OBJETO DA CARTA POLÍTICA DE 1988

A Constituição não é mais o que era e muito menos o que deveria ser

29/03/2019 às 04:51
Leia nesta página:

Retroagimos tanto que vemos a CF88 transitar pelo retrovisor, na contramão e em marcha a ré.

Hoje, estudar a CF88 é alcançar seu "Objeto Negativo". Não se fala mais da eficácia constitucional – ou ineficácia –, mas sim da defesa da Constituição Federal de 1988. Desse modo percebemos a “importância constitucional” por meio do que se desfez na CF/88.
São muitos os objetivos centrais da Carta Política de 1988, mas listemos os básicos: a segurança institucional do Estado de Direito (divisão dos poderes), as garantias (os remédios jurídicos), os direitos fundamentais, as liberdades, a igualdade, a equidade, a isonomia e a isegoria (pluralismo político), a participação popular e democrática, a descentralização e a desconcentração do poder, a Justiça Social, a produção de um direito que inclua e não exclua negros, mulheres, pobres, deficientes, povos do campo e da floresta, comunidades LGBTs, indígenas, trabalhadores.
Portanto, hoje, é perfeitamente visível a “importância constitucional” se manifestar pelo Objeto Negativo da Carta Política. Isto é, notabilizamos a importância constitucional pelo que se perdeu e foi desfeito na CF/88. Passamos a valorizar o que deixamos de ter e o que tínhamos, após a perda.
Assim, a Carta Política – como “dever-ser”, como farol humanizador do “animal político” – é mais claramente perceptível pela negação do seu objeto (descentralização, desconcentração do poder), do que pela afirmação dos seus objetivos: conteúdo revelador do direito democrático. Por isso, sob a análise crítica – nos 30 anos de sua existência – não se trata tanto da (in)eficácia, quanto mais observarmos a necessária autoconservação constitucional.
O Objeto Negativo da CF/88 (sua anulação fática) é mais visível do que a luta política por sua afirmação: retroagimos, da luta pela eficácia – tornar-se a CF/88 um fenômeno cotidiano –, à luta por autoconservação da própria Carta Política. Hoje, a primeira ordem é pela defesa e autoconservação da CF/88; assegurando-nos disso, retomemos a sua promoção.
O que ainda restou, se é que ainda podemos dizer assim, é o fato de que a eficácia decorre da importância constitucional e esta, por sua vez, deriva do desejo à Constituição; parafraseando Häberle.
Quanto mais vemos o que se desfez ou se ameaça desfazer, sobretudo em direitos fundamentais, melhor entendemos que a Constituição Programática, por óbvio, é um vir-a-ser carregado juridicamente de um dever-ser coletivo. Com evidentes obrigações de fazer.
Por isso, é basilar entender que:
1. A Constituição Programática não pode ser julgada pelo que deixou de fazer, como fez a crítica popular dos anos 1990 (ajustada naquele momento), e sim pelo que produz de "desejo constitucional".
2. A maior contribuição da CF88 foi sinalizar como um farol a "importância constitucional" – no contexto democrático.
3. Se avaliarmos somente pela crítica do que não se realizou (ineficácia), reproduziremos exatamente o discurso dos que pregam o desfazimento da CF88 por não ser "objetiva".
4. É urgente entender a diferença entre Programática e pragmática.
5. As violações da Constituição são a contraprova de que mesmo setores progressistas repetem discursos e ações pragmáticas dos violadores.
6. Retroagimos tanto que vemos a CF88 transitar pelo retrovisor, na contramão e em marcha a ré.
7. A principal luta política pelo direito não é, por absurdo que pareça, por mais eficácia. É pela autoconservação.
8. Não estamos no plano da legitimação constitucional, do desejo constitucional, mas sim da sobrevivência do direito, da Política, da sociabilidade.
9. É urgente fomentar o raciocínio constitucional (teleológico) de que, para funcionar, a CF88 (nomologicamente) precisa existir. Não há força de lei se a CF/88 perambula como insepulta.
10. Não estamos no Estado Democrático de direito (+ eficácia), mas sim no cesarismo regressivo, repressivo, repulsivo (de Gramsci).
11. Como pode haver "força normativa (vinculada) da Constituição" se ela desmancha no ar em cada golpe constitucional?
12. O buraco constitucional é mais em baixo.
Em decorrência, por Objeto Negativo entende-se o mais pelo menos, o claro pelo escuro, o longe pelo retrocesso, o direito por sua negação, o valor das coisas e das pessoas quando as perdemos.
Cabe dizer que se optou pelo caminho do desvio constitucional e seus subterfúgios, e fomos do positivo ao negativo: o querer pelo perder, o desejo pela frustração, o "objetivo" pelo indesejado, a regra pela exceção, o fundamental pela fumaça: a fumaça do bom direito é vista “através” da violência contra o Estado de Direito.
Entenderemos a Constituição pela negação da Constituição, a Carta Política pelo esfarelamento da Constituição sem papel, o positivo pelo negativo, a inclusão (inacabada) pela exclusão do que não se completou, a condição insatisfatória da realização constitucional pela retração da utopia, o "querer-ser" pela distopia, o "seria assim" pelo mais simples não-ser.
Quem dera pudéssemos discutir a "reserva do possível" (ineficácia), mas não podemos, porque não nos é possível reservar o direito de não entender as gigantescas diferenças entre 1992 e 2016-19.
A realidade é que tomamos o objetivo positivo pela desídia, a crença pela descrença, o alto nível da CF88 pelo baixíssimo nível da política, a Política pela política. Nessa esteira caminha a promessa constitucional pela mentira política, a perspectiva pela miopia, a noção/construção pelo non sense, o bom senso pelo sem-noção.
A Constituição precisa hoje de uma Filosofia Constitucional Positiva (salvaguardas de existência) e não, precisamente, propositiva: “tal conselho, comitê precisa definir metas para uma política pública”. Afinal, é o próprio comitê que não mais existe, assim como desde 2016 é a CF88 que está respirando com ajuda de aparelhos.
Por fim, indicar/analisar os objetivos da Carta Política (quase) equivale a constatar a inexistência (ineficácia total) do objeto: a própria CF/88. Afinal, entenderemos o avanço constitucional pelo retrocesso, contrapé, golpe. Entenderemos o desenho constitucional pela deformação imposta, a mutação pela transmutação, a conquista pela perda, o alvorecer pelas trevas. É preciso conhecer a CF/88 para então re-conhecer; é preciso acreditar, para dar crédito. É preciso existir (a CF/88) para fluir: eficácia. Na inexistência, por óbvio, tudo é ineficaz.
Vinício Carrilho Martinez (Dr.)
Professor Associado da Universidade Federal de São Carlos – PPGCTS/DEd

 

Sobre o autor
Vinício Carrilho Martinez

Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos