Aquisição de terras por estrangeiros no Brasil

um “vácuo” normativo persistente

13/03/2019 às 17:13
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O que ocorre na verdade é a necessidade de se reconhecer que o posicionamento da AGU no parecer de 1998 seria o mais adequado e razoável ante a revogação do § 1º do art. 1º da Lei nº 5.709/71.

Em 2011, a Comissão de Agricultura da Câmara dos Deputados acolhia o Requerimento nº 1 para a criação de uma Subcomissão Especial (denominada SUBESTRA)[1], para que fossem analisadas e propostas algumas medidas para o processo de aquisição e utilização de imóveis rurais por pessoas físicas e jurídicas estrangeiras.

Com a aprovação do Relatório nº 04 de 2012 dessa Subcomissão, no âmbito da Comissão, o principal fruto da SUBESTRA foi o de trazer a lume o Projeto de Lei nº 4.059[2], apresentado em 2012, destinado, entre outras matérias, à regulamentar o art. 190 da CRFB/88 e definir os contornos do modelo de investimento imobiliário rural estrangeiro no país.

A matéria, de fato, representa um tema sensível e traz consigo carga de repercussão geral, embasando posições antagônicas que guardam, ambas, fundamento constitucional. 

Segundo Marcel Edvar Simões[3], membro da AGU, delineando um quadro dessas posições, aqueles favoráveis à aquisição irrestrita de imóveis rurais por estrangeiros ou por empresas brasileiras controladas por capital estrangeiro, advogam a favor do desenvolvimento econômico do país, de uma economia de mercado livre e de uma tendência internacional nesse sentido, buscando a flexibilização de regras sobre aquisição e utilização.

Por outro lado, há a posição daqueles que trazem outros valores, princípios, também albergados pela CFRB/88, sendo o principal deles a soberania nacional. Nessa linha, o que se entende é que, caso ocorra a liberalização e flexibilização de regras na matéria, colocar-se-ia em risco a segurança alimentar, a segurança nacional (a depender da área), e ocorreria dificuldade para fiscalização de temas importantes como o trabalho escravo.

Regendo a matéria tradicionalmente, existe no ordenamento a Lei nº 5.709/71, que traz diversas restrições quanto à aquisição de imóveis rurais por estrangeiros quanto: a) ao tamanho da propriedade (art. 3º); b) à necessária vinculação dos imóveis rurais adquiridos aos objetivos estatutários das pessoas jurídicas estrangeiras ou brasileiras a elas equiparadas (art. 5º); c) à extensão do total de terras pertencentes a estrangeiros limitada à ¼ da superfície do Município (art.12); e d) à vedação de doação de terras da União e dos Estados a pessoas físicas ou jurídicas estrangeiras (art. 14).

O PL nº 4.059/2012, que guarda forte relação com a aprovação do parecer vinculante da Advocacia Geral da União em 2010 – matéria a ser examinada adiante - se propõe a disciplinar a aquisição, o arrendamento e o cadastro de imóvel rural, em todo o território nacional, quando ocorrer o envolvimento de pessoas físicas e jurídicas estrangeiras.

As restrições quanto à aquisição no projeto estão relacionadas à organizações não-governamentais (ONG´s), fundações particulares, e, especialmente, aos fundos soberanos constituídos por estados estrangeiros, nos termos do art. 3º.

Vedando o arrendamento por tempo indeterminado (art. 4º), o projeto, reitera disposições da Lei nº 5.709/71, estabelecendo que a soma das áreas rurais pertencentes e arrendadas a pessoas estrangeiras não poderá ultrapassar ¼ da superfície dos Municípios onde se situam, e, do mesmo modo, trata de restringir a apropriação ou arrendamento de mais de 40% de um determinado Município por pessoas de mesma nacionalidade.

Cabe ressaltar, outrossim, o projeto vincula a aquisição de imóvel rural por pessoa estrangeira à lavratura de escritura pública, que deverá, obrigatoriamente conter, dentre outros requisitos, a prova de residência no território nacional, e o memorial descritivo do imóvel geo-referenciado. O texto do projeto também apresenta regra no sentido de ser vedada, a qualquer título, a alienação ou doação de terras da União, dos Estados ou dos Municípios a pessoas estrangeiras, nos termos de seu art. 13.  

