O direito à vida do menor e o direito à liberdade de crença dos pais.

11/03/2019 às 17:20
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Os julgados que envolvem o direito à vida dos menores e os direito à liberdade de crença dos genitores são frequentes e todas as vezes que são veiculados, geram polêmicas. O objetivo é apresentar os fundamentos legais que norteiam as discussões em juízo.

"Um juiz de Goiânia (GO) concedeu liminar para que uma recém-nascida, filha de um casal que segue a doutrina das Testemunhas de Jeová, receba transfusão sanguínea. Internado na UTI neonatal da capital goiana, o bebê nasceu com 28 semanas de gestação, pesando apenas 1,2 quilo. Segundo relatório médico da equipe que cuida da criança, o procedimento é necessário para tratar uma anemia. Já foram tentados tratamentos alternativos, mas eles não deram conta de reverter o quadro clínico do bebê."

Gazeta do Povo, 09/03/2019.

           O trecho acima foi extraído do portal “Gazeta do Povo” e repercutiu por toda internet, gerando muitos debates e polêmicas em torno do tema nas redes sociais. Independente das questões subjetivas que envolvem as discussões, a matéria permite importantes reflexões jurídicas, pois está intimamente ligada aos direitos fundamentais e tem repercussão em outros diplomas normativos do direito pátrio e podem, em determinado momento; se colidirem, conforme ocorreu no caso em comento.

       Como as decisões judiciais decorrem de fundamentações jurídicas, apesar da alta carga de subjetivismo que norteiam esses debates, compreender a profundidade dos temas que circundam o fato permite vislumbrar como eles estão mais presentes no cotidiano do que se imagina, e não surgem apenas nesses casos extremos. A análise leva a compreensão de que não se trata apenas do direito à vida e o direito liberdade de crença, mas se fundam em outros institutos jurídicos.

DIREITOS DAS CRIANÇAS

O direito à saúde:

            Em linhas gerais, os direitos sociais são as prestações positivas que qualquer Estado democrático deve prover visando a dignidade da pessoa, cuja qual é um dos fundamentos da República Brasileira (Artigo 1, III). Trata-se de um mínimo existencial que um País deve oferecer à todas as pessoas; nacionais ou estrangeiras; para que a sua sobrevivência seja assegurada.

            O ilustre jurista José Afonso da Silva (2007 : p.287) ensina que os direitos sociais são os pressupostos para o exercício dos direitos individuais, pois eles criam condições materiais adequadas à consecução da igualdade real, que por sua vez, favorece o exercício efetivo das diversas liberdades.

No capítulo II, do título II da Constituição Federal de 1988 estão previstos os direitos sociais, dentre eles o direito à saúde e o direito à infância, disciplinados no Artigo 6º. São os fundamentos da matéria levada ao conhecimento do Poder Judiciário do Estado de Goiás, conforme o que segue:

“Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”.  (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 90, de 2015)

            Esses mesmos direitos aparecem na ordem social; que tem como objetivo o bem-estar e a justiça sociais; e está prevista no Título VIII da Constituição Brasileira de 1988, a partir do Artigo 194. O Direito à saúde figura no Artigo 196, nos seguintes termos:

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

            Como trata-se de um direito fundamental, os entes federados têm o dever de assegurar o atendimento integral para que a recuperação seja alcançada da melhor forma, independentemente se o indivíduo é ou não contribuinte da seguridade social. Esta previsão está consonante à solidariedade, principal característica da Constituição Brasileira de 1988.

Da proteção à infância

            O caso traz como titular do direito um menor, cujos pais são contrários ao tratamento determinados pelos profissionais. Em que pese as alegações de que os pais são os responsáveis pelos filhos, a Constituição Federal de 1988 estende esse dever a sociedade e ao Estado constituído, nos termos do Artigo 227 e seguintes:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (Redação dada Pela Emenda Constitucional nº 65, de 2010)

§ 1º O Estado promoverá programas de assistência integral à saúde da criança, do adolescente e do jovem, admitida a participação de entidades não governamentais, mediante políticas específicas e obedecendo aos seguintes preceitos:(Redação dada Pela Emenda Constitucional nº 65, de 2010)

            Importante notar que a previsão como um dever não se dá por um mero acaso. Quando o legislador determina desta forma, e não como uma obrigação, significa que a prestação de ser continuada e não se extingue com o cumprimento em determinado momento. Ela prevalece e se perpetua ao longo do tempo.

            Nesse caso, o representante do Estado poderia substituir a vontade dos pais e autorizar o procedimento de transfusão sanguínea? Há de se considerar antes a legislação brasileira infraconstitucional; aquela que está abaixo da Constituição Federal e consonante a ela; para um melhor aprofundamento na celeuma.

            A lei de regência dos direitos da criança e do adolescente é a Lei n. 8.069 de 1990, denominada Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). No artigo 4º da aludida norma, ao repetir o teor do Artigo 227 da Constituição Federal de 1988, ainda assegura à prioridade nos direitos referentes a saúde, conforme a alínea “a”. Essa proteção se traduz em prioridade em quaisquer circunstâncias:  

Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende:

a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias;

            A redação do dispositivo torna clarividente a proteção do menor no tocante as matérias que envolvem a vida e a saúde, independentemente de outras motivações que possam conflitar com esse interesse, o que engloba o direito de crença dos genitores, conforme o caso em tela indica.

O Poder familiar

O poder familiar ganhou novos contornos com a promulgação do Código Civil de 2002, que passou a vigorar em 2003. Ainda que no Código Civil de 1916 a redação tratar de direitos dos pais, a nomenclatura destinada ao instituto era “pátrio poder” e normalmente recaia sobre a figura do pai.

