A interpretação do ICMS – ST frente ao julgamento do Recurso Extraordinário 593849

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A presente pesquisa propõe-se a analisar uma das medidas adotadas pelo Estado como instrumento de política fiscal: a substituição tributária, na modalidade progressiva

RESUMO: A presente pesquisa propõe-se a analisar uma das medidas adotadas pelo Estado como instrumento de política fiscal: a substituição tributária, na modalidade progressiva. Em sendo um mecanismo que intenta a eficácia do sistema arrecadatório, especialmente na tributação sobre o consumo, e que alberga discussões doutrinária e jurisprudencial, relevante se faz a sua análise, notadamente no que tange ao fato gerador presumido do ICMS. Para tanto, alicerçar-se-á noção elementar de responsabilidade por substituição, presunção, as peculiaridades do imposto indicado, bem como as limitações ao poder de tributar, constitucionalmente delineadas. O intuito da presente pesquisa é examinar as consequências jurídicas na esfera do cidadão-contribuinte, sob a perspectiva do julgamento do Recurso extraordinário 593849.

 

Palavras-chave: Política Fiscal. Substituição Tributária. ICMS. Fato Gerador Presumido.

 

ABSTRACT: The present research proposes to analyze one of the measures adopted by the State as an instrument of fiscal policy: the tax substitution, in the progressive modality. In being a mechanism that tries the effectiveness of the collection system, especially in the taxation on the consumption, and that houses discussions doctrine and jurisprudential, it is relevant its analysis, notably with regard to the presumed generating event of the ICMS. In order to do so, the basic notion of responsibility for substitution, presumption, the peculiarities of the indicated tax, as well as the limitations on the power to tax, constitutionally delineated, will be based. The purpose of this research is to examine the legal consequences in the citizen-taxpayer sphere, from the perspective of the extraordinary Appeal 593849.

 

Keywords: Fiscal Policy. Tax Substitution. ICMS. Presumed Generator Factory.

SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. 1 A TRIBUTAÇÃO SOBRE O CONSUMO. 1.1 ICMS: descrição e características. 1.2 Sujeição passiva: contribuinte e responsável tributário. 2 SUBSTITUIÇÃO TRIBUTÁRIA. 2.1 Substituição tributária progressiva e regressiva. 2.2 O impacto da antecipação do pagamento no direito de restituição. 3 O FATO GERADOR PRESUMIDO. 3.1 Presunção, figuras afins e a segurança jurídica do contribuinte. 3.2 A consolidação do direito de restituição: julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 593849. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS.

 

INTRODUÇÃO

 

A obrigação de pagar tributo enseja relevantes discussões na esfera privada, especialmente, no que tange a fonte de maior arrecadação dos Estados Federados, a tributação do Imposto Sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e Sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (ICMS). Nesse intuito, buscando fomentar políticas fiscais sobre o consumo, mecanismos vêm sendo criados pelas autoridades fazendárias para assegurar a eficácia do sistema arrecadatório, ao que indaga-se se o Estado arrecadador poderá se valer de toda e qualquer medida que julgar necessária à sua efetivação.

Dentre as técnicas empregadas, a substituição tributária “para frente” alberga reflexões no pagamento do tributo ao valorar previamente um dos elementos constitutivos da relação obrigacional: a base de cálculo, que destoa, muitas vezes, da situação concreta. Isso porque, em vista da presunção do fato gerador, há discrepâncias entre o valor presumido e o efetivamente praticado nas operações de circulações de mercadorias e serviços, situação em que se oportuniza analisar o direito de restituição do preço pago a maior.

Neste cenário, alicerçando a noção básica de responsabilidade por substituição, os desdobramentos do fato gerador presumido e da antecipação do tributo, além da situação fática do sujeito passivo (responsável tributário) quando vinculado ao recolhimento extemporâneo do tributo, a definitividade do quantum arbitrado se faz questionável, na medida em que envolve diretamente a segurança jurídica daquele que suporta o ônus fiscal.

Em verdade, o ponto crucial à escolha da temática delineada originou-se no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 593849, que em sede de Repercussão Geral modificou o entendimento da Corte Maior atinente ao direito de restituição do ICMS na substituição tributária.

Antes de esmiuçar o tema em evidência, indispensável se faz delimitar os pontos norteadores ao desenvolvimento da presente pesquisa. O primeiro capítulo irá abordar as peculiaridades do ICMS, no contexto da tributação sobre o consumo, com ênfase nas modalidades de sujeição passiva, e em atenção especial, àquela vinculada a substituição tributária.

O segundo capítulo será destinado a análise de uma das espécies de responsabilidade tributária imputada a terceiro: a responsabilidade por substituição, envolvendo desde a sua definição até a classificação, juntamente com as consequências jurídicas da antecipação do tributo, inerente a substituição tributária progressiva, e os reflexos no direito de restituição.

Já o terceiro capítulo discorrerá sobre as controvérsias do fato gerador presumido aliado às distinções com a pauta fiscal e institutos relacionados, firmando os elementos basilares do direito tributário, e especialmente a segurança jurídica, para se chegar ao exame do direito de restituição no ICMS-ST, trazido em recente entendimento do STF.

Por derradeiro, tecidas as considerações iniciais, foi utilizado na elaboração deste artigo o método de abordagem na espécie dedutivo ou idealista, o qual apresenta como ponto de partida as teorias existentes para a solução do caso concreto, em consonância com a pesquisa de documentação indireta, concretizada na pesquisa bibliográfica de doutrinadores do Direito Tributário.

 

1. A TRIBUTAÇÃO SOBRE O CONSUMO

 

Na sociedade contemporânea, muito se questiona o sistema de tributação brasileiro, seja pela crescente carga tributária como um todo, abrangendo desde produto/serviços - incidentes sobre o consumo -, patrimônio, renda, ou pela má distribuição dos recursos angariados. Isso porque, da mesma forma que não se vislumbra a longo prazo o investimento em setores um tanto indispensáveis ao desenvolvimento social e econômico, a maneira pela qual vêm se instituindo as políticas de cobrança revela-se, muitas vezes, retrógrada, suprimindo garantias básicas do cidadão-contribuinte.