Ainda no projeto, um de seus pontos altos é a revogação expressa da Lei nº 5.709/71, por meio do art. 16, que, desde a Constituição de 1967 até o presente, tratou de regular a aquisição de imóvel rural por estrangeiro residente ou pessoa jurídica autorizada a funcionar no país.

Conforme posição do Ministério da Agricultura, o PL nº 4.059/12 promove a igualação do investidor estrangeiro, sob a forma de empresa nacional de capital estrangeiro, à empresa brasileira, retirando qualquer restrição de aquisição de terras para estas empresas. Da mesma forma, o Ministério[4] ressalta serem pontos de relevância para a Câmara dos Deputados: i) o elevado grau de financiamento de produtores rurais por multinacionais de insumos e traders; ii) as hipotecas dadas como instrumento de garantia; iii) as limitações de contratos e nulidade; e iv) a possibilidade de restrição de crédito e investimentos no setor de soja.

O presente artigo visa apresentar algumas considerações sobre o panorama jurídico da aquisição e arrendamento de terras por empresas brasileiras de capital estrangeiro, utilizando para tanto a sucessão de pareceres da AGU na matéria, os quais acabam por indicar qual é o quadro normativo de fato aplicável.

Fazendo um breve retrospecto aos anos 90, a situação jurídica geral para a aquisição de terras por estrangeiros e empresas brasileiras de capital estrangeiro no Brasil andou lado a lado com os pareceres da AGU na matéria interpretando a Lei nº 5.079/71.

O primeiro parecer na matéria é o GQ 22/94[5], quando era então Advogado-Geral da União, Geraldo Quintão. Esse parecer buscou considerar a constitucionalização do conceito de empresa brasileira, nos termos do art. 171, I, da CRFB/88, de modo a admitir restrições somente nos casos expressos no próprio texto constitucional. Assim, a Lei nº 5.079/71, promulgada na vigência da Constituição de 1967, convivia em um ordenamento em que se admitia restrições à empresa brasileira com base em lei ordinária.

O entendimento do parecer de 1994 foi no sentido de que não se operara a recepção do § 1º do art. 1º da Lei nº 5.709/71 por parte da CRFB/88 (art. 171)[6], e que as restrições da legislação não seriam aplicadas[7]. Entretanto, esse parecer, por não ter sido publicado, teve eficácia apenas perante o Ministério da Agricultura, responsável que foi pela consulta.

No ano de 1998, um segundo parecer é emitido pela AGU na esteira da aprovação da EC nº 06/95, que acabara por abolir o conceito constitucional de empresa brasileira, presente no art. 171, retirando a distinção entre o que seria empresa brasileira e empresa brasileira de capital nacional. O parecer em tela, GQ 181/98[8], se tornou vinculante para toda administração pública federal, tendo em vista o fato de ter sido aprovado pelo Presidente da República e publicado no D.O.U.

Na prática, o parecer de 1998 reiterou o de 1994, de modo a manter conclusão deste quanto à revogação do § 1º do art. 1º da Lei nº 5.709/71, mesmo em face da revogação do art. 171 da CRFB/88, não ocorrendo repristinação, acenando, entretanto, para a possibilidade de lei futura impor restrições às aquisições de estrangeiros no país.

Pode-se compreender à essa altura que o parecer GQ - 181/98 retroagiria à data da promulgação da Constituição vigente (05.10.1988), estabelecendo um período de suspensão das restrições quanto à aquisição de terras por empresas nacionais sob controle estrangeiro, situação que perduraria até 23.08.2010, como se aborda adiante.

Assim, entre 1988 e 2010, verdadeiro vácuo normativo na matéria se estabeleceu.

Em 2010, o Parecer AGU LA – 01 representou uma guinada radical no entendimento do órgão, de modo que se passou a considerar a compatibilidade entre o § 1º do art. 1° da Lei nº 5.709, de 1971, e a Constituição Federal de 1988, em sua redação original, revisando, assim, o que havia sido definido no Parecer GQ 181/98.

O parecer de 1998 em cotejo com o que o sucedeu só é possível ser compreendido se considerarmos que, inicialmente, aquele acabou por considerar revogado (não-recepcionado) o § 1º do art. 1º a Lei nº 5.709/71 em função do art. 171 da CRFB/88. Num segundo momento, este dispositivo, na condição de restrição genérica à empresa brasileira, logo em seguida também é expressamente revogado, terminando, assim, todas as restrições do ordenamento, e isso, desde a data da promulgação do texto constitucional originário (05.10.1998).

