Resumo
O presente artigo tem por objetivo examinar, através de uma revisão de bibliográfica de obras, artigos e revistas científicas, o desenvolvimento das relações jurídicas no Brasil colônia tendo como plano de fundo a conjuntura sociopolítica da época, a julgar pelas relações de poder entre os estamentos sociais e destes com as normas jurídicas. A partir da análise proposta, chegou-se a algumas ponderações acerca da organização política brasileira nos seus anos de submissão à Metrópole e do nascimento do direito brasileiro, que veio a incorporar características do direito português na sua propositura. Prova inconteste deste último fato são as marcas deixadas pelas ordenações reais portuguesas, principalmente as filipinas, no ordenamento jurídico nacional, mesmo após a independência em 1822.
Palavras-chave: Brasil colônia. Organização política. Ordenações reais portuguesas.
1 INTRODUÇÃO
Esta obra determina-se a retratar o Brasil enquanto colônia de Portugal, iniciando-se com uma breve análise social, econômica, política e cultural, objetivando-se aumentar o horizonte de saberes para uma compreensão de como se davam as reações jurídicas nesta época. Pretende-se com este artigo analisar o passado colonial, patrimonialista e escravocrata, consequência da tradição lusitana. O patrimonialismo manifestava-se pela dominação tradicional das oligarquias agrárias que possuíam grandes propriedades de terra destinas à produção e extração de produtos de interesse da metrópole.
Constata-se que a mentalidade ideológica de submissão aos estados centrais perpetuou uma sociedade totalmente voltada para o comércio exterior, o que dificultou o desenvolvimento local. No Brasil colonial, a mão de obra constituída de escravos negros tornou-se predominante depois do fracasso em se usar mão de obra indígena, por conhecerem o território e ainda contar com a ajuda dos jesuítas. No espaço institucional da colônia predominava a burocracia patrimonial, composta de donatários, senhores de escravos e proprietários de terra, entretanto o rei se impunha através da nomeação de governadores, que exerciam mandato de 4 anos e possuíam competência administrativa e militar.
Depreende-se da leitura deste texto que a colonização do Brasil iniciou-se, de fato, pela composição das capitanias hereditárias e sua doação a portugueses que fossem suficientemente abastados para colonizar e defender sua terra. Este sistema não obteve sucesso, no entanto elas serviram para criar núcleos de povoamento por todo o litoral da colônia. No ano de 1549, foi instituído o sistema de governadores gerais, sendo que Tomé de Sousa, o primeiro, trouxe de Portugal o Regimento do Governador-Geral, de grande importância administrativa e diminuindo o arbítrio dos senhores das terras coloniais. Ao redor do governador-geral outros órgãos políticos foram se desenvolvendo.
No Brasil colonial, no que tange ao aspecto jurisdicional, os juízes exerciam funções que excediam os atos jurisdicionais e adentravam o campo administrativo. Além disso, as autoridades portuguesas possuíam grande poder, o que frequentemente gerava crises com os colonos. O Brasil, subjugado ao pacto colonial, utilizava-se das leis portuguesas. Portugal, desenvolveu um conjunto de leis para reger os valores civis e penais da sociedade à época. O Rei João I iniciou um trabalho de desenvolvimento de leis em 1385, juntamente a um conselho legislativo, e perdurou até o reinado de Afonso V. Esta obra resultou na primeira ordenação: as Ordenações Afonsinas, a primeira das ordenações reais, as quais consistiam em Códigos jurídicos, revestidos fortemente pelo direito canônico, adotados por Portugal. Por se tratar de uma Colônia portuguesa, o Brasil adotava sua legislação para resolver seus conflitos internos. Em seguida, desenvolvem-se as Ordenações Manuelinas, como consequência do crescente aumento do número de leis extravagantes em vigência, o que fez com que o Rei D. Manuel desejasse que se imprimissem estas leis e as compilasse. As Ordenações Filipinas foram fruto da reunião das Ordenações Manuelinas e das leis extravagantes vigentes na época em que Portugal estava sob domínio espanhol, e estas ordenações exerceram forte influência sobre o direito brasileiro.
