CARNAVALIZAÇÃO CONSTITUCIONAL

05/03/2019 às 05:16
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Governo descumpre e desburocratiza a Constituição.

Em meio ao carnaval, o governo federal diminuiu a participação da sociedade civil  e adentrou (pela porta dos fundos) num clássico fenômeno da Antropologia Política: a Carnavalização da Política.
Sumariamente, os ministérios esvaziaram conselhos, comissões, comitês e outras formas de gestão colegiada. Na prática, de efeito imediato, significa que o Poder Público mais uma vez descumpre a Constituição Federal de 1988 e age contra a lei. O segundo aspecto, seguramente o pior e, exatamente, o que é guardado pela Constituição, refere-se à restrição ao afastamento da sociedade civil dos negócios públicos.
Ou, dizendo de outro modo, a Constituição garante como dever ou “obrigação de fazer política” que se aprofundem as formas de democracia participativa e gestão por meio de representação popular no poder de decisão das principais políticas sociais.
Existem cerca de 40 Conselhos, alguns consultivos outros normativos, como ocorre com o Conselho Nacional de Meio Ambiente, editando normativas com poder de lei. Apesar de a maioria dos conselhos ter sido criada na década de 1990 – logo após a promulgação da Constituição – o Conselho da Saúde, por exemplo, data de 1930.
O episódio do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura é sintomático: seus membros foram eleitos no ano passado, mas nem tomaram posse. Monitoramento de presídios e entrega de relatórios sobre hospitais psiquiátricos já foram afetados, bem como a definição de políticas públicas destinadas a idosos e deficientes.
O Conselho Nacional de Política Indigenista e o Comitê de Anistia sequer foram relacionados pelo governo. O Conselho Nacional de Economia Solidária foi enxugado, reduzido à representação tripartite, em que governo, trabalhadores e empregadores agora têm o mesmo número de membros – como se a ação do capital sobre o trabalho incorresse em isonomia de forças. Outro que sofre restrições é o Conselho Nacional de Trabalhadores na Agricultura Familiar, observando-se a inoperância do Condraf (desenvolvimento rural sustentável) e da Cnapo (agroecologia). O Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) foi extinto.
Há como consequência um grave esvaziamento dos canais de participação do povo e de suas representações profissionais e técnicas e, portanto, quanto mais avesso à norma democrática, mais indiferente, distante e antipopular, é o Poder Público.
Uma avaliação, a mais clara possível, é que, possivelmente, medidas e ações políticas de desagrado do povo sejam tomadas com maior facilidade – ao se retirar o “obstáculo” da participação social.
Outras consequências, igualmente lógicas, referenciam o descaso com a Constituição e o senso de normalidade/racionalidade e legalidade; o entendimento de que as práticas constitucionais democráticas são inoportunas; a sempre presente iniciativa de se romper os limites e as defesas democráticas. 
Especificamente, as áreas em que os conselhos desmantelados foram mais atingidos são referentes aos Ministérios da Cidadania, Agricultura, Direitos Humanos , Mulher e Família. Pode-se fazer muitas outras conjecturas e, ainda que ilações com dados fáticos tenham absoluta relevância, traremos apenas alguns exemplos: na agricultura, membros da sociedade civil podem/devem ser contrários ao uso de agrotóxicos proibidos pelas principais agências reguladoras de saúde do Brasil e internacionais; no âmbito familiar, o foco de uma colonização neopentecostal – voltada à ética da recompensa material –, equivale a tentativas de se firmar políticas retrógradas; o que ainda condiz com o pressuposto de que “a mulher é submissa ao homem”; livre da imposição constitucional da participação social, a cidadania será mais obediente e menos crítica ao próprio Poder Político.
Todos esses dados estão amontoados na Internet, com sobras de muitos outros casos e declarações de interesses semelhantes. Como na política não há coincidências, este < déjà vu >, um vi de novo na política, é mera semelhança de autocracia, retrocesso e negação à democracia constitucional.
Algumas, de muitas outras notórias obrigações democráticas descumpridas pelo Poder Público são definidas e protegidas pelos seguintes artigos da CF/88: Art. 144 (Segurança Pública) ; Art. 194, VII (Seguridade Social); Art.  198, I, II e III (Saúde); Art. 204, I (Assistência Social); Art. 205 e 206 – Educação; Art. 225 (Meio Ambiente); Art. 227 (Família). 
Alguns dos preceitos definidos constitucionalmente podem assim ser lidos:
Art. 194, VII – “caráter democrático e descentralizado da administração, mediante gestão quadripartite, com participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do Governo nos órgãos colegiados”.
Art. 205. “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.
Art. 225. “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações”.
Art. 227. “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.
Há, enfim, duas conclusões que saltam do texto: o não-cumprimento da Constituição, em uma democracia, seria alvo de punição; se não ocorrem investidas a fim de se obrigar ao cumprimento dos dispositivos democráticos da Constituição, obviamente, a democracia não se sustenta mais.
A penúltima observação é uma assertiva: a Constituição figurou como referência mundial porque os princípios da descentralização e da desconcentração do poder de mando foram bem encetados. Com a anulação da representação social, é a Carta Política que se desfaz, uma vez que o povo é afastado da Política reguladora das instituições.
A última questão, uma interrogação, invoca o seguinte: por que nada fazemos ou ficamos, enquanto povo e poder instituído, tão felizes com o fim da democracia?
Em país de histórico autoritário e marcado pela violência política e maldade institucional, quando se desburocratiza a política é apara atacar a democracia social.
Vinício Carrilho Martinez (Dr.)
Professor Associado da Universidade Federal de São Carlos – PPGCTS/DEd
 

Sobre o autor
Vinício Carrilho Martinez

Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

Informações sobre o texto

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