Retomando o texto original do art. 171 da CRFB/88, entretanto, o novo parecer de 2010 reitera que somente as empresas brasileiras de capital nacional poderiam atuar nos setores imprescindíveis ao desenvolvimento tecnológico nacional, devendo, ademais, cumprir com exigências adicionais que lhe outorgam o título de empresas nessa modalidade.

O fundamento central do parecer em tela reside na compreensão da carga restritiva genérica do § 1º do art. 171 originário da CRFB/88, pois, segundo a AGU: “Assim, diferentemente do sustentado pelo Parecer nº GQ-22 de 1994, havia, sim, no texto constitucional, de 1988, restrições genéricas às empresas brasileiras com sede e administração no país”.

Tais empresas sujeitas às restrições, cumpre lembrar, tratam-se daquelas que não são controladas por pessoas físicas domiciliadas e residentes no país ou por entidades de direito público interno em setores estratégicos não determinados.

As restrições genéricas previstas na Constituição originária embasariam, nesse quadro, a compatibilidade entre as restrições consubstanciadas na Lei nº 5.709/71 e o próprio texto constitucional.

Os dispositivos da Constituição analisados pela Advocacia para fundamentar seu parecer são, em sua maioria originários, afastando a ocorrência, como já dito, da repristinação de leis em decorrência da revogação de alguns por força de emendas posteriores. Dentre tais dispositivos trabalhados em interpretação sistemática, situam-se os arts. 1°, I, 3°, II, 4°, I, 5º, caput, 170, I, 171, § 1º – este totalmente revogado pela EC n ° 06/95, e os arts. 172 e 190, todos da CRFB/88.

Indo em linha contrária ao parecer de 1998, o de 2010 ressalta que a repristinação é uma discussão posterior à análise da recepção ou não do dispositivo. Como é cediço, aquele primeiro parecer considerou verdadeiro vácuo normativo na questão das restrições, mas, ao mesmo tempo, reconheceu, plenamente, a legitimidade e validade de restrições futuras por parte do legislador ordinário.

Pelo exposto, levanta-se a questão de cunho constitucional referente ao termo inicial para análise da recepção ou não de lei ou ato normativo federal. A norma que se analisa seria recepcionada pela Constituição tal qual esta se apresenta hoje ou seria o caso de considerar o diploma na sua forma originária, contendo dispositivos ainda não revogados e/ou alterados?

O parecer de 2010 aborda a questão desde esses dois momento: considera recepcionada a norma ordinária tanto na redação originária, quanto na atual, quando se recorre à interpretação sistemática do texto constitucional.

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A análise a que se procedeu no último parecer considerado é de cunho eminentemente constitucional, pautando-se, em especial, nos princípios da unidade da Constituição, da máxima efetividade das normas e os princípios constantes da Constituição Federal de 1988 que podem ser aplicados à matéria, como é o caso da soberania nacional econômica, independência nacional, interesse nacional e a limitação dos investimentos de acordo com a definição soberana pelo Estado brasileiro.

Na análise de Sérgio Varella Bruna, analisando em especial a norma contida no art. 190 da Constituição, aquele autor assevera que: “Embora o novo parecer argumente que a disposição constitucional em apreço não pode ser interpretada literalmente, o fato é que a mais consagrada regra de interpretação aponta claramente para a solução oposta àquela indicada pela AGU, uma vez que é pacífico que as disposições restritivas devem ser objeto de interpretação estrita. Tampouco cabe invocar interpretação sistemática da Constituição para justificar a interpretação extensiva, com base em conceitos tão elásticos e mutantes quanto a ‘soberania’, o ‘desenvolvimento nacional’ ou a ‘independência nacional’[9].

Em sua literalidade, o art. 190 da CRFB/88 diz que: “A lei regulará e limitará a aquisição ou o arrendamento de propriedade rural por pessoa física ou jurídica estrangeira e estabelecerá os casos que dependerão de autorização do Congresso Nacional”.