Não obstante a diversidade de fatos tributáveis, sobre um aspecto específico se concentra os maiores índices de arrecadação na receita fiscal: as operações de consumo. Conforme pesquisa feita pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), no Brasil são alarmantes os percentuais dessa categoria de exação, tipicamente dos tributos ditos indiretos, porquanto divergentes dos outros Países desenvolvidos, cujo objeto de maior relevo é outro, os tributos diretos.

Sob o viés econômico, a incidência da tributação pode se moldar de duas formas: direta e indireta. No dizer de Ricardo Alexandre (2011, p. 105), à primeira, quando o indivíduo praticante da hipótese legalmente prevista arca com o ônus fiscal, e, por conseguinte, retém o ônus financeiro (contribuinte de direito), ao que se costuma designar de tributo direto. E à segunda, quando há o deslocamento do encargo a terceiro (contribuinte de fato – consumidor final), embora se tenha a incidência na hipótese por pessoa distinta, constituindo a modalidade de tributo indireto. Neste aspecto visualiza-se um dos elementos característico do ICMS, o qual será de análise pormenorizada em momento seguinte.

Os tributos recolhidos sobre o consumo recaem sobre produtos/mercadorias e serviços em razão da competência territorial do ente tributante, sendo eles: Imposto Sobre Produtos Industrializados (IPI), Imposto Sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e Sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (ICMS) e Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS). Exposta tal classificação, o ICMS guarda reflexões na esfera estadual, as quais serão a seguir aduzidas.

 

1.1. ICMS: DESCRIÇÃO E CARACTERÍSTICAS

 

Na persecução dos fins pretendidos pelo Estado, configuram-se duas modalidades de obtenção de receita: originária e derivada. A primeira reporta-se às entradas definitivas decorrentes do levantamento do próprio patrimônio público. Já a segunda, faz alusão aos tributos, provenientes da intimidação do particular à transferência de riqueza ao Erário.

De acordo com Kiyoshi Harada (2012, p. 4), a imprescindibilidade de o Estado prover recursos está diretamente relacionada ao atendimento do interesse público, no tocante às suas necessidades, de modo que, para isso, a atividade financeira pode se utilizar de meios diversos à sua concretização. Daí, é de relevo ponderar que, em que pese a facultatividade no emprego destas medidas, as mesmas deverão ser minimamente razoáveis.

Pois bem, o ICMS é uma das espécies tributárias de competência dos Estados e Distrito Federal, que regula, precisamente, a transferência habitual, comercial e definitiva de bens ou produtos destinados à mercancia, assim como o fornecimento de serviços de transporte transcendentes ao limite territorial dos Municípios, não abrangidos pelo ISS, e os intermediários à comunicação (ALEXANDRE, 2011, p. 606).

À vista disso, Hugo de Brito (2005, p. 367) sintetiza que a abrangência da sua materialidade envolve “[...] Todos aqueles atos, contratos, negócios, que são usualmente praticados na atividade empresarial, com o fim precípuo de promover a circulação das mercadorias em geral, movimentando-as desde a fonte de produção até o consumo [...]”. Destaca, ainda, quanto aos serviços, que a sua cobrança se concretiza apenas nas prestações não gratuitas. Segundo Edvaldo Brito (p. 499) o fato gerador do ICMS “[...] é exteriorizado por uma saída fiscal de mercadoria de um estabelecimento comercial, industrial ou produtor, promovida, respectivamente, por uma pessoa que seja comerciante, industrial [...] com intenção de passá-la à disposição de outra pessoa”.

Em atenção ao fato imponível, insta consignar que tal descrição nem sempre se apresentou desta maneira, posto que, quando da criação do referido tributo, não era previsível a incidência sobre serviços de transporte e comunicação, situação em que era denominado ICM. Contudo, após a vigência da Constituição de 1988 esse cenário se modificou, passando a vigorar novas regras sobre o designado ICMS. É o que aborda Ricardo Alexandre (2011, p. 602). Hugo de Brito (2005, p. 361) informa, ademais, que em momento pretérito a ordem constitucional atual, em 1934, o ICM era definido como Imposto sobre Vendas e Consignações (IVC), até que, com a Emenda 18/65 foi incorporado o sistema de compensação de valores entre as operações (não cumulatividade).

O indigitado tributo, com embasamento legal (lei Complementar 87/96 – Lei de Kandir) e constitucional (artigo 155, § 2º ao §5º), é não vinculado (não há contraprestação específica estatal); tem natureza indireta, conforme explicitado anteriormente, sobrecarregando pessoa diversa do sujeito passivo; real, justificada Ricardo Alexandre (2011, p. 106) pela preponderância das circunstâncias objetivas da materialidade do fato sobre os caracteres subjetivos; multifásico, como afirma Sacha Calmon Navarro Coêlho (2002, p. 552), em razão do recolhimento parcial em cada operação.

Denota, também, caráter eminentemente fiscal, sendo revestido por uma política arrecadatória. Ressalva-se, contudo, a possibilidade de apresentar finalidade seletiva com base na capacidade contributiva, ocasião em que, por critério de essencialidade dos produtos/serviços, se preza pelo tratamento individualizado dos cidadãos, com base em uma política social (ALEXANDRE, 2011, p. 602). A não cumulatividade reside na compensação entre créditos e débitos, evadindo-se do chamado efeito cascata. A base de cálculo, por sua vez, corresponde ao valor da própria operação, e o lançamento por homologação.

Por fim, registra-se o sujeito passivo, o qual se apresenta como praticante da operação de circulação de mercadoria ou prestação de serviço nas especificações acima mencionadas; importador de mercadorias do exterior; adquirente de bens apreendidos ou abandonados, em licitação, de lubrificantes e de combustíveis, nas circunstâncias previstas no artigo 4º da Lei de Kandir. Oportuno frisar, com amparo no artigo 121 do Código Tributário Nacional (CTN), a hipótese de o ônus fiscal da obrigação jurídico-tributária ser atribuída, por lei, à pessoa diversa, indiretamente ligada ao fato gerador, mas que com este se obriga (BALEEIRO, 2008, p. 449).

