Dentre outras, vejo como problemáticas ou discutíveis as seguintes medidas ou omissões contidas no pacotão anticrime:
1) Regime inicial em regime fechado obrigatório em todos os casos de reincidência ou de crime habitual ou reiterado ou profissional. O STF tem jurisprudência pacífica que não permite que a lei fixe regime inicial fechado obrigatório. Deve-se respeitar o princípio da individualização da pena. Todo tipo de reincidência iria obrigar o regime fechado? E se o crime anterior é culposo? Esse dispositivo tem potencial para explodir a população carcerária, porque quase 80% dos egressos voltam a delinquir.
2) Regime inicial fechado obrigatório nos crimes de corrupção e peculato. São crimes que merecem dura reprovação, mas o STF tem jurisprudência pacífica que não permite que a lei fixe regime inicial fechado obrigatório. Essa mesma observação vale para o roubo cometido com arma de fogo ou explosivos. Nesses crimes há agora previsão de perdimento de bens, o que é muito adequado.
3) Silêncio quanto aumento de pena para políticos envolvidos com tráfico de drogas, milícias ou crimes contra a Administração Pública. O político é eleito para proteger a sociedade, não para cometer crimes contra ela, juntando-se a traficantes, milicianos (grupos paramilitares) ou com as elites bandidas do poder econômico e financeiro. Sua pena deveria ser dobrada.
4) As medidas de endurecimento penal, em regra, não reduzem a criminalidade, quando não acompanhadas de políticas públicas de educação para este fim e da certeza do castigo. Prevenção do crime se alcança com educação obrigatória para todos, em período integral, até os 18 anos. Sem educação de qualidade para todos, em período integral, até os 18 anos, toda política criminal no Brasil tem resultado em fracasso. Já foram 180 reformas penais de 1940 até hoje. O pacotão ora em debate seria a 181ª lei penal. Nunca uma lei penal diminuiu qualquer crime no Brasil.
5) As medidas propostas não costumam reduzir a impunidade, salvo quando acompanhadas de políticas públicas de infraestrutura para a polícia judiciária (que investiga os crimes). Sem melhorar as polícias os índices de apuração dos crimes continuarão baixos (cerca de 10% a 20% nos homicídios, por exemplo).
6) Todo tipo de acordo penal deve ser gravado para que o juiz possa verificar sua legalidade. Falta essa previsão.
7) A reforma deveria ter dado tratamento especial aos crimes cometidos mediante o uso de explosivos. É previsível que essa modalidade de crime vai crescer enormemente no nosso país. São atos de terrorismo, que tendem a se repetir frequentemente.
8) Ausência de previsão mais específica acerca do monitoramento do dinheiro, particularmente nos crimes contra a Administração Pública, financeiros, econômicos, sonegação fiscal, evasão de divisas e lavagem de dinheiro.
9) Execução da pena em segundo grau por lei ordinária e não por Emenda Constitucional. É indispensável que haja execução da pena após a decisão em segundo grau. Sou totalmente favorável, nos termos da Convenção Americana que diz que a presunção de inocência é derrubada depois dessa etapa. Temos que conceituar o que se entende por coisa julgada, via Emenda Constitucional. A disciplina do tema via lei ordinária vai permitir que a polêmica continue. Não é correta a execução provisória da pena. Ela tem que ser definitiva.
10) Execução da pena após condenação no Tribunal do Júri. O Tribunal do Júri é órgão de primeiro grau. Contra suas decisões cabe recurso para revisão dos fatos e das provas. Somente quando os fatos e as provas são analisados duas vezes é que cai a presunção de inocência. Após a decisão de segundo grau deveria ocorrer a coisa julgada, estabelecendo-se que todos os recursos posteriores são ações rescisórias constitucionais.
Dentre outros, vejamos alguns acertos:
1) Tipificação do Crime de Caixa Dois (eleitoral), sem anistia dos crimes anteriores. O crime previsto no art. 350 do Código Eleitoral continua intacto (fazer declaração falsa para a Justiça Eleitoral). O novo crime incrimina condutas paralelas à contabilidade. É o famoso “por fora”. O novo crime envolve caixa dois e caixa três (quem paga por fora diretamente despesas com gráfica, por exemplo). Pena de 2 a 5 anos de reclusão. Todos que colaboram para o crime do candidato também serão responsabilizados, incluindo as pessoas do partido que tenham agido dolosamente. A pena é aumentada de 1/3 a 2/3 se algum agente público concorrer para o crime.