O novo entendimento, em que pese o nobre objetivo a que se propõe de “não interpretar a Constituição em tiras”, realiza um trabalho hermenêutico que, como salientado na opinião acima, afasta o elementar da interpretação, que reside, justamente, em se partir das palavras utilizadas pelo texto legal.

O art. 190 representa de maneira clarividente verdadeira tomada de posição da Constituinte no que tange à aquisição e o arrendamento de propriedade rural por pessoa física ou jurídica estrangeira. Posição essa que aponta para a elaboração de lei própria a reger a matéria, que, segundo entendemos, deveria ser complementar. Desse modo, o texto constitucional, por si mesmo, em um esforço de interpretação, afasta a restrição do texto legal de 1971, revelando que esta norma não fora recepcionada, e que deveria haver norma específica para a matéria no futuro.

Assim, o que ocorre na verdade é a necessidade de se reconhecer que o posicionamento da AGU no parecer de 1998 seria o mais adequado e razoável, e, desse modo, ante a revogação do § 1º do art. 1º da Lei nº 5.709/71, e a não ocorrência de repristinação desse dispositivo em virtude da revogação do art. 171, há de concluir pela existência de uma “vácuo” normativo persistente na matéria em questão.

A restrição genérica à pessoa jurídica brasileira, mas com capital estrangeiro, se existiu no âmbito da Constituição originária, no texto atual não pode mais ser verificada, uma vez que resta tão somente a restrição referente ao que seriam, verdadeiramente, “pessoa física ou jurídica estrangeira” e não empresas brasileiras.

A AGU, ao revisar seu parecer, importa lembrar, salienta questões de fato importantes como a “supervalorização de nossas terras rurais férteis causada pelo desenvolvimento de tecnologia nacional apta a criar inovadoras formas de geração de energia a partir de fontes naturais renováveis, pela crise alimentar mundial e pela decorrente valorização de nossas commodities e, ainda, pela riqueza mineral de nosso subsolo”.

Tal horizonte, concretamente, não pode ser perdido de vista, e deve ser, necessariamente conjugado com outros interesses que formam o complexo setor do agronegócio brasileiro em franca integração com os mercados mundiais, e que estão bem delineados na posição do Ministério da Agricultura (MAPA) apresentado linhas acima, e que considera, dentre outras questões, o elevado grau de financiamento de produtores rurais por multinacionais de insumos e traders e a possibilidade de restrição de crédito e investimentos no setor de soja. Todas essas preocupações bastante legítimas para o setor.

Ante o exposto, o caminho natural para a questão da aquisição de terras por empresas brasileiras de capital estrangeiro, bem como por verdadeiras pessoas físicas ou jurídicas estrangeiras, ao que tudo leva a crer, trata-se do processamento de regular projeto de lei tratando do tema, como é o caso do PL nº 4.059, de modo a se dar verdadeira efetividade à vontade constituinte expressa no art. 190, e a se positivar genuína pactuação democrática da sociedade brasileira no que tange à sua abertura para novos investimentos no setor do agronegócio.

 


[1] Disponível em: < http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/capadr/conheca-a-comissao/subcomissoes >. Acesso em 04 de fev. 2019.

[2] Disponível em: < https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=548018 >. Acesso em 04 de fev. 2019.

[3] Em entrevista ao Blog Civil & Imobiliário, a matéria foi ventilada e amplamente discutida. O registro encontra-se no link: < https://www.youtube.com/watch?v=mqoqN8hpmm0&t=189s>.

[4] Disponível em: < http://www.agricultura.gov.br/assuntos/camaras-setoriais-tematicas/documentos/camaras-setoriais/soja/2017/38a-ro/app_compra_terra_estrangeiros_38ro_soja.pdf >.

[5] Disponível em: < https://www.agu.gov.br/atos/detalhe/258351 >.

 

[7] A Lei nº 8.629/93 determinava a aplicação ao arrendamento das mesmas restrições à aquisição de imóveis rurais por estrangeiros previstas na Lei n° 5.709, de 1971.

[8] Disponível em: < https://www.agu.gov.br/atos/detalhe/258351 >. Acesso em 04 de fev. de 2019.

[9] Disponível em: < https://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI117016,21048-Aquisicao+de+terras+por+estrangeiros >.

Sobre o autor
Manoel Martins Parreira Neto

Advogado graduado pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FDRP/USP), atuante na área de Direito Civil, Agrário e do Agronegócio.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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