A crise do sistema prisional brasileiro como base receptiva da teoria do estado de coisas inconstitucionais

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Objetivou o trabalho trazer maior compreensão acerca do tema "O Estado de Coisas Inconstitucional", pressuposto fundamental para elucidar a falência e violação da dignidade da pessoa humana inserido no sistema prisional brasileiro.

Introdução

 

É dizível que neste Brasil em que vivemos o estado de coisas inconstitucional está presente não somente no sistema carcerário, tema e estudo adiante, mas, infelizmente, na saúde, educação, políticas sociais, segurança pública, dentre outras vertentes, conforme se evidencia diariamente na mídia nacional, em especial, na atualidade, à situação intervencionista policial que vive o estado do Rio de Janeiro.

A Corte Constitucional da Colômbia, em 1997, entendeu o conceito de Estado de Coisas, que surgiu quando 45 professores colombianos tiveram seus direitos previdenciários violados, demonstrando um descumprimento generalizado por autoridades locais.

O caso brasileiro veio à tona após inúmeras rebeliões nos cárceres, as quais demonstraram o desrespeito humanitário pátrio com a violação de direito fundamental, declarado na quase milenar Magna Carta, produzindo verdadeiro horror de proporções infernais, como descrevia Dante em épica obra.

Segundo Beccaria[1] a pena, de caráter retributivo e de função intimidadora, deve ser certa. Ainda, a pena deve ser humana e proporcional, objetivando o arrependimento, jamais podendo superar o mal causado. A transgressão da norma pela conduta deve ser compreendida, e admitida à culpa, evoluindo assim para posterior regresso ao convívio social, ante a negativa liberdade moral, isto é, um processo de ressocialização do preso.

Destarte, a sociedade ordeira paga por segregar o transgressor às péssimas condições, desproporcionais e inconstitucionais à pena, condenando-o ciclicamente à prisão perpétua. De penas em penas, esse enclausurado retorna e reincide. Assim anda a sociedade: mais crimes, mais vítimas, mais criminosos!

Contudo, embasado em artigos, periódicos, publicações eletrônicas e dissertações estritas, haja vista, tema bastante novo, com escasseado acervo bibliográfico, este trabalho discorreu sobre o estado de coisas inconstitucional (ECI) adotado em partes pelo ordenamento jurídico e justificado retoricamente como falência do sistema prisional, parece mais ser uma falácia ideológica de interesses políticos.

 

1.Origem do estado de coisas inconstitucional

 

            A expressão “Estado de Coisas Inconstitucional” (ECI) foi inicialmente cunhada pela Corte Constitucional da Colômbia (CCC) quando da Sentencia de Unificación – 559, de 1997. No caso, 45 professores dos Municípios de María La Baja e Zambrano tiveram direitos previdenciários malferidos por autoridades locais[2]. Ao analisar a situação, a Suprema Corte Colombiana constatou que o descumprimento da obrigação era generalizado, alcançando um grande número de professores, indo muito além dos autores da ação posta a julgamento. Verificou, outrossim, que a falha apontada não poderia ser imputada a um único órgão estatal, vez que possuiria ela uma natureza estrutural, na medida em que era relacionada a uma deficiência profunda da própria política geral de educação. Nesse processo, por reconhecer uma violação generalizada de direitos e a existência de falhas estruturais, a “CCC” decidiu em favor não apenas dos demandantes e nem contra somente os réus do processo, mas também em favor de todos aqueles em situações similares, dirigindo ordens em face de todas as autoridades e entidades públicas cujas ações seriam necessárias para corrigir as falhas sistêmicas detectadas.

Quando declara o Estado de Coisas Inconstitucional, a corte afirma existir quadro insuportável de violação massiva de direitos fundamentais, decorrente de atos comissivos e omissivos praticados por diferentes autoridades públicas, agravado pela inércia continuada dessas mesmas autoridades, de modo que apenas transformações estruturais da atuação do Poder Público podem modificar a situação inconstitucional. Ante a gravidade excepcional do quadro, a corte se afirma legitimada a interferir na formulação e implementação de políticas públicas e em alocações de recursos orçamentários e a coordenar as medidas concretas necessárias para superação do estado de inconstitucionalidades[3].