2 BREVE ANÁLISE SOCIOECONÔMICA E POLÍTICO-CULTURAL DO BRASIL COLONIAL
Inicialmente, antes de se entrar no direito propriamente dito, existe a necessidade premente de se analisar a estrutura política e econômica brasileira no período colonial, que foi de 1500 a 1822. A partir deste contexto evolutivo consegue-se explicar as relações sociais como um produto do passado colonial, patrimonialista e escravocrata e, a partir desta compreensão, entender o sistema jurídico neste período histórico. A colonização lusitana permitiu que no Brasil se implantasse um direito moderno marcado pelo advento de uma sociedade liberal e individualista.
A principal marca desta época de Brasil colônia é o patrimonialismo, que consistia na dominação tradicional das oligarquias agrárias, que possuíam grandes propriedades de terra destinas à produção de produtos tropicais. Neste contexto, era difícil se diferenciar as esferas do público e do privado, e esta elite agrária tinha pleno domínio dos recursos econômicos, ainda que toda a produção fosse destinada ao mercado consumidor europeu
No Brasil reinava uma mentalidade ideológica econômica de submissão aos estados centrais de capitalismo dominante, e na outra margem, imperava o domínio espiritual católico, que exercia grande influência no aspecto jurídico. Esta mentalidade, inicialmente, conservadora contribuiu para a formação de uma sociedade totalmente voltada para o comercio exterior, o que retardou o desenvolvimento de uma ideia de nação. Neste plano, faz-se importante as preleções expostas em artigo por Ábda Tércia Borges Pereira:
A dinâmica emanada pela política metropolitana tinha como base um conjunto de leis que modelavam o aparelho burocrático português garantindo a manutenção territorial dos domínios coloniais que passavam a ser incorporadas naquele momento. O modelo burocrático implantado na política administrativa colonial era composto por um substrato doutrinário do Direito lusitano, que mediante influência do cristianismo estabelecia a prática do aparelho institucional através da ação missionária, catequética e da sanção moral que tinha como base as Ordenações portuguesas. (PEREIRA, 2013, p.1)
Toda a produção da colônia era de produtos tropicais destinados a abastecer o mercado consumidor europeu. Estes produtos eram revendidos na Europa visando-se ao lucro. Enquanto isso, a metrópole tinha como dever a gestão deste comércio e a aferição de lucro para a coroa portuguesa. Para exercer controle, Portugal criava uma série de restrições comerciais, como evitar comércio com outros países, bem como não permitir o desenvolvimento comercial no interior da colônia, pois sabiam do risco da concorrência interna e externa. Conforme Wolkmer, na obra História do Direito no Brasil:
Nessa perspectiva, o Brasil-Colônia só poderia gerar produtos tropicais que a Metrópole pudesse revender com lucro no mercado europeu; além disso, as outras atividades produtivas deveriam limitar-se de modo a não estabelecer concorrência, devendo a Colônia adquirir tudo o que a Metrópole tivesse condições de vender. Para Portugal, o Brasil deveria servir seus interesses; existia para ele e em função dele. Efetivamente, o Brasil, sendo colonizado pelo processo de exploração, criou as condições para agricultura tropical centrada economicamente em torno do cultivo das terras, transformando-se numa grande empresa extrativa destinada a fornecer produtos primários aos centros europeus. (WOLKMER, 2002, p. 38)
Neste contexto do pacto colonial, verifica-se que o país foi alicerçado sobre o sistema latifundiário e escravocrata. A base da ocupação territorial era o latifúndio, com cultura única em cada região da colônia, como o açúcar, por exemplo, e destinada à exportação:
Como o litoral brasileiro não apresentava recursos naturais que viabilizassem a exploração extrativa pura e simples, como acontecia no interior das colônias espanholas, com o ouro e a prata, tornava-se uma necessidade a criação de uma empresa colonial lucrativa. Então, a Coroa portuguesa decidiu desenvolver, a partir de 1530, a agroindústria açucareira e produzir açúcar em grande quantidade para abastecer o mercado europeu. O corte e a exploração de madeira prosseguiu durante todo o período colonial. No entanto, a ênfase se deslocou da madeira de tinta para as variedades utilizadas para a fabricação de mobiliário ou a construção de navios. (SCHWARTZ, 2004, p.371).