 

1.2. SUJEIÇÃO PASSIVA: CONTRIBUINTE E RESPONSÁVEL TRIBUTÁRIO

 

Conforme visto alhures, a responsabilidade pelo adimplemento da obrigação tributária, em regra, vincula aquele que consuma a hipótese de incidência, sendo diretamente o encarregado preponderante aos deveres principais e anexos. Há, entretanto, possibilidade de a responsabilidade tributária ter outras conotações, ao que importa reconhecer a figura do responsável tributário.

Nesse sentido, Hugo de Brito (2005, p. 159) assevera ser “[...] não uma vinculação pessoal e direta, pois em assim sendo configurada está a condição de contribuinte. Mas é indispensável uma relação, uma vinculação, com o fato gerador para que alguém seja considerado responsável, vale dizer, sujeito passivo indireto”. Outrossim, Amaro (2007, p. 303) reforça a distinção entre os dois sujeitos ao informar que “[...] Contribuinte é alguém que, naturalmente, seria o personagem a contracenar com o Fisco, se a lei não optasse por colocar outro figurante em seu lugar (ou ao seu lado) [...]”. Observa-se, portanto, que a aparição desse terceiro responsável, de fato, provoca, alterações na composição subjetiva da relação.

Em tal contexto, identifica-se quatro modalidades de responsabilidade: por transferência, por sucessão, por infração e por substituição. A responsabilidade por transferência é aquela em que, originariamente, incube ao contribuinte, mas por fato superveniente é deslocada a outrem. Assim dispõe Alexandre (2011, p. 323) “Trata-se de casos em que a obrigação nasce tendo, no polo passivo, determinado devedor (contribuinte ou responsável), mas em virtude de evento descrito com precisão na lei, há transferência da sujeição passiva para outra pessoa [...]”.

A responsabilidade por sucessão se refere a transmissão do cumprimento da obrigação a terceiro em razão do fato gerador (HARADA, 2012, p. 517). Por infração ou de terceiros, na visão de Madeira (2014, p. 266) é aquela decorrente da prática de atos violadores de normas ou cometidos com excessos. Já a responsabilidade por substituição ou substituição tributária, é definida por Vittorio Cassone (2017, p. 154) como aquela em que “[...] a obrigação tributária surge desde logo contra uma pessoa diferente daquela que esteja em relação econômica com o ato, fato ou situação tributados [...]”, será tratada no capítulo seguinte.

 

 

2. SUBSTITUIÇÃO TRIBUTÁRIA

 

No âmago da sujeição passiva indireta exsurge um instituto propulsor de vastos embates doutrinário e jurisprudencial, como, também, alvo de perquirições pelo principal encarregado ao cumprimento da prestação creditícia: a Substituição Tributária.

A substituição tributária consiste na imputação de responsabilidade a terceiro não praticante do fato gerador, mas com este vinculado, pelo pagamento do tributo incidente na respectiva operação e outras antecedentes/ subsequentes, constituindo uma das medidas hábeis à composição da receita auferida pelo Estado. Da análise do artigo 128 do CTN, em harmonia com o que preleciona Aliomar Baleeiro (2008, p. 449), importa acentuar que a indicação do terceiro responsável é de competência da lei, observada a capacidade contributiva, já que, sob as considerações de Hugo de Brito Machado (2005, p. 152), esta representa um elemento imprescindível para a compreensão do instituto.

Para José Eduardo Soares de Melo (2017, p. 169), na substituição, por incumbência legal, há o deslocamento integral da responsabilidade do contribuinte, praticante do fato gerador, para o substituto, que passa a ser o principal obrigado desta relação.

Com efeito, tal mecanismo objetiva assegurar a eficiência da gestão administrativa tributária, alicerçando, para tanto, premissas básicas que sustentam sua aplicabilidade. A esse respeito, Luciano Amaro (2007, p. 304) assevera que a escolha do terceiro se dá a bem da administração pública, sob o crivo da praticabilidade, ou por razões de necessidade, entendendo-se por esta a indispensabilidade do recolhimento do tributo.

Nessa linha, José Cassiano Borges e Maria Lúcia Américo dos Reis (2008, p.09) corroboram que, nestes casos, como subterfúgio da eficiência arrecadatória, confia-se na vantajosidade da exigibilidade do crédito de terceiro, ao invés, do contribuinte diretamente relacionado.

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Ainda nessa toada, Machado (2005, p.379) expõe que a cobrança antecipada é um fenômeno que abrange diversos tributos, seja para intensificar o processo arrecadatório ao Erário ou para minimizar o desvio da carga tributária (evasão fiscal), de modo que estes seriam os motivos ensejadores da predileção pela substituição tributária.

Como instrumento de política fiscal, depreende-se entre os atores passivos identificados neste regime, vale dizer, substituto (terceiro que ocupa a posição do contribuinte) e substituído (contribuinte), que o primeiro, efetivamente, se encontra adstrito, por lei, ao adimplemento da obrigação de levar dinheiro aos cofres públicos, desde a ocorrência do fato gerador, retirando do contribuinte o ônus supostamente designado. Dessa forma, ao compor, de imediato, o vínculo jurídico, há de convir a titulação do substituto em responsável originário ou de 1º grau. Nesse aspecto, Paulo de Barros Carvalho (2010, p. 230) reitera que, diferentemente das outras hipóteses de responsabilidade, o substituto, ao assumir a totalidade do débito, exonera o contribuinte das obrigações.

Sob a égide do princípio da praticabilidade, a responsabilidade por substituição ou substituição tributária vêm sendo empregada pelos Estados e Distrito Federal na arrecadação de alguns tributos, precipuamente, no ICMS, o qual passa-se ater nessa oportunidade. Pois bem, na conjuntura anunciada, nota-se que tal sistemática não advém da modernidade, vigorando, ainda que de forma incipiente, desde a época do “ciclo do ouro” - período em que já era manifesta a alteração no sujeito passivo da tributação, com uma modalidade de retenção indireta do quinto (imposto), e posteriormente, no Segundo Reinado, com a retenção direta do imposto na fonte.