Em síntese, são três os pressupostos do Estado de Coisas Inconstitucional:

  • Constatação de um quadro não simplesmente de proteção deficiente, e sim de violação massiva, generalizada e sistemática de direitos fundamentais, que afeta a um número amplo de pessoas;
  • Falta de coordenação entre medidas legislativas, administrativas, orçamentárias e até judiciais, verdadeira “falha estatal estrutural”, que gera tanto a violação sistemática dos direitos, quanto à perpetuação e agravamento da situação;
  • Superação dessas violações de direitos exige a expedição de remédios e ordens dirigidas não apenas a um órgão, e sim a uma pluralidade destes - são necessárias mudanças estruturais, novas políticas públicas ou o ajuste das existentes, alocação de recursos etc.

O Poder Judiciário intervém, no Estado de Coisas Inconstitucional por meio do ativismo judicial, “a ideia de ativismo judicial está associada a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes” que é um agir proativo como intuito de dirimir as omissões de todo sistema institucional Brasileiro[4].

 

2.Dignidade da Pessoa Humana

 

            A Declaração Universal dos Direitos Humanos[5], aprovada em 1948, pela Assembleia Geral das Nações Unidas, assinala o princípio da humanidade e da dignidade já no seu preâmbulo.

 

Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo (…). Considerando que as Nações Unidas reafirmaram, na Carta, sua fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e valor da pessoa humana (…).

 

Plácido e Silva[6] consigna que:

 

“dignidade é a palavra derivada do latim dignitas (virtude, honra, consideração), em regra se entende a qualidade moral, que, possuída por uma pessoa serve de base ao próprio respeito em que é tida: compreende-se também como o próprio procedimento da pessoa pelo qual se faz merecedor do conceito público; em sentido jurídico, também se estende como a dignidade a distinção ou a honraria conferida a uma pessoa, consistente em cargo ou título de alta graduação; no Direito Canônico, indica-se o benefício ou prerrogativa de um cargo eclesiástico.

É preciso compreender, portanto, que o Estado não pode punir de forma arbitrária, uma vez que encontra sua atuação limitada pelos direitos fundamentais erigidos no ordenamento jurídico, e que o preso conserva os demais direitos adquiridos enquanto cidadão, que não sejam incompatíveis com a "liberdade de ir e vir", à medida que a perda temporária do direito de liberdade em decorrência dos efeitos de sentença penal refere-se tão somente à locomoção.  Tanto é verdade que a Lei das Execuções Penais (LEP)[7] contempla expressamente os direitos básicos dos detentos. São eles:

a) Direito à alimentação e vestimenta fornecidos pelo Estado.

b) Direito a uma ala arejada e higiênica;

c) Direito à visita da família e amigos;

d) Direito de escrever e receber cartas;

e) Direito a ser chamado pelo nome, sem nenhuma discriminação;

f) Direito ao trabalho remunerado em, no mínimo, 3/4 do salário mínimo;

g) Direito à assistência médica;

h) Direito à assistência educacional: estudos de 1º grau e cursos técnicos;

i) Direito à assistência social: para propor atividades recreativas e de integração no presídio, fazendo ligação com a família e amigos do preso;

j) Direito à assistência religiosa: todo preso, se quiser, pode seguir a religião que preferir, e o presídio deve propiciar locais adequados aos cultos;

k) Direito à assistência judiciária e contato com advogado: todo preso pode conversar em particular com seu advogado e se não puder contratar um o Estado tem o dever de lhe fornecer gratuitamente.

Teoricamente, a finalidade das penas privativas de liberdade é a readaptação social do infrator e a prevenção da criminalidade. Na prática, a legislação penal e o sistema prisional vigentes no Brasil têm se mostrado incompatíveis com estes objetivos, em razão das condições ambientais e subumanas a que são submetidos os sentenciados nas prisões brasileiras[8].