Pelo excerto acima, verifica-se que a atividade econômica predominante durante o período colonial foi a produção de açúcar, além de produtos do extrativismo, como a madeira. Ambos foram os motores do desenvolvimento inicial da colônia, e que contribuíram para atratividade da colônia, dando inicio a um fluxo migratório, que culminou no surgimento de diversas vilas e povoados.
A mão de obra escrava abastecia a colônia e se tornou predominante depois do fracasso em se usar mão de obra indígena, dado que estes conheciam o território e ainda contavam com os jesuítas como opositores dos escravocratas, pois entendiam que os índios deveriam ser convertidos ao cristianismo. Dentro da sociedade brasileira além dos latifundiários existiam pequenos proprietários de terra, que eram índios, mestiços e negros, mas ainda assim com pouca visibilidade social. Dentro do espaço institucional predominava a burocracia patrimonial, basicamente portuguesa, era composta de donatários, senhores de escravos e proprietários de terra.
Institucionalmente, o rei se impunha através da nomeação de governadores, que exerciam mandato de 4 anos e possuíam competência administrativa e militar. A dominação política era um embate constante, de um lado os donos de terras e engenhos, representantes das elites agrárias, atrelados ao âmbito do particular e de outro a coroa portuguesa, com seu proceder centralizador, representando o âmbito do público através dos governadores gerais e da administração legal. E, ocupando espaços, ainda que pequenos, os escravos, negros, índios e colonos. Dentro deste cenário, deu-se o aparecimento do estado brasileiro, mas não como uma evolução natural, mas como imposição do império colonizador.
A legislação pátria não nasceu a partir de uma evolução linear e gradual, mas como um projeto da metrópole, herdeira da tradição romana. O Brasil colônia teve influência quase que exclusivamente do ordenamento jurídico português, em detrimento da influência de negros e índios, que pouco influenciaram, pois não conseguiram impor seus costumes, suas vontades e suas leis. Ficaram submetidos à tradição europeia, baseada em parte da legislação eclesiástica.
3 SOBRE ORGANIZAÇÃO POLÍTICA COLONIAL
De 1520 a 1549 foi marcante, dentro do regime de posse da terra, as capitanias hereditárias, em que se pode destacar as cartas de doação e os forais, com instrumentos de outorga de direitos. As cartas de doação e os forais eram mecanismos para povoamento e enriquecimento. As cartas de doações conferiam legitimidade da posse, além de direitos e privilégios aos donatários. Essas cartas de doações eram documentos entregues ao capitão donatário, que lhe transferiam a posse da terra e permitiam a fixação e prosperidade de uma comunidade. O uso deste instrumento foi comum entre os séculos XII e XVII na Europa. Os forais, por sua vez, estavam relacionados aos tributos e sesmarias, estabeleciam deveres e privilégios e visavam ao aferimento de lucros, além de determinar os limites geográficos das capitanias, atribuíam ao donatário o poder de dizer o direito civil e criminal. Neste ponto, cabe observar que a palavra foral, deriva de foro, que deu origem à fórum.
Como o sistema de capitanias hereditárias não teve o sucesso que se esperava, então mudanças tornaram-se necessárias e perpassaram pela implantação do sistema dos governadores gerais:
Diante do fracasso das capitanias, tratou a Metrópole de dar à Colônia outra orientação administrativa chamada de sistema de governadores-gerais, surgindo dessa forma a utilização de certo número de prescrições decretadas em Portugal, que reuniam desde Cartas de Doação e Forais das capitanias até Cartas-Régias, Alvarás, Regimentos dos governadores-gerais, legislação canônica, ius Communee a mais importante compilação que unificar o Direito lusitano, as Ordenações Reais. (SCHNEIDER, 2012 p.8)
E neste contexto, importantes foram as ordenações reais, que consistiam de um conjunto de leis e costumes, entre as quais, as Ordenações Afonsinas, as Ordenações Manuelinas e as Ordenações Filipinas. Entretanto, devido à insuficiência das ordenações, houve a necessidade de criação de leis extravagantes, principalmente em termos de matérias comerciais. Essa legislação especial visava à manutenção do poder dos fazendeiros e como objetivo maior, beneficiar a metrópole através do pagamento de impostos e tributos.