No que tange à sua positivação no ordenamento jurídico, Borges e Reis (2008, p.10) expõem que a Constituição de 88 não tratou, a princípio, do aludido instituto, já que o conteúdo em si, constitui reserva de lei complementar. No entanto, verificadas discussões sobre o tema, a matéria passou a ser disciplinada no artigo 150, § 7, da matriz constitucional, com o advento da Emenda nº 3 de 17/03/1993.

Isto posto, cumpre notar que o fenômeno em análise não encontra definição expressa no CTN, tampouco na Constituição Federal de 1988, podendo, contudo, ser extraída da acepção ampla de responsabilidade empregada no artigo 128 do referido diploma legal. Nos mesmos moldes há a previsão do artigo 150, §7º, do texto constitucional, quando estabelece a responsabilização do sujeito passivo pela antecipação do tributo, em razão do fato gerador presumido. Daí porque a ausência de dispositivos específicos favorece o confronto entre as deliberações judiciais/administrativas e o responsável tributário, destoando da almejada segurança jurídica do indivíduo.

 

2.1. SUBSTITUIÇÃO TRIBUTÁRIA PROGRESSIVA E REGRESSIVA

 

Na dimensão da responsabilidade tributária, conforme a identificação situacional do fato gerador no tempo e no espaço, distinguem-se duas modalidades de substituição, trazidas no artigo 6º, § 1º, da Lei Complementar 87/1996 – Lei de Kandir: substituição “para trás”/regressiva e “para frente”/progressiva. Nessa linha, Anderson Soares Madeira (2014, p. 252) leciona que o marco distintivo entre as supracitadas espécies se materializa a partir da ocupação do responsável na operação, se prévia ou ulterior à identificação do contribuinte.

A substituição tributária regressiva, também denominada diferimento, caracteriza-se quando o substituído pratica o fato gerador e o pagamento é efetuado ulteriormente pelo substituto (responsável), de modo a configurar o deslocamento do ônus financeiro para uma etapa específica da operação. Para Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo (2005, p. 210) há o que se designa saída com suspensão do imposto, o que implica dizer que há um encadeamento no recolhimento do tributo.

Nesse cenário, visualiza-se a situação dos produtores rurais/agropecuários, que em consequência da numerosidade de integrantes da cadeia - necessários à transformação do produto - e da potencialidade de riscos à credibilidade do sistema arrecadatório, estão dispensados do recolhimento do tributo na fase inicial. Isso porque, na concepção de Melo (2017, p. 170) esses contribuintes não apresentam condições propícias a ordenação de suas atividades. Ainda nessa tônica, é possível identificar o laticínio e o frigorífico, substitutos tributários do produtor do leite, e do pecuarista, respectivamente, que assumem o ônus fiscal do ICMS com a transferência da mercadoria, possibilitando a simplificação da cobrança.

Pois bem, sob esta perspectiva não se vislumbra maiores incongruências jurídicas. A problemática reside, por conseguinte, na substituição tributária progressiva, fenômeno aplicável aos impostos e contribuições, que, prevendo a responsabilização de terceiro pelo fato gerador presumido, autoriza a antecipação do pagamento e a possibilidade de restituição do valor pago somente na eventualidade de o fato gerador não se consumar. À vista do exposto, Baleeiro (2008, p. 250) esclarece que a presunção do fato gerador não se restringe a suposição de um ou outro componente da relação, mas em sua plenitude, comprometendo a existência da própria comutatividade da obrigação. Por causa disso, surge a necessidade de se avaliar a regulamentação de tal matéria.

Nesta modalidade figura como responsável o indivíduo relacionado a alienação de mercadorias, ou seja, aquele que atua no intermédio da disponibilização destas no meio econômico, conforme delimita Claudio Carneiro (2010, p. 450). Aqui, cabe mencionar, além das bebidas e cigarros, os automóveis, que antes da venda, já têm o valor relativo ao tributo repassado ao Fisco, bem como o encargo financeiro assumido pelas concessionárias.

A referida espécie de substituição tributária é reconhecida constitucionalmente (vide artigo 150, § 7º) pela estipulação da relação jurídica, bem como de seus elementos caracterizadores, quais sejam: base de cálculo, alíquota e fato gerador, pela autoridade fazendária, de modo que a precedência da cobrança da prestação pecuniária seria, em tese, legítima. Nessa toada Roque Antonio Carrazza (2010, p. 491) assevera que o que justificaria a cobrança antecipada seria exatamente a perspectiva de realização do fato futuro. À essa perspectiva de consumação, Regina Helena Costa (2009, p. 208), aduz ser a presunção.

No tocante ao ICMS, Melo refuta a definitividade desta presunção:

 

Inaceitável sua aplicação na cobrança dos tributos sobre a circulação e a prestação de serviços, uma vez que os comerciantes/industriais e prestadores de serviços podem deixar de praticar fatos geradores de ICMS por inúmeros motivos (insolvência, desistência, perdimento do bem). Não se pode nunca ter certeza absoluta de que as mercadorias venham a ser objeto de inexorável circulação tributável. (MELO, 2017, p.174)

 

Outrossim, Borges e Reis (2008, p.29), repelem a interpretação do fato gerador quando aliado a presunções em torno da obrigação jurídico tributário, revelando ser um ponto específico de afronta da legislação do ICMS ao princípio da legalidade.

Nota-se, portanto, que a aludida definição revela-se um tanto questionável ao tratar do fato gerador presumido, seja pela violação direta de princípios norteadores do direito tributário, como a capacidade contributiva e segurança jurídica, ou pela própria inconsistência para com a semântica de obrigação tributária, baseada na ocorrência real da hipótese de incidência, admitindo-se controvérsias em derredor da fixação da base de cálculo.

Nesse sentido, informa Machado (2005, p. 379), “O ICMS antecipado, que deveria ser calculado sobre o preço praticado nas vendas subsequentes, é calculado sobre um valor arbitrariamente atribuído pelas autoridades fazendárias”, suscitando maiores reflexões sobre a temática.

De bom alvitre pensar, também, a viabilidade do direito de restituição frente a disparidade entre o valor presumido e o efetivamente concretizado – ao que se faz examinar o amparo no ordenamento jurídico, e em especial, no âmbito da Suprema Corte.