Assevera Maria Angélica Lacerda Marin Dassi[9] (2013):

 

“No panorama brasileiro, o estado desordenado do sistema carcerário constitui-se mais um dos efeitos da falência dos paradigmas da modernidade. A prisão serve tão-somente para deportar do meio social aqueles indivíduos que representam um risco à sociedade. Na perspectiva foucaultiana, constitui-se um instrumento utópico de ressocialização, criado para atender aos interesses capitalistas. Ela exclui do ângulo de visibilidade as mazelas sociais, mas não recupera o infrator e não contribui para diminuir as práticas criminosas. Estabelecendo um confronto entre as disposições legais e a realidade, observa-se que os requisitos mínimos da boa condição penitenciária, preconizados pela legislação penal brasileira estão longe de serem cumpridos. Para esta constatação, basta um breve olhar sobre as prisões existentes no país”.

 

Segundo pesquisas recentes, sete em cada dez presos que deixam o sistema penitenciário no país, voltam ao crime. Logo, temos uma das maiores taxas de reincidência do mundo. O preso não tem sua dignidade respeitada nas cadeias públicas, o inferno a que são submetidos só os fazem se afundar cada vez mais e enxergar que o único caminho possível para suas vidas é o crime[10].

Todavia, apesar da Lei de Execução penal preocupar-se em "assegurar ao condenado todas as condições para a harmônica integração social, por meio de sua reeducação e da preservação de sua dignidade"[11], sabemos que o Estado não protege os direitos do preso previstos no ordenamento jurídico, tendo em vista que, de forma arbitraria, executa a pena ignorando completamente princípios básicos, como o da dignidade da pessoa humana. E é dessa maneira, que o Poder Estatal transgride quanto àqueles indivíduos que cometeram crimes.

 

3.Crise carcerária brasileira

 

            O sistema penitenciário brasileiro apresenta uma situação alarmante. As rebeliões e fugas de presos são uma resposta às condições desumanas e degradantes a que são submetidos. Apesar da legislação proteger os direitos do preso, a realidade é outra. Além da violação dos direitos à integridade física e moral do preso, a pena passa a ter um caráter cruel e massacrante aos apenados.

            Dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen)[12], produzido pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen), revelam que o número de presos no Brasil aumentou 168% de 2000 a 2014. O grande número de detentos – em dezembro de 2014, eram 622 mil – não foi suportado pelas prisões brasileiras, que, apesar de ter recebido mais vagas (triplicou no período 2000-2014, segundo a Rede Justiça Criminal), passou a operar em permanente superlotação. Hoje, o país teria capacidade de encarcerar apenas 371 mil pessoas – ou seja, na época havia um déficit de 250 mil vagas. O Brasil também está no sentido contrário de países como os Estados Unidos, em que o encarceramento tem caído.

Dos mais de 600 mil presos no Brasil hoje, cerca de250 mil, ou 40% do total, são presos provisórios. A maior parte dessas prisões surge depois de uma prisão em flagrante. Prisões em flagrante levam a prisões provisórias sem 94,8% dos casos, segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ). O Infopen revela que 26% desses presos ficam detidos por mais de três meses. Há relatos de pessoas que viram o juiz pela primeira vez depois de passar mais de dois meses no cárcere[13].

Presídios superlotados têm protagonizado as páginas de jornal desde o fim de 2016, com mortes e guerras entre facções criminosas. Dados da situação dos estados:

Manaus - em 1º de janeiro de 2017, o país ficou chocado com o massacre ocorrido em uma rebelião no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj) em Manaus, onde 56 presos morreram. A rebelião no Compaj só é superada em número de mortos pelo chamado Massacre do Carandiru, no qual 111 detentos foram mortos, em 1992. Agentes carcerários feitos reféns foram libertados após negociação entre os líderes da rebelião e autoridades

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Roraima - 33 presos da Penitenciária Agrícola de Monte Cristo (Pamc), na zona Rural de Boa Vista (RR), foram mortos.

Rio Grande do Norte - pelo menos 26 presos que cumpriam pena na Penitenciária Estadual de Alcaçuz, em Nísia da Floresta, na região metropolitana de Natal (RN) morreram durante rebelião. A Penitenciária de Alcaçuz é considerada a maior unidade prisional do estado. Com um total de 620 vagas, abriga atualmente uma população prisional 1.083 presos em regime fechado.

Paraná - pelo menos dois presos morreram e 28 fugiram da Penitenciária Estadual de Piraquara, na região metropolitana de Curitiba. segundo a Secretaria Estadual de Segurança Pública e Administração Penitenciária, os internos escaparam após uma explosão que abriu um buraco no muro da unidade.