De modo geral as leis do Brasil colônia impunham um direito segregador e discricionário, não visava a fazer justiça, mas tão somente proteger os interesses do governo real, porém sua implementação era precária dado o vasto território. No século XVII, foi promovida uma série de reformas pelo Marquês de Pombal, entre elas a lei da boa razão, de 1779, que visava ao regramento quanto ao modo de interpretação nos casos de omissão, imprecisão e lacunas.
Durante aproximadamente dois séculos, imperou a vontade da coroa portuguesa em detrimento da vontade dos colonos, deste modo caracterizando uma população completamente subjugada. Os poucos colonos livres, indígenas e os escravos eram submetidos aos ditames dos donatários das capitanias, que não hesitavam quanto à aplicação de castigos e penas.
A colonização do Brasil iniciou-se, de fato, pela composição das capitanias hereditárias, que foi a divisão da colônia em doze territórios irregulares, todos fazendo limite com o oceano, e sua doação a portugueses que pudessem morar no Brasil e que fossem suficientemente abastados para colonizar e defender sua terra. Dentre as doze capitanias hereditárias, foram poucas as que se desenvolveram, no entanto elas serviram para criar povoamento disperso e praticamente sem contato uns com os outros, colaborando para a composição de centros de interesses econômicos e sociais diferenciados nas várias regiões da colônia, e isto repercutiu na estruturação do futuro estado brasileiro.
3.1 O SISTEMA DOS GOVERNADORES GERAIS
No ano de 1549, foi instituído o sistema de governadores gerais e com isto foi introduzido um elemento de unidade na organização da colônia, que passou a existir concomitantemente com as capitanias hereditárias. Consoante artigo de Leandro Fazzolo Cezario:
Em 1530 chega ao Brasil a primeira expedição colonizadora, chefiada por Martim Afonso de Sousa. Foi-lhe concedido plenos poderes, tanto judiciais quanto policiais; assim como aos donatários das capitanias hereditárias, que também gozavam dos mesmos poderes. Devido a abusos nas funções judiciais que alguns cometiam, houve uma estruturação do judiciário (que iniciou-se em 1549, com a instalação do Governo-Geral, por Tomé de Sousa).
Junto com o Governador-Geral veio o Desembargador Pero Borges, que desempenhou a função de administrador da Justiça, no cargo de Ouvidor-Geral. (CEZARIO, 2009)
Tomé de Sousa, o primeiro governador geral trouxe de Portugal um documento de grande importância no Brasil colonial, o Regimento do Governador-Geral, que possuía grande importância administrativa, delimitando funções, exigindo o respeito às leis de Portugal, diminuindo o arbítrio dos senhores das terras coloniais, de certo modo, implantando uma ordem jurídica.
Deste modo, o governador-geral possuía poder político, bem como poder militar, ou seja, representava Portugal no Brasil. E, ao redor do governador-geral outros órgãos políticos foram se desenvolvendo, como o ouvidor-mor, que era o responsável pela justiça, o procurador da fazenda, que era o responsável por recolher os tributos e impostos à coroa real, e o capitão-mor da costa, que tinha como dever proteger militarmente o litoral.
3.2 A ESTRUTURA POLÍTICA DOS MUNICÍPIOS
No período colonial houve zonas de maior desenvolvimento urbano, normalmente próximas a regiões de produção agrícola, e nestes centros se desenvolveu uma organização municipal que determinou grande influência no sistema de poderes da colônia. O poder político local era dominado pelo Senado da Câmara ou Câmara Municipal. Este órgão era composto de vários oficiais, igualmente ao sistema de Portugal. Seus integrantes eram escolhidos dentre os ditos “homens bons” da terra, que eram aqueles que possuíam grandes propriedades rurais; não eram apenas os cargos ligados à administração colonial que demandavam de “homens bons”, mas também aqueles ligados ao, ainda insípido, judiciário, conforme está exposto na obra de Arno Wehling e Maria José Wehling:
A condição exigida para ocupar o cargo de juiz ordinário era a mesma dos demais membros da câmara, isto é, ser "homem bom" do município. A presença ou não nestes cargos de trabalhadores manuais, comerciantes ou portugueses variou de época e região, com alvarás, decretos e cartas régias reiterando o veto às duas primeiras categorias60. Sua eleição fazia-se à mesma época (oitavas do Natal), trienalmente ou com outra periodicidade, conforme o costume local, sendo eleitores os "homens bons" da comunidade. (WEHLING; WEHLING, 2004, p. 18)
Esta estrutura política predominou nas regiões de produção de açúcar, todavia, nas zonas de exploração de minério, bem como nas zonas de pecuária esta típica estrutura política não encontrou condições de florescer, o que veio a acontecer apenas no período final da colonização, a partir da decadência das minas e com a população estável.
