Hoje, estudar a CF88 é alcançar seu "Objeto Negativo". Não se fala mais da eficácia constitucional – ou ineficácia –, mas sim da defesa da Constituição Federal de 1988. Desse modo percebemos a “importância constitucional” por meio do que se desfez na CF/88.
São muitos os objetivos centrais da Carta Política de 1988, mas listemos os básicos: a segurança institucional do Estado de Direito (divisão dos poderes), as garantias (os remédios jurídicos), os direitos fundamentais, as liberdades, a igualdade, a equidade, a isonomia e a isegoria (pluralismo político), a participação popular e democrática, a descentralização e a desconcentração do poder, a Justiça Social, a produção de um direito que inclua e não exclua negros, mulheres, pobres, deficientes, povos do campo e da floresta, comunidades LGBTs, indígenas, trabalhadores.
Portanto, hoje, é perfeitamente visível a “importância constitucional” se manifestar pelo Objeto Negativo da Carta Política. Isto é, notabilizamos a importância constitucional pelo que se perdeu e foi desfeito na CF/88. Passamos a valorizar o que deixamos de ter e o que tínhamos, após a perda.
Assim, a Carta Política – como “dever-ser”, como farol humanizador do “animal político” – é mais claramente perceptível pela negação do seu objeto (descentralização, desconcentração do poder), do que pela afirmação dos seus objetivos: conteúdo revelador do direito democrático. Por isso, sob a análise crítica – nos 30 anos de sua existência – não se trata tanto da (in)eficácia, quanto mais observarmos a necessária autoconservação constitucional.
O Objeto Negativo da CF/88 (sua anulação fática) é mais visível do que a luta política por sua afirmação: retroagimos, da luta pela eficácia – tornar-se a CF/88 um fenômeno cotidiano –, à luta por autoconservação da própria Carta Política. Hoje, a primeira ordem é pela defesa e autoconservação da CF/88; assegurando-nos disso, retomemos a sua promoção.
O que ainda restou, se é que ainda podemos dizer assim, é o fato de que a eficácia decorre da importância constitucional e esta, por sua vez, deriva do desejo à Constituição; parafraseando Häberle.
Quanto mais vemos o que se desfez ou se ameaça desfazer, sobretudo em direitos fundamentais, melhor entendemos que a Constituição Programática, por óbvio, é um vir-a-ser carregado juridicamente de um dever-ser coletivo. Com evidentes obrigações de fazer.
Por isso, é basilar entender que:
1. A Constituição Programática não pode ser julgada pelo que deixou de fazer, como fez a crítica popular dos anos 1990 (ajustada naquele momento), e sim pelo que produz de "desejo constitucional".
2. A maior contribuição da CF88 foi sinalizar como um farol a "importância constitucional" – no contexto democrático.
3. Se avaliarmos somente pela crítica do que não se realizou (ineficácia), reproduziremos exatamente o discurso dos que pregam o desfazimento da CF88 por não ser "objetiva".
4. É urgente entender a diferença entre Programática e pragmática.
5. As violações da Constituição são a contraprova de que mesmo setores progressistas repetem discursos e ações pragmáticas dos violadores.
6. Retroagimos tanto que vemos a CF88 transitar pelo retrovisor, na contramão e em marcha a ré.
7. A principal luta política pelo direito não é, por absurdo que pareça, por mais eficácia. É pela autoconservação.
8. Não estamos no plano da legitimação constitucional, do desejo constitucional, mas sim da sobrevivência do direito, da Política, da sociabilidade.
9. É urgente fomentar o raciocínio constitucional (teleológico) de que, para funcionar, a CF88 (nomologicamente) precisa existir. Não há força de lei se a CF/88 perambula como insepulta.
10. Não estamos no Estado Democrático de direito (+ eficácia), mas sim no cesarismo regressivo, repressivo, repulsivo (de Gramsci).
11. Como pode haver "força normativa (vinculada) da Constituição" se ela desmancha no ar em cada golpe constitucional?
12. O buraco constitucional é mais em baixo.
Em decorrência, por Objeto Negativo entende-se o mais pelo menos, o claro pelo escuro, o longe pelo retrocesso, o direito por sua negação, o valor das coisas e das pessoas quando as perdemos.
Cabe dizer que se optou pelo caminho do desvio constitucional e seus subterfúgios, e fomos do positivo ao negativo: o querer pelo perder, o desejo pela frustração, o "objetivo" pelo indesejado, a regra pela exceção, o fundamental pela fumaça: a fumaça do bom direito é vista “através” da violência contra o Estado de Direito.
Entenderemos a Constituição pela negação da Constituição, a Carta Política pelo esfarelamento da Constituição sem papel, o positivo pelo negativo, a inclusão (inacabada) pela exclusão do que não se completou, a condição insatisfatória da realização constitucional pela retração da utopia, o "querer-ser" pela distopia, o "seria assim" pelo mais simples não-ser.
Quem dera pudéssemos discutir a "reserva do possível" (ineficácia), mas não podemos, porque não nos é possível reservar o direito de não entender as gigantescas diferenças entre 1992 e 2016-19.
A realidade é que tomamos o objetivo positivo pela desídia, a crença pela descrença, o alto nível da CF88 pelo baixíssimo nível da política, a Política pela política. Nessa esteira caminha a promessa constitucional pela mentira política, a perspectiva pela miopia, a noção/construção pelo non sense, o bom senso pelo sem-noção.
A Constituição precisa hoje de uma Filosofia Constitucional Positiva (salvaguardas de existência) e não, precisamente, propositiva: “tal conselho, comitê precisa definir metas para uma política pública”. Afinal, é o próprio comitê que não mais existe, assim como desde 2016 é a CF88 que está respirando com ajuda de aparelhos.
Por fim, indicar/analisar os objetivos da Carta Política (quase) equivale a constatar a inexistência (ineficácia total) do objeto: a própria CF/88. Afinal, entenderemos o avanço constitucional pelo retrocesso, contrapé, golpe. Entenderemos o desenho constitucional pela deformação imposta, a mutação pela transmutação, a conquista pela perda, o alvorecer pelas trevas. É preciso conhecer a CF/88 para então re-conhecer; é preciso acreditar, para dar crédito. É preciso existir (a CF/88) para fluir: eficácia. Na inexistência, por óbvio, tudo é ineficaz.
Vinício Carrilho Martinez (Dr.)
Professor Associado da Universidade Federal de São Carlos – PPGCTS/DEd