Minas Gerais - detentos fizeram um motim, na segunda-feira 16 de janeiro, no Presídio Antônio Dutra Ladeira, em Ribeirão das Neves (MG), na região metropolitana de Belo Horizonte. Os presos reivindicaram ainda melhorias nos atendimentos médico, odontológico e psicológico e no tratamento aos parentes, que também estariam sofrendo abusos. Nas últimas semanas, o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho, duas das principais facções de narcotráfico do Brasil, têm promovido ou incentivado rebeliões em unidades prisionais do país.

Santa Catarina - detentos do Presídio Regional de Lages, em Santa Catarina, começaram um motim ateando fogo em colchões. Dez presos ficaram feridos pela. Não houve reféns ou fugas.

São Paulo - uma rebelião no Instituto Penal Agrícola na cidade de Bauru, interior paulista, resultou na fuga de 200 presos. Parte dos presos foi recapturada.

Entre presos provisórios que estão nas carceragens da polícia e presos provisórios do sistema penitenciário prisional, tem-se 41%; outros 41% no regime fechado; e 14% no regime semiaberto. Existem, também, 3% que aparecem no regime aberto, segundo dados da CPI do sistema carcerário brasileiro de 2017.

Estas estatísticas demonstram à notoriedade da realidade do sistema agonizante, já colapsada, encharcada de violações e agressões a dignidade da pessoa. Este reflexo provém de espancamentos físicos que terminam em algumas vezes em morte. Não há luz elétrica, inexistem chuveiros. A água é fornecida uma vez ao dia. Uma condição de higiene deplorável. Ratos e baratas passeiam em meio ao resto de comida fétida por todos os lados. Um verdadeiro depósito de lixo humano. Agentes prisionais usam e abusam da violência para estabelecer a chamada “disciplina carcerária”. É um sistema penal medieval bárbaro presente dentro do sistema penal constitucional que de fato se faz inconstitucional.

A constante negligência em conceder benefício a quem de direito faz jus, garantindo seus direitos de progressão de regime e liberdade a quem já cumpriu o prazo de restrição. Constantemente o princípio da legalidade corolário a constituição, é cumulativamente desrespeitado.

Entrementes, esta contínua condição desrespeitosa, e tanto quanto criminosa, promovido pelo estado e principalmente negligenciado pela sociedade que é a mais prejudicada neste conúbio de faz de conta que nada está acontecendo caminha a passos e de proporções épicas.

 

 

3.1.Papel do estado: o poder de punir.

 

O Direito Penal tem por finalidade essencial proteger os valores mais importantes dos indivíduos e da sociedade em geral. Tais valores são chamados bens jurídicos penais, entre os quais se destacam: vida, liberdade, propriedade, integridade física, honra, patrimônio público etc[14].

O preceito primário dá ao Estado o direito de punir (jus puniendi) o infrator da norma mediante a aplicação do preceito secundário.

 

No momento em que é cometida uma infração, esse poder, até então genérico, concretiza-se, transformando-se numa pretensão individualizada, dirigida especificamente contra o transgressor[15].

 

Se o direito penal, dependendo da opção política do estado, trata o indivíduo como inimigo, o processo penal, em sendo democrático, deve tratá-lo como amigo, isto é, assegurar-lhe os direitos e garantias fundamentais durante o curso do processo para, uma vez comprovada sua culpa, condená-lo, se for o caso.

Em regra, nos grandes Manuais de Processo Penal, há a definição de que o processo penal é a “disciplina jurídica que se ocupa com a atuação jurisdicional do Direito Penal, as atividades da Polícia Judiciária, os órgãos respectivos e seus auxiliares”, ou o Direito que faz “atuar as relações já reguladas pelo direito substancial”, ou como diz Giovanni Leone “o processo penal visa em primeiro lugar à declaração de certeza da responsabilidade de um indivíduo e a determinação da sanção” correspondente.