3.3 SOBRE OS JUÍZES E AS CÂMARAS MUNICIPAIS
Os juízes exerciam funções que extrapolavam os atos de caráter puramente jurisdicionais e adentravam ao campo administrativo, conforme dito em Wehling. Ainda segundo o exposto na obra de Arno Wehling e Maria José Wehling:
Tal fato assinala, para as câmaras municipais, o mesmo fenômeno encontrado na administração superior: o funcionamento de um modelo sociopolítico e administrativo pré-burocrático, "tradicional" na tipologia weberiana, no qual inexistem fronteiras nítidas entre as diferentes funções executivas, legislativas e judiciárias do estado, que só se explicitariam com o constitucionalismo setecentista. (WEHLING; WEHLING, 2004, p. 19)
Deste modo, depreende-se que as autoridades portuguesas, possuíam um poder quase ilimitado, o que frequentemente implicava crises com os colonos, dentre os quais, muitos já haviam nascido na colônia. A discricionariedade dos juízes só encontrava termo quando confrontada com a legislação da metrópole, que se concretizavam nas ordenações reais.
4 AS ORDENAÇÕES
A diversificação da economia portuguesa, devido ao comércio marítimo em ascensão, sua formação como Estado-nação e seu aumento populacional na Alta Idade Média foram fatores fundamentais que concorreram à necessidade de um conjunto de leis que regessem os valores civis e penais da sociedade à época. O Rei João I iniciou esse trabalho em 1385, juntamente a um conselho legislativo, cujo término só se deu no reinado de Afonso V. Tal obra resultou na primeira ordenação: as Ordenações Afonsinas, que mais à frente serão abordadas.
As Ordenações Reais consistiam, como brevemente citado acima, em Códigos jurídicos – revestidos fortemente pelo direito canônico – adotados por Portugal em diferentes momentos de sua história. Por sua vez, por se tratar de uma Colônia portuguesa, o Brasil adotava a legislação vigente na Metrópole para resolver seus conflitos internos, ou seja, as ordenações vigentes em Lisboa tinham aplicabilidade direta nas suas colônias mar afora.
4.1. AS ORDENAÇÕES AFONSINAS
As ordenações afonsinas consistiam num compilado de 5 (cinco) livros, todos precedidos de um preâmbulo. Versavam sobre assuntos diferentes, entre eles: proibição de abuso por partes dos funcionários reais, garantia das liberdades individuais, proteção dos bens da Coroa, bens e privilégios da Igreja, legislação especial para os mouros e judeus, prerrogativas da nobreza, jurisdição dos donatários de terra atos judiciais, assuntos do direito privado, crimes, penas etc. Apesar de suas inúmeras lacunas, principalmente no concerne à supressão de importantes institutos do direito privado, as ordenações afonsinas foram de extrema importância para a evolução do direito em Portugal, mesmo não se tratando ainda de um Código impresso.
No entanto, por ter vigorado até o ano de 1521, teve pouquíssima aplicabilidade no Brasil recém-descoberto, que só veio a ser efetivamente colonizado pelos lusitanos a partir de 1530, sendo o território brasileiro dividido em 14 capitanias hereditárias no ano de 1534.
4.2 AS ORDENAÇÕES MANUELINAS
Com o crescente aumento do número de leis extravagantes em vigência e com o desejo do Rei D. Manuel de ver a legislação impressa, surgiu a necessidade de elaboração de um novo Código. Para tanto, o rei contratou intelectuais para suprimirem defeitos do antigo código, acrescentarem o que precisava ser acrescentado e modernizar a forma das normas no sentido de tornar o seu aspecto mais legislativo. Aqui ainda existe a influência do direito canônico, porém o direito romano continua sendo a primeira fonte principal de direito.