 

2.2. O IMPACTO DA ANTECIPAÇÃO DO PAGAMENTO NO DIREITO DE RESTITUIÇÃO

 

Consoante disposição expressa na Constituição Federal de 1988, é assegurado o direito de restituição se inexistir a concreta realização do fato gerador presumido. A substituição tributária é um instituto que se consubstancia na antecipação do pagamento em razão da estipulação de uma situação fática, sem prever a possibilidade de restituição do valor arbitrado quando efetivado a maior. Nessas circunstâncias, se reflete a viabilidade do direito de devolução, à luz da antecipação do tributo.

De início, cabe mencionar que tal situação não se confunde com a mera antecipação do prazo do pagamento, haja vista que na caracterização do primeiro, há elementos próprios a serem observados, tal como a precedência em relação a situação concreta (fato gerador). Nesse sentido, assevera Ricardo Lobo Torres:

 

Se o contribuinte paga o imposto antes do nascimento da obrigação ou da definitiva apuração do quantum debeatur, terá o direito à restituição, por motivos supervenientes, da importância que era devida (ainda que a título de antecipação) originariamente. Quando, todavia, a antecipação se dá com referência ao tempo de pagamento, não há que se falar em direito à restituição. (TORRES, 1983, p.142)

 

Na perspectiva da substituição “para frente”, Carraza (2017, p. 494) afirma: “Aparentemente, agora é possível a tributação antecipada, desde que se garanta ao contribuinte a devolução preferencial do indébito tributário de a final, inocorrer o fato imponível”. Por demais, Costa sustenta que “A presunção segundo a qual o fato jurídico tributário irá consumar-se, evidentemente, reveste natureza relativa, revelada a previsão da possibilidade de restituição caso o fato gerador não venha a ocorrer, com vista a impedir o enriquecimento sem causa do Fisco”. Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo (2005, p. 211), por sua vez, evocam a pertinência teórica da restituição dos valores pagos, justificando ser omissa a Constituição quanto a ocorrência de base de cálculo inferior à presumida.

À vista do exposto, nota-se que o recolhimento antecipado do tributo vem adquirindo relevância no direito tributário, seja como instrumento de política fiscal pelo Estado, ou meio de incentivo à justiça fiscal pelo contribuinte, gerando discussões sobre o direito de restituição. A este respeito, Amaro (2007, p. 422) informa as hipóteses previstas no artigo 165 do CTN passíveis de restituição em lei, reprimindo o fato de o legislador tê-las descrito. Alega, por demais, a impropriedade do inciso I ao dizer que: especificando o cabimento do reembolso na efetiva concretização do fato gerador, “[...] poderá estar presente um fato não gerador. Ou um fato gerador de tributo de valor menor do que o recolhido[...]”. Assim disposto, observa-se o reconhecimento do autor acerca da existência de outras situações não previstas em lei que, de igual modo, legitimam o pleito de restituição.

Nessa senda, Harada (2017, p. 614) corrobora ao afirmar que “[...] Obrigação tributária é obligatio ex legis consoante doutrina indiscrepante, pelo que deve ser cumprida nos estritos termos da lei, inclusive no que tange ao quantum debeatur. Se pago a mais do que devido por lei, o contribuinte tem o direito de repetir o pagamento”.

Desse modo, ante a concepção de tributo indevido e considerando a linha intelectiva delineada por alguns dos doutrinadores aqui evidenciados, nota-se ser possível e de direito o devido ressarcimento ao contribuinte.

 

3. O FATO GERADOR PRESUMIDO

 

Acerca da obrigação tributária, é cediço que para a sua designação tem-se como substrato a correspondência entre a hipótese do fato descrita em lei e sua consumação no mundo real, reunindo os elementos qualificadores da relação jurídica: sujeito ativo/passivo, base de cálculo, alíquota e circunstância temporal.  Nesse teor, ensina Edvaldo Brito (p.497) que para tal constatação, há um processamento especial de averiguação das circunstancias integrantes da hipótese de incidência, denominado “Técnica da tipicidade”. Na mesma perspectiva apontam Borges e Reis (2008, p.29) quando, fazendo alusão ao desdobramento natural do Princípio da Legalidade, explicitam que apenas os acontecimentos concretos teriam o condão de vincular o sujeito passivo.

Hugo de Brito (2005, p. 141) assinala que a valoração do fato concreto está condicionada à definição da hipótese legal descrita em abstrato. Por isso é que é de praxe dizer que o nascimento da obrigação tributária advém quando há total equivalência entre a circunstância material prevista em lei e a sua ocorrência em tempo factível.

O artigo 116 do CTN estabelece dois marcos distintivos para a determinação temporal do fato gerador e o regimento de sua aplicabilidade. O primeiro é baseado em um critério tipicamente legal, no qual o fato tributável foi normatizado em momento anterior, e assim, teve seus impactos disciplinados por segmento específico do ordenamento jurídico. É o que se denomina situação jurídica. E o segundo, é fundado em elementos próprios que lhe são peculiares, daí proveniente os efeitos, constituindo a situação de fato. Sob esta vertente afirma Ricardo Alexandre (2011, p. 291) que a conversão da situação de fato em situação jurídica, ante a regulamentação da lei tributária, cria um embasamento jurídico específico para a análise da sua eficácia.

Dito isto, é forçoso salientar que há situações, dentre as quais se destaca a sistemática da substituição tributária progressiva, em que, com base no juízo de probabilidade, após o conhecimento do fato ou da circunstância material, reputa-se presumido o fato gerador, não se coadunando com a regra aqui anunciada. Para Borges e Reis (2008, p. 10) soa contraditório, considerando que, neste caso, haveria a criação de um fato gerador hipotético, o que é incongruente com a própria definição de fato gerador, fundada em evento real.