O Direito penal, em sentido subjetivo (ius puniendi), é entendido como potestade punitiva do Estado, traduzida como poder de cominar, aplicar e executar as penas; o conjunto de normas primárias e secundárias que lhe dá feição e, de certa forma, conforma o Direito penal (iuspoenale) constitui seu outro sentido, o objetivo. O primeiro sentido possui caráter eminentemente político, enquanto o segundo representa o seu aspecto normativo[16].

A Política criminal é vista como “conjunto sistemático de princípios e regras através dos quais o Estado promove a luta de prevenção e repressão das infrações penais.” Para Claus Roxin “a questão pertinente a como devemos proceder quando há infringência das regras básicas de convivência social, causando danos ou pondo em perigo os indivíduos ou a sociedade, conforma o objeto criminal”[17].

 

3.2.Pressuposto da Pena

 

A humanidade das penas remonta ao iluminismo, em que Beccaria[18], abolicionista da pena de morte, impõe que a crueldade e tortura à pena não havia proporcionalidade alguma com a ofensa e nem utilidade social, pois entendia que era um instrumento de pouco valia, uma vez que o inocente que não suportasse a dor confessaria o crime e o culpado que a suportasse seria inocentado.

 

"É melhor prevenir os crimes do que ter de puni-los; e todo legislador sábio deve procurar antes impedir o mal do que repará-lo, pois uma boa legislação não é senão a arte de proporcionar aos homens o maior bem-estar possível e preservá-los de todos os sofrimentos que se lhes possam causar, segundo o cálculo dos bens e dos males da vida."

 

De um lado tem-se a ideia de utilidade da pena e do outro, o respeito humano como pessoa. Ainda que fosse útil a pena cumprida com crueldade seguida de tortura, estaria afrontando a dignidade da pessoa humana, preceito constitucional.

Pensar, hodiernamente, a pena como restrição privativa de liberdade remete ao pré-iluminismo, castigando fisicamente o condenado publicamente inclusive com a pena de morte de natureza espetaculosa é algo pensado como ultrapassado, mas ainda presente no sistema afora. In casu, já abolida em nosso ordenamento salvo excepcionalidade, tema não prioritário neste.

O direito penal deveria priorizar outras penas em desfavor a restritiva de liberdade, menos humana. A regra geral deveria ser exceção, ultima ratio. A privação de liberdade deve significar e tão somente privação de liberdade, jamais a crueldade imposta nos cárceres nacionais.

A constituição federal na questão de interesse penal, apresentando as bases e fundamentos do poder de punir do Estado, expressa o caráter personalíssimo da pena, não podendo atingir qualquer outro que não o autor do delito (art. 5º, XLV), trazendo, em seguida o princípio da individualização da pena[19]:

Art. 5º (...)

XVLI – a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes:

a) privação ou restrição da liberdade;

b) perda de bens;

c) multa;

d) prestação social alternativa;

e) suspensão ou interdição de direito.

Rompendo com paradigmas estabelecidos, a CF desvincula a noção de pena da ideia de prisão, na medida em que estabelece outras formas de punição, que não a privação da liberdade. Na sociedade atual diversas são as condutas que são socialmente inaceitáveis, vez que acabam atingindo bens jurídicos de interesse comunal e que merecem a repressão em esfera penal. Por outro turno, é de se reconhecer, igualmente, que a prisão não necessariamente representa a solução mais apropriada, ou mesmo mais proporcional de resposta à prática de todos os crimes.

 

 

3.3.ADPF 347

 

Ressalta-se que no ordenamento jurídico brasileiro são verificadas cinco ações para o controle jurisdicional concentrado: arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF), ação direta de inconstitucionalidade (ADI), ação declaratória de constitucionalidade (ADC), ação direta de inconstitucionalidade por omissão (ADO) e ação direta de inconstitucionalidade interventiva. Especificamente quanto ao controle exercido por meio da arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) - prevista no parágrafo 1º do artigo 102 da Constituição Federal do Brasil e regulada pela Lei número 9.882/99 – tem-se como uma medida para “evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público” ou para analisar “controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição”.