Em seus 5 (cinco) livros, o Código manuelino traz algumas alterações, correções e acréscimos em relação ao afonsino. Portanto, vale aqui citar alguns deles a título de exemplificação: maior cuidado na apuração da verdade no que diz respeito à imparcialidade; idade mínima de 25 anos para se exercer certos cargos públicos; maior tolerância a mouros e judeus; ampliação do rol de causas a serem submetidas ao procedimento sumário no âmbito do direito processual civil; introdução da ação de assinação de 10 (dez) dias, que deu origem à atual ação monitória; maior clareza no que concerne à contagem dos prazos processuais; inserção do instituto da intervenção de terceiros, como o opoente, o assistente e o terceiro embargante; caracterização do agravo como recurso próprio contra sentença interlocutória simples; consolidação do conceito prior tempore potior iure; a ideia de que pessoa alguma poderia vender ou trocar bem que desigual seja a seu filho, neto ou outro descendente sem a anuência dos demais filhos, netos ou descendentes; abolição da norma medieval que dizia que bens imóveis herdados dos pais ou avós eram submetidos ao regime de transmissão, dando-se preferência aos parentes; dentre outros.
Outrossim, foi nesse período que se conferiu uma interpretação da lei na Casa de Suplicação, na qual caso houvesse alguma dúvida do magistrado quanto à aplicação da norma, este deveria levar o caso concreto ao regedor que, na Mesa Grande, determinaria juntamente com um corpo de desembargadores a medida cabível no caso. De tal prática surgiram os assentos – entendimentos incontestes sobre assuntos jurídicos – que teriam o mesmo peso normativo que as leis por eles interpretadas. Tais assentos correspondem ao que hoje entendemos por súmulas e se tornaram fontes imediatas de direito.
O professor Luiz Carlos de Azevedo[4] versa em artigo publicado em revista da USP, nesse sentido, que no Brasil foi criado em 1808 uma Casa de Suplicação, que por sua vez também proferiria assentos nos limites de sua jurisdição. Tal instituição deu lugar ao Superior Tribunal de Justiça com a independência política do Brasil Colônia.
Quanto às liberdades individuais, vale ressaltar a extrema severidade com que eram tratados os criminosos na época, a julgar:
Não há como pintar com cores amenas o atribulado caminho para a outorga das liberdades: naquele século XVI, e por longo tempo ainda, ficariam os réus à mercê das disparidades de tratamento, segundo suas condições e estado; e à mercê da discricionariedade e arbitrariedade dos juízes, que não lhes davam conta das razões porque haviam sido condenados; e se sujeitavam às violências do sistema, açoites, mutilações, degredo para os limites mais distantes do reino, quando não a pena de morte “por ello" Este era o trato, do qual não se eximiu a legislação penal disposta no Livro V. farta e severa na aplicação de sanções dessa natureza, conforme ocorria, aliás, e na mesma intensidade, nos demais corpos legislativos das nações européias. (AZEVEDO, 1999).
4.3. ORDENAÇÕES FILIPINAS
Fruto da reunião das ordenações manuelinas e das leis extravagantes vigentes na época, nasceram, em 1603, as ordenações filipinas, quando Portugal estava sob o domínio espanhol e teve forte influência sobre o direito brasileiro, talvez por ter vigorado por mais tempo no território tupiniquim (até meados de 1916, quando surgiu o Código Civil brasileiro).
Principalmente ao que se refere o livro V das ordenações filipinas, que trata dos crimes e suas respectivas punições, tal legislação teve um caráter ainda mais conservador e controlador em relação aos seus antecessores no que diz respeito à ordenação da vida social. Com o intuito de fortalecer a soberania real e controlar a população das colônias, o texto em questão traz duras penas àqueles que se atreviam a transgredir as normas da sociedade da época e tentassem contra a soberania do monarca (e, por tabela, do Estado) e até mesmo a fé católica. Como assevera o professor José Maciel (2006), em texto extraído da internet, “[...] As penas previstas nas Ordenações Filipinas eram consideradas severas e bastante variadas, destacando-se o perdimento e o confisco de bens, o desterro, o banimento, os açoites, morte atroz (esquartejamento) e morte natural (forca)”. Buscava-se nessas normas um caráter didático que ensinasse aos súditos, a partir de uma pena já aplicada sobre alguém, que temessem incorrer no mesmo ato delituoso sob pena de sofrerem a mesma punição.