Edvaldo Brito (p. 505) sustenta que com a adoção dessa modalidade de incidência da norma tributária, haveria uma espécie de violação à limitação do poder de tributar insculpida na Carta Magna, ao que faz admitir a inconstitucionalidade de tal dispositivo. Na mesma linha segue Anis Kfouri Jr. (2016, p. 275) quando declara a ofensa direta à pessoalidade da tributação (princípio da capacidade contributiva), bem como ao abatimento do valor consignado na operação anterior quando da presunção de fato futuro (princípio da não cumulatividade). Ricardo Alexandre (2011, p. 327) atesta, ainda, que haveria afronta à princípios tributários, trazendo à tona, inclusive, o não confisco.

Ademais, consolidando a tese ventilada, Melo (2017, p. 174) leciona que os valores exteriorizados com a presunção do fato gerador destoam dos preceitos basilares agregados a Constituição Federal, tais como veracidade e segurança, oriundos do princípio da legalidade. Para Costa (2009, p. 208) seria uma clara hipótese de agressão à capacidade de contribuir, princípio este prevalente sobre os anseios de praticabilidade estatal.

Com efeito, tendo em vista o acolhimento da presunção como técnica determinante à definição do fato gerador do tributo, importa estabelecer algumas ponderações, as quais se revelam indispensáveis à adequada compreensão do instituto em comento.

 

3.1. PRESUNÇÃO, FIGURAS AFINS E A SEGURANÇA JURÍDICA DO CONTRIBUINTE

 

Em sede de fato jurídico tributável sob o viés da probabilidade, reputa-se necessário averiguar a admissibilidade da técnica empregada no direito tributário, vale dizer, presunção, especialmente no que tange a incidência exacional. Relevante também, discernir as principais figuras que, no plano comum, com ela se apresentam um emaranhado para dirimir maiores controvérsias.

De início, calha acentuar que a presunção é um instituto pelo qual especula-se a veracidade de um fato ou circunstância a partir de um conhecimento pregresso, sem, contudo, ser concludente. É neste aspecto que Carraza (2010, p. 499) aponta ser o elemento distintivo para a definição de prova. Edvaldo Brito (p. 507) acrescenta que, ainda que as percepções oriundas da situação jurídica estabelecida não se concretizem de fato, há suposição da sua ocorrência.

A presunção é gênero do qual extrai-se duas subespécies: legal e humana. A primeira, atribuída por lei, classifica-se, ademais, como relativa (juris tantum) ou absoluta (juris et de jure), admitindo-se, àquela, a produção de prova em sentido contrário, na tentativa de certificar a inveracidade do quanto alegado.

Ora, sabe-se que o uso de presunções no direito tributário é de aplicabilidade reconhecida, desde que em consonância com a matriz constitucional e aliada à estrita legalidade e às garantias básicas resguardadas ao cidadão-contribuinte. Desse modo, Amaro (2007, p. 275) é uníssono ao afirmar que se de alguma forma houver transgressão a tais valores, na proteção do direito aplicável, deverá a norma ou ato ser rechaçado, uma vez que haveria o emprego de um meio astucioso no interesse tipicamente arrecadatório.

Nesses termos, sustenta Carraza (2010, p. 498) a inadmissibilidade de uma interpretação extensiva da lei tributária por parte do ente tributante com o intuito de adotar métodos próprios, muitas vezes eivados de arbítrio, destinados a concretizar políticas fiscais.

À vista do exposto, passa-se ao exame das figuras jurídicas aqui relacionadas. Em que pese, localizar-se em um contexto similar ao da presunção absoluta quanto a produção probatória, a ficção difere do referido artifício na proporção que imputa fato sabidamente conhecido como falso, distanciando da realidade. Não há incerteza, portanto, acerca do fato concreto; ao revés, idealiza-se um cenário não condizente com a ocasião específica. Desse modo, tratando-se de uma competência do legislador, não se tolera, de igual modo, a inobservância dos ditames prestigiados pela Carta Magna (CARRAZA, 2010, p. 503). Nesse diapasão, Melo (2017, p. 169) corrobora a ideia supracitada, ao admitir a subsistência da ficção somente quando harmoniosa com as diretrizes constitucionalmente asseguradas, consagradoras da capacidade contributiva.

Em relação às duas espécies, Costa (2009, p. 208) adverte que na vigência de uma normatização assecuratória da verdade material, “a utilização de abstrações generalizantes, tais como presunções e ficções, deve ser efetuada com parcimônia, e apenas nas hipóteses em que não seja possível a prova direta do fato (...)”.

O regime de pauta fiscal, por sua vez, se afigura de modo peculiar. Esta modalidade de antecipação do pagamento integrante da categoria estimativa, há muito discutida, dispõe sobre o recolhimento do tributo aos indivíduos que exercem atividades suscetíveis de instabilidade financeira, com base em patamar fixado pela autoridade fiscal (TORRES, 1983, p. 126).

Dessa forma, a predeterminação do preço está intrinsicamente relacionada à base de cálculo do ICMS, na medida em que, em desconhecimento do preço operado, por razão de oscilação econômica, haveria a relativização do valor corrente da circulação da mercadoria - independente do quantum apurado em concreto -, acautelando interesses meramente confiscatórios. Daí porque, pelo caráter normativo da estipulação de valores, haveria feição de definitividade, sendo este o fator de grande repulsa por parte dos contribuintes, da jurisprudência e do próprio Supremo Tribunal Federal. Tal situação engendrou a edição da Súmula 431 do STJ, que reconheceu a ilegalidade da arrecadação do ICMS advindo de base de cálculo dissociada da realidade (estipulada em pauta), seja pelo método da presunção absoluta, seja pela ficção.

Nessa linha, sob a visão de Tereza Carolina Castro Biber Sampaio, o assentimento com o regime de pauta fiscal equivaleria a aquiescência para com a perversão/violência estatal, simbolizada na supressão de direitos, bem como nos desvios finalísticos das políticas públicas. Isto posto, coerente se faz o raciocínio de Hugo de Brito Machado (2005, p. 379) ao revelar que a indiscutibilidade do valor arbitrado, na substituição tributária, provocaria a retomada da pauta fiscal. Aqui, é importante notar o posicionamento de Edvaldo Brito (2016, p.510), quando afirma que a insubsistência de tal mecanismo abrange desde o período de incidência do antigo ICM, quando, então, modificado para ICMS, houve o soerguimento da proteção constitucional, distanciando, cada vez mais, a viabilidade da sua aplicação.