A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), proposta pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), tem como objetivo o reconhecimento do estado de coisas inconstitucional do sistema penitenciário brasileiro, buscando determinar a adoção de diversas providências no sentido de sanar as lesões a preceitos fundamentais que decorrem de condutas comissivas e omissivas do poder público no tratamento da questão prisional no país. O julgamento da ação encontra-se suspenso após o deferimento parcial do pedido cautelar ADPF 347 MC/DF ACÓRDÃO[20], sendo:

I – proibição do Poder Executivo de contingenciar os valores disponível no Fundo Penitenciário Nacional, determinando que a União libere este saldo acumulado para atender a sua finalidade;

II – realizar audiências de custódia para viabilizar o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária, num prazo de até 24 horas da prisão[21].

Tal decisão causou bastante preocupação doutrinária, haja vista aqueles mais conservadores ser contra e tachar como um grande caos da atuação do Poder Judiciário via STF, e que pode chegar a declarar a inconstitucionalidade da Constituição Federal vigente, e por falta de atuação dos Tribunais, o STF fecharia estes; poderia decretar a inconstitucionalidade do Congresso e fechá-lo[22].

Sobre o Estado de Coisas Inconstitucional, uns falam que é uma tese nova recepcionada pelo Supremo Tribunal Federal, outros dizem que é um ativismo camuflado ou um ativismo estrutural, bem como, também já foi apelidado de “uma nova onda de verão”[23].

Para o jurista Lenio Luiz Streck “o Estado de Coisas Inconstitucional é um ativismo camuflado, sendo o nome da tese tão abrangente que é difícil combatê-la”[24],e para o doutor Carlos Campos “é um ativismo estrutural, visando superar bloqueios políticos e institucionais”[25].

Vislumbra-se que todos são distintos, mas o Estado de Coisas Inconstitucional é uma espécie do gênero Ativismo Judicial, do qual o Poder Judiciário (STF) passa através de uma decisão de sua lavra, a exigir um comportamento positivo, uma ação, do Executivo ou Legislativo, no condão de concretizar Direitos Fundamentais massivamente violados por omissões reiteradas destes poderes, e assim, evite-se abarrotamento do Judiciário com demandas individuais.

Numa situação de “estado inconstitucional das coisas” é preciso que cada um assuma a responsabilidade que lhe cabe. O que não é possível, segundo os ministros ao julgar a ADPF 347, é que a Lei de Execução Penal continue a ser desrespeitada sistematicamente e, com ela, os direitos dos presos[26].

Na época, determinou o STF que os tribunais de todo o país realizassem audiências de custódia para viabilizar o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária no “prazo máximo de 24 horas, contados do momento da prisão”.

A Corte, ao reconhecer o ECI caminha para a realização de algumas mudanças estruturais na tentativa de diminuir a crise do sistema. Porém, vale salientar que se não forem tomados os devidos cuidados, estará fadada ao fracasso, tal como a Corte Constitucional da Colômbia falhou anos atrás.

Nas ações do controle de constitucionalidade, os Ministros devem procurar a melhor solução para as pessoas e para o Estado, já que uma decisão proferida em última instância vincula todos os órgãos do Poder Público. Sendo, estas de efeito vinculante, devem prever o presente e o futuro próximo, para não prejudicar todo o sistema jurídico e social[27].

 

3.4.A Sociedade – displicente?

 

            Quando noticiado pela mídia televisiva, explorada de forma espetaculosa sobre a atual situação do sistema, expõe encarcerados restritos a condições deploráveis em meio a ratos, sem colchão, sem água, alimentos servidos no chão, matança interna, sem condições mínimas de higienização, caracterizando verdadeiras masmorras medievais extremamente lotadas, a sociedade, talvez induzida, sente-se momentaneamente vingada, sentimento intrínseco humano.

Decorre um questionamento desta resposta hamurabiana, estatizada, sobre a efetividade do objeto principal da pena. Positivamente, impor a Lei de Talião, qual o retorno utilitário para a sociedade? Essa desumanização proporcionada a quem deveria estar sendo tratado com dignidade como pessoa, visando a reintegração ao seio social de um ex-delinquente. Aparentemente, o sistema tratado como falido, uma falácia de interesse político, devolve um novo delinquente, já muito mais pernicioso, revoltado, abrigado pelas facções criminosas sob a égide do estado, que se aproveitam desta lacuna.