Até mesmo os corpos das pessoas eram disciplinados para o trabalho, de sorte que os “vadios” podiam sofrer punições severas pelo não-trabalho:
Mandamos que qualquer homem que não viver com senhor ou com amo, nem tiver ofício nem outro mister, em que trabalhe ou ganhe sua vida, ou não andar negociando algum negócio seu ou alheio, passados vinte dias do dia que chegar a qualquer cidade, vila ou lugar, não tomando dentro nos ditos vinte dias amo ou senhor com quem viva, ou mister em que trabalhe e ganhe sua vida, ou se o tomar e depois o deixar e não continuar, seja preso e açoitado publicamente. E se for pessoa que não caibam açoites, seja degredado para África por um ano. (ORDENAÇÕES FILIPINAS, liv. 5.º, tit. LXVIII).
Outro ponto relevante é a misoginia presente no Livro V das ordenações filipinas, herdada pelo direito brasileiro, presente substancialmente no Título XXX. Tal norma tratava sobre as mulheres que, aparentemente, mantinham relações com eclesiásticos:
O tipo criminal exigia que o eclesiástico fosse visto por seis meses contínuos, por sete ou oito vezes, frequentando a casa da mulher que a comunidade então entendia como amante do clérigo. A mulher era sentenciada a pagar uma pena de 2 mil réis, bem como era degredada, por um ano, para qualquer ponto em Portugal, desde que fora dos limites da cidade onde o crime (ou o pecado) ocorrera. (GODOY, 2017)
Obviamente, tais penas não eram aplicadas aos homens, evidenciando o caráter machista da sociedade à época. Logo, fica muito claro que para os legisladores das ordenações filipinas era de fundamental importância preservar os valores sociais, religiosos e políticos da nação portuguesa, sendo esse conservadorismo repercutido para as colônias de Portugal, dentre elas o Brasil. As liberdades individuais não eram prioridades, mas sim a soberania centralizadora do rei.
4.4. A INFLUÊNCIA DAS ORDENAÇÕES APÓS A INDEPENDÊNCIA EM 1822
Constata-se que, mesmo após a independência do Brasil em relação a Portugal, em 1822, algumas características das ordenações, principalmente as filipinas, permaneceram pairando sobre a mentalidade jurídica, política e econômica, comercial e social do país em todo o século XIX.
Como preleciona o professor Hugo Vieira (2016), a legislação de 1824 teve como intenção dispor que o Brasil adotaria um código criminal e um código cível. O primeiro surgiu em 1830, suplementado pelo Código de Processo Criminal de 1832, foi o primeiro a legislar matérias penais no território brasileiro após independência que, apesar de suas falhas, como a desigualdade no tratamento dos delinquentes e a não fixação da culpa (apenas do dolo), deu ao país uma legislação penal própria. O professor Maércio Duarte bem coloca em artigo publicado em revista eletrônica que “Apesar de suas inegáveis qualidades, tais como, indeterminação relativa e individualização da pena, previsão da menoridade como atenuante”.
No que se versa sobre a legislação comercial, foi elaborado, em 1850 um Código Comercial, que encontra inspiração no Título XLIV (Livro IV) das ordenações filipinas: “Do contrato da sociedade e companhia: É aquele que duas pessoas ou mais fazem entre si, ajuntando todos os seus bens, ou parte delles para melhor negócio e maior ganho”. Ou seja, já era perceptível uma intenção em regularizar as relações mercantis e, por tabela, os lucros subvenientes.
Quanto à legislação cível, o Brasil sofreu para regulá-la, em várias tentativas frustradas no decorrer do século XIX (vale ressaltar, todavia, que em 1898 foi decretado um Código de Processo Civil na esfera federal, enquanto os Estados formulavam os seus próprios). Se analisarmos nosso atual Código Civil e o Código Civil de 1916, enxergaremos ainda institutos jurídicos remanescentes das ordenações portuguesas.
No que pese o Direito de Família, por exemplo, o professor André Luiz Pedro André, versa
Poucas são as disposições específicas sobre direito de família no Livro IV da Ordenações. As referências encontradas são em sua maior parte reguladoras de obrigações entre marido e mulher, como a Doação de bens móveis, feita pelo marido sem outorga da mulher (Tit. LXIV). Mas apesar deste Livro das Ordenações tratar de direito privado, encontramos disposições concernentes ao direito de família em outros Livros desse corpo legislativo, demonstrando bem a falta de sistematização legislativa da época (ANDRÉ, 2007).