De outra vertente, é relevante diferenciar, ainda, quatro institutos: preço sugerido, pauta de preço a consumidor, arbitramento e margem de valor agregado, trazidos por Melo (2017, p. 182 e 183). O preço sugerido consiste na tentativa de padronização local do valor das mercadorias inseridas no comércio. A pauta de preço a consumidor traduz-se na cotação das mercadorias a fim de possibilitar segurança ao consumidor. Já o arbitramento é uma espécie de procedimento constitutivo do crédito tributário em que a autoridade fiscal fixa o quantum devido, em razão da incerteza das informações prestadas pelo sujeito passivo, ou mesmo, ausência destas. Por fim, a margem de valor agregado é obtida a partir do preço corrente de uma mercadoria, por exemplo, integrando a base de cálculo.

Diante disso, sob a análise da substituição tributária progressiva, conduzida sobre a regência da presunção, pretende-se verificar os efeitos provenientes dessa conjetura perante o contribuinte e o que poderá ser feito para positivar seus direitos.

 

3.2. A CONSOLIDAÇÃO DO DIREITO DE RESTITUIÇÃO: JULGAMENTO DO RECURSO EXTRAÓRDINÁRIO (RE) 593849

 

Em sede de direito tributário, situação em que o sujeito é compelido à obrigação de levar dinheiro aos cofres públicos para que o Estado possa cumprir com sua política pública e social, é salutar que haja o devido equilíbrio na relação entre o Fisco e o contribuinte, em prol da igualdade, moralidade, legalidade, bem como em atenção aos preceitos básicos da limitação ao poder de tributar estatal. Isso porque não há sobreposição de partes e, de todo modo, o Estado não pode se valer do poder de expropriar para constranger o contribuinte às suas imposições, cometendo excessos, sem que haja observância das regras estabelecidas na Constituição.

Nessa senda, Hugo de Brito (2005, p. 63) afirma “O Estado, no exercício de sua soberania, tributa. Mas a relação de tributação não é simples relação de poder. É relação jurídica, pois está sujeita as normas às quais se submetem os contribuintes e também o Estado”. A seu turno, Melo (2017, p. 173) afirma que “[...] a participação financeira – pela via tributária- há que ser certa, precisa, previamente conhecida, como corolário dos princípios da boa-fé e lealdade, que devem presidir a atividade administrativa”.

Não obstante as considerações de Ricardo Alexandre (2011, p.50) acerca da possibilidade de o Estado, nesta qualidade, exigir que o indivíduo realize determinadas condutas à sua vontade, por intermédio de lei, há de convir que tal discricionariedade não é absoluta a título de substituição tributária.

Como visto, a substituição tributária progressiva, pautada na estipulação de valores da operação realizada, atribui o encargo financeiro de antecipação do tributo ao responsável tributário, independente do quantum apurado concretamente. Tal situação foi alvo de veementes discussões, sob a perspectiva de o pagamento se efetivar a maior, razão pela qual busca-se examinar o cabimento do direito de devolução.

Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo (2005, p. 212) trazem uma das teses utilizadas à inviabilidade do direito de restituição, dispondo que a presunção da base de cálculo teria natureza definitiva, no intuito de propiciar a eficácia da arrecadação. Aqui, põe-se em evidência o princípio da praticabilidade, o qual exterioriza que, se dessa forma não fosse, tal mecanismo perderia a sua utilidade.

Em polo oposto, contudo, há a defesa deste direito manifestada na percepção de Melo (2017, p. 85), o qual informa que a negativa parcial da devolução importaria carga tributária excessiva àquele que se obriga à prestação, rompendo com a capacidade contributiva e produzindo efeito de confisco.

Pois bem, à princípio, nenhuma solução foi dada ao caso em tela. O veículo normativo que abrange a substituição tributária, qual seja, Lei Complementar 87/1996 (Lei de Kandir) e o texto constitucional (artigo 150, § 7º), não preveem tal hipótese na casualidade de o fato gerador se consumar com valor destoante do real, mas tão somente se o primeiro não se realizar. Assim sendo, ante as dissidências geradas e pela ausência de regulamentação específica, a Corte Maior considerou a referida situação como uma modalidade de presunção absoluta, mediante a qual não comportaria qualquer aversão à base de cálculo ou fato gerador presumido, já que, conforme alegado, iria de encontro aos anseios da substituição tributária.

Adiante, proferido tal entendimento, inúmeras foram as insatisfações dos contribuintes, manifestadas através de recursos e Ações Diretas de Inconstitucionalidade, ocasião em que, em grau de Repercussão Geral, houve o sobrestamento do julgamento sobre a matéria. Passados tempos, se iniciou em 13/10/2016 o julgamento do Recurso Extraordinário 593849, concernente à legitimidade do direito de restituição. À época, o voto do ministro Edson Fachin, em salvaguarda do contribuinte, provocou o adiamento da Sessão. A tese levantada foi a de que, no sentido apontado pela maioria dos doutrinadores e esperável pelos interessados no provimento da pretensão, os mecanismos de arrecadação não poderiam se sublevar às garantias constitucionalmente asseguradas.

Assim, em continuidade da Sessão, por maioria dos votos favoráveis, e após, o voto-vista, restou solidificada a viabilidade de se obter a base de cálculo real, e consequentemente, o reembolso da quantia paga e não verificada, ainda que sob as origens de uma relação obrigacional presumida. Senão, vejamos:

 

RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL. DIREITO TRIBUTÁRIO. IMPOSTO SOBRE CIRCULAÇÃO DE MERCADORIAS E SERVIÇOS - ICMS. SUBSTITUIÇÃO TRIBUTÁRIA PROGRESSIVA OU PARA FRENTE. CLÁUSULA DE RESTITUIÇÃO DO EXCESSO. BASE DE CÁLCULO PRESUMIDA. BASE DE CÁLCULO REAL. RESTITUIÇÃO DA DIFERENÇA. ART. 150, §7º, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. REVOGAÇÃO PARCIAL DE PRECEDENTE. ADI 1.851. 1. Fixação de tese jurídica ao Tema 201 da sistemática da repercussão geral: “É devida a restituição da diferença do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS pago a mais no regime de substituição tributária para frente se a base de cálculo efetiva da operação for inferior à presumida”. 2. A garantia do direito à restituição do excesso não inviabiliza a substituição tributária progressiva, à luz da manutenção das vantagens pragmáticas hauridas do sistema de cobrança de impostos e contribuições. 3. O princípio da praticidade tributária não prepondera na hipótese de violação de direitos e garantias dos contribuintes, notadamente os princípios da igualdade, capacidade contributiva e vedação ao confisco, bem como a arquitetura de neutralidade fiscal do ICMS. 4. O modo de raciocinar “tipificante” na seara tributária não deve ser alheio à narrativa extraída da realidade do processo econômico, de maneira a transformar uma ficção jurídica em uma presunção absoluta. 5. De acordo com o art. 150, §7º, in fine, da Constituição da República, a cláusula de restituição do excesso e respectivo direito à restituição se aplicam a todos os casos em que o fato gerador presumido não se concretize empiricamente da forma como antecipadamente tributado. 6. Altera-se parcialmente o precedente firmado na ADI 1.851, de relatoria do Ministro Ilmar Galvão, de modo que os efeitos jurídicos desse novo entendimento orientam apenas os litígios judiciais futuros e os pendentes submetidos à sistemática da repercussão geral. 7. Declaração incidental de inconstitucionalidade dos artigos 22, §10, da Lei 6.763/1975, e 21 do Decreto 43.080/2002, ambos do Estado de Minas Gerais, e fixação de interpretação conforme à Constituição em relação aos arts. 22, §11, do referido diploma legal, e 22 do decreto indigitado. 8. Recurso extraordinário a que se dá provimento.

 

Destarte, dirimidas as controvérsias em torno da temática vergastada, cumpre registrar a proficiência da decisão, que, sob a prudência e justeza, assentou pela justiça fiscal na preservação do mínimo garantido ao cidadão-contribuinte.

Ademais, importa mencionar que a Lei de Kandir, em seu artigo 10, estabeleceu a legitimidade para pleitear o direito de restituição, no ICMS, a cargo do substituído (contribuinte), encerrando maiores discussões acerca de ser cabível ao contribuinte de fato ou de direito. É o que informa Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo (2005, p.212).

No mais, consolidada a matéria, cabe o contribuinte reaver aquilo que lhe é de direito, recorrendo à via administrativa para tanto.

 

CONCLUSÃO

 

A existência de normas e garantias fundamentais é de aplicabilidade basilar para a preservação de uma boa relação. Se no direito privado a função social e a boa-fé são limitações à autonomia da vontade, sendo mantenedores do equilíbrio, no direito tributário não é diferente.

As limitações ao poder de tributar, concretizadas em princípios, tais como legalidade, capacidade contributiva, vedação ao confisco, isonomia, segurança jurídica, representam aos cidadãos-contribuintes incentivos à Justiça Fiscal, garantindo-lhes o mínimo à sua dignidade.

Se por um lado há investiduras do Estado e a discricionariedade de agir no interesse público com base no poder expropriatório, por outro, o mandamento constitucional exige razoabilidade. É sobre esse viés que deve ser vista a substituição tributária progressiva. Um mecanismo de política fiscal em que, não obstante o teor arrecadatório em sua essência, encontra circunstâncias a serem ponderadas. Corrobora tal fato o cenário em que esse fenômeno se insere. Até um determinado período considerou-se absoluta a presunção da base de cálculo fixada pela autoridade fazendária, de modo que não se admitia a restituição do valor pago a maior. Passado um tempo, diante de inúmeras insurgências por parte dos contribuintes, que se viram desamparados, o entendimento dos Tribunais mudou. A partir de então, em atendimento aos preceitos da Carta Maior, consolidou-se que o mero interesse fiscal não pode se sobrepor as garantias do indivíduo.

Em sendo o ICMS um tributo sobre o consumo de elevada repercussão social, pessoal e, sobretudo, financeira na atividade estatal, é de relevo que se analise a sua incidência e os institutos a ele relacionados, em especial atenção à responsabilidade por substituição, para que eventuais direitos não sejam violados, e os que efetivamente foram, possam tê-los amparados. Daí porque o exame da temática em comento se faz pertinente.

O imposto em evidência, por ser incidente em várias fases da operação de circulação de mercadorias e sobre a prestação de serviços, tem sua base de cálculo fixada a partir desta materialidade, o que pode ensejar arbitrariedade quando da sua determinação. Por isso é que é importante ter uma noção mínima das suas principais características, no intuito de evitar que excessos sejam cometidos. Em havendo, o direito de restituição é uma medida legítima a ser tomada por parte daqueles que injustamente foram tributados, seja por fato gerador inexistente ou por aquele ocorrido com valor inferior ao concretamente realizado.

Pois bem, o presente artigo não pretende encerrar discussões sobre a temática delineada, mas fazer com que seja apenas o início de novos questionamentos, lembrando sempre que o dever de entregar recursos financeiros ao Estado ou qualquer outra manifestação de sua atividade financeira deverá estar balizada nas garantias constitucionalmente conferidas ao cidadão.

 

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Sobre os autores
Ricardo Simões Xavier dos Santos

Advogado. Fundador do escritório Ricardo Xavier Advogados Associados. Graduado em Direito pela Universidade Católica do Salvador - UCSal; Mestre e Doutorando em Políticas Sociais e Cidadania pela Universidade Católica do Salvador - UCSal; Especialista em Direito do Estado pelo Jus Podivm/Unnyahna e em Direito Tributário pelo IBET. Professor da Universidade do Estado da Bahia - UNEB , da Universidade Católica do Salvador - UCSal e da Escola Superior da Advocacia - ESA - Seccional da OAB/BA; Coordenador Curso de Pós-graduação em Direito Empresarial da Universidade Católica do Salvador - UCSal. Pesquisador do Núcleo de Estudos em Tributação e Finanças Públicas - NEF da Universidade Católica do Salvador - UCSal

Ana Luiza Quintela Nunes

Advogada.Bacharel em Direito pela Universidade Católica do Salvador

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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