Sobretudo, promove uma verdadeira polarização, de um lado a sociedade fatidicamente acreditando estar sobre um pedestal protegido, promovido por uma política criminosa e de outro o marginal, segregado e merecedor deste estado de coisas inconstitucional obstinado a uma indelével ascensão cíclica criminosa. É fato.

O tratamento mais humano, previsto constitucionalmente, não demanda maiores investimentos financeiros e sim uma mudança ideológica dentro do sistema. A princípio a obediência constitucional da dignidade já traria resultados positivos, conforme ocorre em sistemas prisionais na Noruega[28] com baixos índices de reincidência, reabilitando 80% dos presos, com prioridade na ressocialização. Maior interesse público.

Os efeitos da Lei antidrogas triplicaram o número de encarcerados; o excesso de prisões provisórias e a morosidade no julgamento contribuem; uso do regime fechado mesmo quando há possibilidade de penas alternativas e o não cumprimento do papel de ressocializar agravam e superlotam o sistema. Elenca-se aqui quatro fatores de natureza política que se fossem tratados com responsabilidade, de imediato resolveria o problema da superlotação amenizando todos os demais discorridos neste.

 

Considerações finais

 

O enfoque tratado - sistema prisional brasileiro - caracterizado pelas omissões inconstitucionais, relacionada aos direitos e garantias fundamentais expressos na Constituição Federal, acordado pelo judiciário por meio de ADPF, relevando o Estado de Coisas Inconstitucional, traz a problemática de considerar a situação somente como um estado momentâneo e não um Estado avassalado.

É necessário interesse político, garantindo tratamento humano ao ressocializando. A CF não trata deste princípio como em outros países, porém a Lei de Execuções Penais em seu Art.1º prevê tal princípio. Com o poder de socializar do Estado, necessário se faz, cumprir o previsto constitucionalmente quando sob sua tutela promova meios para ressocializar no sentido normativo. Fornecer formação profissionalizante, permitir de fato o acesso ao estudo, oferecer opção de trabalho sem característica compulsória. Enfim, para futuramente reintegrar ao meio social um cidadão que cumpriu sua pena, foi tratado com dignidade e adquiriu capacitação psicológica e profissional ao seu regresso. Não um ex-encarcerado.

Contrariamente, custa muito mais à sociedade e ao estado não adotar esta política. Este estado inconstitucional gera essa necessidade crescente e viciosa de novos presídios para atender a demanda de infratores. Parece que o Estado erroneamente insiste em manter esta política. Configura-se numa situação gravíssima enraizada no cárcere nacional. Uma população carcerária em constante crescimento, necessitando urgente intervenção, não complexa, mas sim política. O equacionamento do ECI demanda muito empenho e integração dos poderes para atingir a garantia justa ao convencionado direitos humanos internacional. O Estado, no poder de tolher a liberdade de um agente, com a guarda, tem o dever constitucional avençado de respeitar a dignidade da pessoa humana. Essas omissões refletem diretamente no tecido social, ora o objetivo restrito de liberdade estar sendo ultrajado, devolvendo ao seio social um agente revoltado, habituado à torturas e situações desumanas em seu período recluso.

No tocante ao fato, o poder judiciário através do ativismo judicial, demonstra que essas omissões estão sendo vistas, principalmente através das audiências de custódia e contingenciamento do fundo penitenciário, ainda que mui morosamente. Foi dado um passo. Em tempos atuais, se faz necessário, primordialmente, que os três poderes em parcimônia entendam a necessidade de cooperação para dirimir e amenizar este conflito inconstitucional.

Na senda provisoriamente aqui desenhada, aquiescente de maiores pesquisas, delimitada ao âmbito carcerário, vislumbrado politicamente parece embevecida por uma fábula preventista denominada “ressocialização”, demanda maiores investigações em outros campos determinantes que corroboram com o transbordamento carcerário. Estudos britânicos, desde a década de 80, conjecturam no sentido de que a família constitui um fator de intimidação relevante contra a passagem ao ato criminoso. Tal assertiva conceitual axiológica em colidência com uma política criminal laxista demanda inesgotável investigação para dissertação futura.

 

Referências Bibliográficas

 

Sobre os autores
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Trabalho Integrado Interdisciplinar de Direito da Universidade Brasil.

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