e da escola, promoveria um necessário olhar ao redor de si, um descentramento, um desligamento do umbigo, para analisar as circunstâncias e as ponderáveis de cada pessoa, antes de seguir qualquer conclusão. Encontrariam mais opções. E fariam melhores escolhas.
Isto é o que os antigos chamavam de sabedoria. A lógica, o respeito, a convivência vem da escola, mas também do berço. A sabedoria vem da calma, em viver com calma. A mesma “iuris prudentia” que falta a muitos magistrados atualmente: aplicar o direito com calma, prudentemente, zelosamente, não-impetuosamente.
Como temos pressa em tudo, em ânsia de acumular e consumir mais e mais, não vemos nada ao redor, e retiramos o entorno da sociabilidade. Agimos como seres sociais indiferentes ao social. E é obvio que isto gera uma Vida Social (como conceito) repleta de preconceitos, indiferença, discriminação, exclusão. Quando deveria haver o exato contrário: incluir para conhecer mais e, assim, diversificar, ampliar o leque de informações, o próprio conhecimento e as formas de convivência.
Se lembrarmo-nos de que pré-conceito significa tomar direções, ou emitir juízos ou pareceres, baseando-se em algo não sabido efetivamente, ao menos não de acordo com os fatos reais que possam ser verificados, porque é uma espécie de posicionamento que antecede o conhecimento da questão em si e que possa ser verificado e comprovado pela lógica ou pelo empirismo (provas) – daí o “pré”, o que é “prévio” e vem antes do conceito, ou seja, antes do conhecimento efetivo –, então, pela epistemologia, temos de reconhecer que o pior do preconceito é basear a ação pela ignorância.
No popular, falamos sem saber, agimos por impulso ou pela bílis, e assim damos “bom dia a cavalo”. Quando falamos, corriqueiramente, sobre qualquer coisa na “coisa em si”, não estamos distantes de alguma ignorância, uma vez que “coisa” é apenas ausência de vocabulário, de significado, de equivalentes relevantes. Ainda que só assemelhados, por analogia, precisamos de sinônimos validáveis.
O mesmo ocorre quando acreditamos em Fake News ou fofocas. Se bem que, no caso da fofoca, a implicação é ainda mais grave; diz-se que “o fofoqueiro é o policial do status quo”, porque controla e inibe a ação dos outros. O mesmo valeria para algumas delações premiadas, em que se pode inventar calúnias sem receio de represálias. O que esses casos têm em comum é a ignorância dos fatos; o que os difere é a grandeza e a intencionalidade da mentira. Efetivamente, se e quando não se faz com conhecimento dos fatos, “quem conta um conto, aumenta um ponto”. E faz besteira.
Em tese, isto, por si, justifica o Princípio da Ampla Defesa e os vários graus de jurisdição. Portanto, todas essas conclusões e suas consequências agravam-se por se basearem as ações e as decisões na ignorância. Como se viver na ignorância (desconhecimento das causas, repercussões e circunstâncias) fosse uma rotina a seguir.
Todavia, se aplicarmos a “curvatura da vara”, entortando pelo caminho inverso, o equivalente seria a sobrevalorização do saber, do conhecimento, da ciência, da investigação refletida dos fatos e na ponta de tudo, como se sabe, estaria redobrada a urgência da educação.
Este agir pela consciência (dos fatos e de si: diante de tais fatos) equivale, por si, à ideia da práxis: o conhecimento que transforma a ação. E que, ainda, permite antecipar a conclusão do quanto a educação é política – no dizer de Saviani, um dos maiores educadores nacionais. A práxis, por fim, é um tipo de “concreto-pensado” (como queria Kosic) e a educação é sua ponta de lança.
Pela lógica, da educação é esperado retirar os indivíduos da calmaria da ignorância, que os faça perguntar, “ousar-pensar”, desafiar, refletir profundamente, profusamente, como se fosse um hábito novo em sua vida. Isto é o que faz, iminentemente, o intelectual. Mas, como todo ser humano é dotado da potência racional, logo, todos são capazes do trabalho intelectual de avaliar com conhecimento as questões e as circunstâncias envolvidas.
O bom senso dos antigos – o senso comum transformado pela prudência: agir com parcimônia – é um bom indício do que falamos. Resta-nos a tarefa de estudar, conhecer, avaliar e não-faltar com a verdade. Por isso, a educação é revolucionária e tão temida: a educação, se pautada no conhecimento (e não no adestramento) é crítica por definição de sua natureza. E isto é fazer da educação um ato político (como ensinou Paulo Freire).
Vinício Carrilho Martinez (Pós-Doutor em Ciência Política)
Professor Associado da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar
Departamento de Educação- Ded/CECH