            O pátrio poder remete ao Império Romano e assegurava o direito ao genitor, exclusivamente na pessoa do homem, sobre a sua prole, prevendo, inclusive, a possibilidade de pôr fim às vidas dos filhos, de maneira que o poder ficou compreendido como um direito ao longo do tempo e não como um dever.

            Maluf e Maluf (2018 : p. 665) explicam que  atualmente o poder familiar recai sobre o pai e a mãe e transcende a ideia de direito. É, na verdade, um poder-dever, um encargo público atribuído aos pais para o desempenho dessa função, enquanto durar a menoridade dos filhos. No Código Civil vigente está previsto a partir do Artigo 1630.

O artigo 1634 daquele documento legal determina os direitos e os deveres dos pais, que independe da situação conjugal. É importante lembrar que os genitores podem ser destituídos do poder familiar. Dentre as causas, listadas no artigo 1638 do Diploma Civil, o inciso II alude ao abandono do menor, que pode se configurar nos casos em que os infantes deixam de receber tratamentos ou acompanhamentos médicos hospitalares necessário à sua plena formação e recuperação.

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Todavia, o mencionado dispositivo não se aplica ao caso em comento. Foi lembrado apenas para evitar confusões e equívocos em situações fáticas que envolvem crianças. A recusa à transfusão sanguínea não implica na perda do poder familiar dos genitores, frisa-se.

Do exposto, é possível concluir que o poder familiar não é capaz de justificar a recusa dos pais ao procedimento hospitalar que a saúde da criança inspirava naquele momento.

A Incapacidade Absoluta

            Ademais, é importante suscitar também o Artigo 3º do Código Civil de 2002 (Lei n. 10.406 de 2002). Com o advento da Lei n. 13.146 de 2015, apenas os menores de dezesseis anos são considerados absolutamente incapazes:

Art. 3º São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de 16 (dezesseis) anos. 

            O objetivo da lei é tutelar aqueles que não têm o necessário discernimento para o exercício pessoal dos atos da vida civil, bem como para exercitar outros direitos, dentre os quais os arrolados no Artigo 5º da Constituição Federal, especialmente quando se trata de um recém-nascido.

            A interpretação do artigo não pode criar a falsa ideia de que esses menores não dispõem de direitos. Na verdade, a lei impede que eles os exercitem pessoalmente, devendo ser representados pelos pais ou pelos responsáveis. De acordo com o Código Civil de 2002 em seu Artigo 1º, as pessoas têm personalidade jurídica desde o nascimento com vida, porém, os menores de 16 anos só os exercitam quando representados.  

            A Professora Maria Helena Diniz (2013 : p.172), em seu clássico “Curso de Direito Civil Brasileiro” preconiza que os menores de dezesseis anos não conseguem distinguir o que lhes é conveniente ou prejudicial. E devido ao desenvolvimento mental incompleto depende de auto orientação, daí a razão da incapacidade ser absoluta.

            Dessa forma, a Justiça Brasileira não tem reconhecido como legítima as escusas de tratamentos médicos sob argumentos religiosos em casos envolvendo as crianças, pois pela idade não é possível avaliar que aquela doutrina é de fato a sua religião, em razão da ausência da capacidade de manifestar a sua real vontade.

Nesses casos, a intervenção judicial tem sido determinante para que o direito da criança à vida (Artigo 5º, Caput, CF/88) prevaleça sobre o direito de liberdade de consciência e de crença (Artigo 5º, VI, CF/88) dos pais. O mesmo pode ser aplicado aos casos em que o indivíduo, mesmo os maiores e capazes, por quaisquer motivos não possam exprimir as suas vontades.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

            Nos casos que envolvem o direito à saúde de uma criança e o direito à liberdade de crença dos genitores prevalecerá o direito à vida, tendo em vista a sua natureza indisponível, que é sustentáculo para um direito maior: o direito à vida. A crença e o pensamento religioso dos pais não têm o condão de cercear o infante a ter acesso ao tratamento adequado e necessário para assegurar a sobrevivência.

            Por fim, é mister ressaltar que a equipe médica não deixou de considerar a posição e os valores dos pais, pois, conforme a matéria indica, o relatório apresentado à autoridade judicante demonstra que os profissionais tentaram outros procedimentos antes de buscar a transfusão sanguínea, no entanto, os tratamentos alternativos não foram suficientes para reverter a condição clínica da criança.

REFERÊNCIAS BIBIOGRÁFICAS

DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. 1º vol. São Paulo: Ed. Saraiva, 2013.

MALUF, Carlos Alberto Dabus. MALUF, Adriana Caldas do Rego Freitas. Curso de Direito de Família. 3ª Ed. São Paulo: Saraiva Jur. 2018.

SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional. 31ª ed. São Paulo: Ed. Malheiros, 2008.

https://www.gazetadopovo.com.br/justica/juiz-autoriza-transfusao-de-sangue-a-filha-bebe-de-testemunhas-de-jeova-9zwuas4e64gswku8guf7gibvg/?fbclid=IwAR2d0dKWH4S5wtPOecURygaa-Bj2ZXLGQ5rIZa_2NuQ5IZ8AVSJXjvRInjw

Ernesto Turman.

Ernesto Turman é Advogado.

[email protected]

Sobre o autor
Ernesto Thurmann

Bacharel em direito, advogado. Formado em administração de empresa, especialista em marketing e em gestão de negócios, áreas em que atuou como docente.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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