2) Nos crimes hediondos ou equiparados (tortura, tráfico ou terrorismo) que envolverem a morte da vítima (latrocínio, homicídio qualificado), a progressão de regime agora exige 60% da pena (contra 40% anteriormente). Correto o aumento (estamos falando de vida humana). Mais: o condenado tem que ter mérito (bom comportamento carcerário) e condições pessoais favoráveis (voltou a exigência do exame criminológico).
3) Novas regras dificultando a impunidade via prescrição penal. Agora, enquanto pendentes embargos de declaração e recursos nos Tribunais Superiores, estes quando inadmissíveis, não mais corre prescrição. A reiteração de embargos para ganhar tempo de prescrição acabou. Outra novidade: não só a sentença (o anteprojeto esqueceu de dizer condenatória), senão também o acórdão (do tribunal) interrompe a prescrição (toda contagem volta a zero). Esse acórdão, evidentemente, tem que ser condenatório.
4) Aumento de ½ da pena nos casos de crimes relativos a armas de fogo. Esse aumento só vale para integrantes de empresas de segurança ou para quem possui antecedente criminal com condenação transitada em julgado. Pode o crime ser de porte ilegal ou posse ilícita, pouco importando se a arma é de uso restrito ou não.
5) Acordo de não persecução penal entre Ministério Público e autor do fato. Esse acordo só pode ocorrer quando a pena máxima for inferior a quatro anos (art. 28-A, caput). No § 1º o anteprojeto fala em pena mínima inferior a quatro anos. Há um conflito entre tais dispositivos. O correto é o segundo. Trata-se de uma suspensão da denúncia, via acordo extrajudicial, com presença de advogado, que depende de homologação do juiz. Se o réu cumprir todas as condições acordadas, extingue-se a punibilidade, sem criar antecedente criminal. Compete ao juiz fiscalizar a proporcionalidade, legalidade e voluntariedade do acordo. O ideal seria gravar o acordo (facilitando-se a fiscalização da sua lisura).
6) “Plea bargain” (sistema americano tropicalizado). Exige recebimento da denúncia. É o acordo para a aplicação imediata da pena, cabível em todos os crimes (teoricamente). Nos casos da lei Maria da Penha há Convenção Internacional impedindo o acordo. Após a confissão confirmada perante o juiz, uma série de benefícios podem ser acordados entre as partes, sendo determinante a rápida solução do processo. Há previsão da reparação dos danos à vítima. Só a confissão judicializada derruba a presunção de inocência. Compete ao juiz verificar a razoabilidade da pena proposta, legalidade do acordo assim como a existência de outras provas. São aplicáveis os princípios da suficiência da pena, da proibição de excesso e da vedação da proteção deficiente. Se o réu for reincidente, a pena será iniciada em regime fechado.
7) Regulamentação do uso da videoconferência na instrução penal. Passa a ser regra geral, salvo quando houver impossibilidade técnica de fazê-la. Em todos os atos em que o réu preso deva participar, cabe videoconferência.
8) Informante do bem (informante colaborador). Isso vem do direito anglo-saxão. Se chama Whistleblower. Nos crimes contra a Administração Pública (corrupção, peculato etc.), premia-se o informante que colaborar com a Justiça (com até 5% do valor recuperado pela Administração Pública). O informante será protegido e não pode sofrer qualquer tipo de retaliação ou responsabilização. Sua identidade será preservada, salvo quando ele mesmo autoriza sua revelação. Ninguém será condenado só com base nessa informação.
9) Restrição das saídas temporárias (“saidinha”). Nos casos de crimes hediondos, tortura e terrorismo (o anteprojeto não fala em tráfico de drogas) acabam as saídas temporárias. A medida é acertada.
10) Endurecimento contra o crime organizado. Lideranças armadas das organizações criminosas iniciarão o cumprimento da pena em regime fechado (o STF não tem admitido isso, por força do princípio da individualização da pena). O preso não poderá progredir de regime quando mantém vínculo associativo com a organização ou associação criminosa.
11) Admissão de acordo nos casos de Improbidade Administrativa. Trata-se de medida acertada, mas faltou prever a obrigatória participação (em qualquer caso) do Ministério Público.