No que tange ao Direito das Obrigações, não existia nas ordenações uma sistemática bem elaborada e organizada tratando sobre o assunto, mas sim alusões a algumas espécies de contratos, como o de compra e venda no título no Título I do Livro IV das Ordenações Filipinas. O direito sucessório, em contrapartida, foi amplamente disciplinado nas Ordenações Filipinas. Ocupou-se de institutos que passaram a ter relevância em nosso ordenamento nos Códigos Civis de 2002 e, principalmente, no de 1916, como o “codicilo”, que seria o último ato de vontade do de cujus quanto à disposição de uma pequena quantia de dinheiro, e a “substituição de herdeiros”.
5 CONCLUSÃO
Diante de todo o exposto nesse artigo científico, fica claro como a evolução do direito brasileiro deu-se consoante às relações políticas, econômicas, culturais e sociais vividas pelo país na época de sua colonização. Observa-se como as relações de poder travadas com a Metrópole portuguesa cercearam e influenciaram diretamente a jurisdição em nosso território e em como o ordenamento jurídico lusitano foi expressamente aplicado nas suas colônias, sob o pano de fundo das ordenações reais.
Em um primeiro momento, foi feita uma breve análise socioeconômica e político-cultural do brasil colonial. Constatou-se que, no período em tela, a organização política brasileira era fortemente marcada pelo patrimonialismo, cuja diferença entre a esfera pública e a privada cambaleava em uma linha tênue. A produção econômica era totalmente voltada para o comércio exterior, sob o véu do pacto colonial, em que pesava o sistema de latifúndio e o uso de mão de obra escrava.
Em seguida, notou-se que a organização política no Brasil colônia deu-se em fases. Entre 1520 e 1549, as capitanias hereditárias marcaram o regime de posse de terras, lançando mão de instrumentos como cartas de doação e os forais. Com o fracasso das capitanias, instituiu-se o sistema de governadores gerais, que trouxe ao Brasil uma noção de unidade. Era o Regimento do Governador-Geral que delimitava as funções administrativas, militares e jurídicas do mesmo.
Quanto à estrutura política dos municípios, o presente artigo levanta que, apesar de ser um território sumariamente rural à época, existiam centros urbanos dominados por 1 (um) órgão principal: a Câmara Municipal. Estas eram dominadas por homens brancos, livres e proprietários de terra. Ressaltou-se ainda que nesse espaço os juízes extrapolavam o exercício de sua função jurisdicional e acabavam por adentrar à seara administrativa, o que só evidencia a falta de uma clara fronteira entre as funções executivas, legislativas e judiciárias do Estado.
Posteriormente, fala-se no peso das ordenações reais para o desenvolvimento do Direito no território tupiniquim. Este conjunto de leis e costumes importados, apesar de não serem suficientes para tratar de todos os casos concretos (fato este que gerou a criação de leis extravagantes), teve profundo prestígio no nosso ordenamento jurídico. Foram abordadas, primeiramente, as contribuições das ordenações afonsivas que tiveram pouca aplicabilidade no Brasil, por terem vigorado até somente 1521. Posteriormente, tratou-se das ordenações manuelinas, que vieram a suscitar a criação de uma Casa de Suplicação no Brasil em 1808, o que trazia maior segurança jurídica à aplicabilidade das normas. Por fim, foram abordadas as ordenações filipinas, as quais deixaram significativas marcas na ordem jurídica brasileira, como a misoginia institucionalizada e forte conservadorismo social.
Destaca-se neste artigo, por último, a influência que as ordenações tiveram sobre o Brasil mesmo após sua independência em 1822. Em matéria criminal, o Código de 1830 foi menos rigoroso e mais humanitário em relação às penas, se comparado com as ordenações filipinas. Em matéria de direito comercial, algumas relações mercantis reguladas em títulos das ordenações filipinas foram abraçadas pelo Código Comercial de 1850. Em matéria cível, por sua vez, as ordenações deixaram como herança para os Códigos Civis de 1916 e 2002 alguns institutos de direito de família, como o casamento; de direito das obrigações, como o contrato de compra e venda; de direito sucessório, como o codicilo.
REFERÊNCIAS:
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