A Intersubjetividade na Aplicação e Interpretação do Direito: Falha ou Necessidade?

21/02/2019 às 14:58
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A interpretação do Direito é um tema vasto, a presente análise pretende se aprofundar nos aspectos sensíveis da psique humana que influenciam nesse procedimento como um todo, dando origem à pluralidade de ideias e decisões, inclusive, conflitantes.

A interpretação do Direito é um tema vasto, a presente análise pretende se aprofundar nos aspectos sensíveis da psique humana que influenciam nesse procedimento como um todo, dando origem à pluralidade de ideias e decisões, inclusive, conflitantes.

Para os seguidores fieis da teoria pura do Direito, onde tem por representante o filósofo alemão Hans Kelsen, a interpretação do direito se dá através do próprio conjunto positivado, com base num ideal lógico-jurídico ou jurídico-positivo.

Esse entendimento pode ser fortalecido com o estudo da teoria da autopoiese do Direito desenvolvida pelo sociólogo alemão Niklas Luhmann. Tal teoria conceitua o Direito como um sistema fechado que constrói sua própria realidade, através de filtros, que podem ser elencados como o procedimento de formação de normas jurídicas.

Pela teoria da autopoiese, o Direito se comunicaria com outros sistemas, porém, para um fato ser assimilado, precisaria passar pelo “filtro”, preenchendo os requisitos e pressupostos para construção de seu significado e obtenção de efeitos jurídicos.

Acontece que fazendo uma análise crítica sobre o conteúdo de diversos julgados, percebe-se que essa fama de ciclo/sistema fechado ou puro seria uma farsa ou estaria num plano utópico muito acima da realidade experimentada.

A atividade de interpretação das normas é a dotada de intersubjetividade, o que pode ocasionar olhares diferentes sobre um mesmo fato jurídico, gerando não raras às vezes, decisões contraditórias, o que impulsiona o sentimento de insegurança jurídica, incerteza e imprevisibilidade das relações.

O que poderia ocasionar tamanha disparidade interpretativa sobre o mesmo fato se o próprio Direito se encarrega de solucionar os devidos conflitos de forma lógica?

Dentre as diversas justificativas para essa pergunta, o presente artigo vai se debruçar sobre os aspectos psicológicos sensíveis do julgador em sua atividade interpretativa do ordenamento.

A intersubjetividade pode ser entendida como a experimentação de um fenômeno sobre diferentes locais, formas e pressões de assimilação e entendimento.

No sentido literal, a presente explicação pode ser exemplificada com a seguinte analogia:

I – determinado pessoa sentindo a brisa suave do ar enquanto molha os pés numa caminhada próximo ao mar.

II – determinada pessoa visualizando e sentido a aproximação da formação de um ciclone com fortes ventos e agitação do mar.

Se fosse possível pedir para cada das pessoas narradas conceituar a experiência de sentir o vento no corpo, mesmo que a ação experimentada possua um significado já predeterminado, o contexto de assimilação foi diferente do ponto de vista de pressão, dessa forma, seria natural, que o olhar na posição “I” seja mais ameno, tranquilo, romântico do que o olhar na posição “II”, sendo mais violento, perigoso, assustador.

A experiência prévia repercutirá daqui pra frente na forma de tomada de decisões desse agente.

Numa analogia social, pode-se exemplificar com a seguinte situação hipotética: uma determinada gestante, com 30 anos, perdeu o primeiro filho numa colisão de veículo causada por um motorista que dirigia imprudentemente e comprovadamente embriagado.

Se a presente demanda indenizatória fosse proposta para um determinado julgador, com 65 anos de idade, casado, onde o mesmo já fosse avô e bastante presente na vida da neta(o), provavelmente, teria um valor indenizatório diferente, se fosse proposta para um outro julgador, com 27 anos de idade, solteiro, filho único, sem descendentes.

Perceba que no presente momento, ainda não estamos falando de Direito ou qualquer tipo de aplicação ou interpretação de normas, mas com certeza, tais fatores intrínsecos de cada julgador, ocasionarão, consequentemente quantum indenizatórios diferenciados, por quê?

É natural com o nascimento de um filho(a), o pai ou a mãe adquirida um cuidado especial, proveniente, também, do instinto materno/paterno de proteção, e (re)descubra um tipo de amor diferenciado.

De acordo com diversos depoimentos que o presente autor procurou analisar, isso só expande com a chegada dos netos(as). Sendo assim, por mais empatia que o julgador possa ter, é impossível para o mais jovem, ter uma real noção de aprofundamento da dor da perda de um filho, sem ao menos ter anteriormente passado ou usufruído da experimentação desse fenômeno da vida, tendo o juiz mais idoso, a possibilidade de melhor quantificar a possível indenização desse fato.

Nesse contexto, pode-se trocar por qualquer outro fato, como exemplo, uma demanda sobre indenização por preconceito racial, onde de um lado tem-se uma julgadora mulher, negra, de família humilde, que já sofreu situações vexatórias; e de outro, temos um julgador homem, branco, de família nobre, que não possui nenhum histórico de experiência desse tipo...

Numa analogia política, o conhecimento empírico comprova que, por exemplo, um juiz federal que adveio anteriormente do cargo de procurador federal, possua uma visão bastante preocupada e atenta com o endividamento da máquina pública, ficando mais sensível a indeferir demandas que exijam posturas ativas por parte do Estado com grande impacto orçamentário, mesmo em situações de explícito descumprimento legal.

Já quando comparamos o mesmo caso com um juiz que adveio da advocacia, sua psique de militância, preocupação de resolução de injustiças, parece mais predisposta para temas de descumprimentos de ações por parte do Estado, mesmo que isso exija esforços hercúleos dos governantes para consecução desse cumprimento judicial.

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Não se trata de ser condizente ou não com a conduta, mas sim, com base na confrontação psíquica, tentar enquadra-la na melhor hipótese normativa que surta os melhores efeitos.

Dessa forma, os valores familiares, sexuais, os princípios, os ensinamentos religiosos, os ensinamentos éticos e morais, a classe social advinda, as experiências profissionais acumuladas ao longo da vida, são todas possíveis fatores de intersubjetividade humana capazes de causar ‘interferência” nos moldes das decisões judiciais.

Isso pode ser considerado uma falha humana ou impureza do Direito? O Direito pode se misturar com a moral e ética? Tendo em vista que o julgador, no plano ideal e hipotético, deveria se valer apenas dos critérios legais e jurídicos para tomada de suas decisões?

Como se percebe, a intersubjetividade na interpretação e aplicação do Direito só é possível pela dificuldade do julgador de se despir dos valores pessoais referentes ao grau de cultura, moral e ética, ainda que no aspecto inconsciente, ficando mais predisposto a tomar certas condutas condizentes com seus ideais pré-jurídicos.

Realmente, sob a ótica do positivismo jurídico, o Direito se resumiria àquele criado pelo Estado na forma de leis, independente de seu conteúdo, sendo a Constituição seu fundamento de validade.

No positivismo, Direito e moral/ética não se misturam, são coisas distintas, não havendo qualquer limitação ou vínculo entre Direito e moral ou Direito e ética. Acontece que esse distanciamento legitimou diversas atrocidades e barbáries da Segunda Guerra Mundial, sob o amparo da lei, perpetravam-se graves violações aos direitos humanos.

Na atual fase da história do constitucionalismo, vive-se o período denominado de Neoconstitucionalismo ou constitucionalismo contemporâneo, pós-segunda Guerra Mundial, representando uma resposta às atrocidades cometidas pelos regimes totalitários (nazismo e fascismo), tendo como fundamento a dignidade humana.

O marco filosófico dessa fase é o pós-positivismo, que reconhece a centralidade dos direitos fundamentais e reaproxima Direito e a ética, ganhando forte conteúdo axiológico.

Se fosse possível substituir o julgador humano por uma Inteligência Artificial, com certeza, essas possíveis “falhas” não existiriam, tendo em vista a ausência de experimentação prévia dos fenômenos como consequência na possível interferência jurídica das decisões.

Apesar de ganhar em termos de previsibilidade, certeza e segurança, os julgados estariam fadados ao fracasso da imutabilidade, não possuindo representação em todos os seus aspectos, estando limitada a visão de vida do operador que alimentou a máquina e a ensinou a raciocinar para formulação da decisão mais justa ou equânime.

Dessa forma, a confrontação jurídica/legal com os preceitos morais e éticos, construídos previamente na psique do julgador, fazem parte do “jogo do Direito”.

Existem pilares morais e éticos mais antigos/engessados requerem muita resistência para alteração em comparação com outros mais novos/frescos, passíveis de mudança mais sensível.

Apesar de num primeiro momento se mostrar uma experiência ruim, pela possível incerteza, imprevisibilidade e insegurança jurídica, é graças a esse confronto psicológico das normas legais com os valores, princípios morais e éticos previamente construídos no julgador, que o Direito avança, funcionando como uma ciência dinâmica, mutacional, passível de alteração conforme as épocas.

Para o contínuo avanço e melhoria desse procedimento é mais que necessário, é essencial uma difusão na escolha dos julgadores, possibilitando que haja um confronto de culturas, classes, gêneros, para a troca de experiências e assimilações para a desenvoltura de um olhar ainda mais completo sobre os fenômenos.

O debate nos tribunais com o confronto de culturas, classes, valores, tende a expandir o horizonte dos julgadores, possibilitando a inserção de novas experiências ou a reanálise de certos pilares éticos/morais tido como fixos, abarcando assim a melhor representatividade das diversas demandas sob todos os possíveis olhares, não permitindo a hegemonia de uma única experimentação.

Sobre o autor
Filipe Reis Caldas

Advogado Tributarista. Bacharel em Direito pela Faculdade Marista. Pós-graduado em Direito Público pela Faculdade de Ciências Humanas e Exatas do Sertão do São Francisco - FACESF. Pós-graduando em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários - IBET. Membro da Comissão de Assuntos Tributários da OAB/PE.

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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