Crimes contra os Costumes

03/04/2019 às 15:30
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Os costumes sempre se modificam ao longo da vida. E, ao mesmo tempo que a sociedade muda, o Direito muda. Este trabalho é uma demonstração da modificação dos costumes no âmbito do Direito Penal.

Os costumes estão sempre se modificando. Isso é uma certeza. Não dá para comparar o costume do início do século XX com o de agora, início do século XXI – da mesma forma que os costumes serão outros completamente diferentes no começo do século XXII. E os costumes influenciam o Direito, principalmente o Direito Penal, que também se modifica à medida que os costumes vão se modificando.

Nos  últimos cem anos, o Direito se modificou enormemente, com o intuito principal de se acompanhar os costumes, que foram evoluindo junto à sociedade, o que nos leva hoje a se surpreender com as legislações vigentes no final do século XIX e início do século XX, a qual daremos uma pequena pincelada nesse texto, a título de curiosidade – tendo como enfoque principal o Direito Penal, sobretudo os crimes sexuais.

O Código Civil de 1916 trazia uma imensa diferenciação entre os homens e as mulheres. Os homens eram, por exemplo, expressamente determinados como chefes da casa (art. 233), competindo-lhe atribuições diferentes da mulher – como autorizar a mulher para trabalhar e o direito de fixar a residência do casal. Este fato se dá porque a mulher casada era considerada relativamente incapaz (art. 6º, II), junto aos indígenas, os pródigos e os maiores de 16 e menores de 21 – na época, os deficientes mentais eram absolutamente incapazes (art. 5º, II). Ainda, caso a mulher fosse deflorada antes do casamento e o marido não sabia de tal situação, ele tinha o prazo de 10 (dez) dias a contar do casamento para anular o mesmo – sendo que somente este tinha tal direito, não podendo a mulher anulá-lo em caso de o marido não ser virgem também (art. 178, § 1º c/c art. 219, IV). Tal situação perdurou até a Lei 4.121/62, que modificou as condições da mulher casada.

Mas o que mais mudou, sem sombra de dúvida, foi o Direito Penal. No Código Criminal de 1890, era crime realizar atos de capoeira (art. 402, com pena de 2 a 6 meses de prisão) e ser vadio – a qual a pessoa era condenada a cumprir pena de 15 a 30 dias e assinar termo de ocupação lícita em 15 dias, sob pena de novo crime com penas que variavam entre 1 e 3 anos.

Já no tocante aos crimes sexuais, cerne deste trabalho, era crime, com penas de 1 a 4 anos de prisão, deflorar (ou seja, retirar a virgindade) de mulher menor de idade, utilizando para tanto de sedução, engano ou fraude (art. 267) – e era efeito da sentença dotar a ofendida (art. 276, caput), não havendo imposição de pena se o casamento com este se seguir com a permissão do representante legal da ofendida ou desta, se maior de idade (Parágrafo Único). Da mesma forma, estuprar mulher honesta (art. 268) dava pena maior que estuprar mulher “da vida” (6 meses a 2 anos, contra os 1 a 6 anos originais), e ainda se poderia utilizar da regra do art. 276, já mencionado.

Em 1940, durante o Estado Novo, Getúlio Vargas outorgou uma nova legislação penal (Código Penal de 1940; Decreto-Lei 2.848), que modificou os crimes para os costumes daquela época. Os crimes sexuais passavam a ser crimes contra os costumes – e não mais crimes contra a honra e segurança das famílias; e ainda não sendo os crimes contra a liberdade sexual da vítima de hoje. Passava a ser crime, com penas que variavam entre 1 e 3 anos de prisão, ter relação sexual com a mulher, utilizando-se para tanto de fraude – mas só seria punido se a mulher fosse honesta, excluindo-se por completo da proteção penal as mulheres “da vida” (art. 215).

A mulher virgem também tinha uma imensa proteção penal no novo Código. Era crime, com penas de 2 a 4 anos de prisão, seduzir mulher virgem com idade entre 14 e 18 anos, utilizando-se de sua confiança ou inexperiência – com propostas de amor eterno ou casamento, por exemplo – para manter relação sexual com esta. Ou seja, era crime de sedução (art. 217) conhecer uma moça virgem, de idade entre 14 e 18 anos, fazer juras de amor e proposta de casamento iminente, retirar a virgindade desta e depois sumir no mundo, não cumprindo o prometido. Era uma segurança penal para a moça e a família, já que a mulher deflorada poderia não vir nunca a se casar.

Havia também o crime de rapto (art. 219 e ss.), que consistia em raptar mulher honesta, utilizando-se de fraude, violência ou grave ameaça e for com fim libidinoso e dava pena também de 2 a 4 anos. E, caso a vítima fosse maior de 14 anos e menor de 21, e o rapto dava com o seu consentimento – por exemplo, para fugir com o amor de sua vida -, ainda sim seria crime, com penas que variavam entre 1 e 3 anos de prisão. O crime aqui não era contra a mulher, e sim contra a honra de sua família. Por isso o consentimento da moça era insuficiente para fazer como fato atípico a conduta do agente.

As penas dos crimes contra os costumes aumentavam em um quarto da pena original se o agente fosse casado (art. 226, III), haja vista que, para a sociedade, era mais ultrajante um homem casado atacar os costumes do que um solteiro. E, caso a vítima se casasse com o agente que cometeu o crime, o último não deveria cumprir a pena; ou, se a vítima foi alvo de crime contra o costume sem violência ou grave ameaça e se case com terceira pessoa, deveria requerer o prosseguimento da ação penal ou do inquérito policial no prazo de 60 (sessenta) dias a contar a celebração do casamento, sob pena de extinção da punibilidade (art. 107, VII e VII). O legislador entendia que a mulher atingiu os fins “de sua vida” – o casamento. Deve-se salientar que tais possibilidades de extinção da punibilidade sobreviveram à reforma da Parte Geral do Código Penal, ocorrida pela Lei 7.209, em 1984, só sendo revogado pela Lei 11.101, em 2005, junto dos crimes de sedução, casamento e o aumento de pena existente para o homem casado.

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Ainda no tocante aos crimes contra os costumes, podemos destacar o famigerado art. 229 do Código Penal que, até a última reforma dos crimes contra os costumes (que, inclusive, modificou para crimes contra a dignidade sexual) - trazida pela Lei 12.015/09 - era crime, com penas de 2 a 5 anos de prisão, manter lugar destinado a encontros para fim libidinoso, como os motéis, por exemplo – ainda que estes, teoricamente, sirvam para pernoites. Era crime, portanto, até o ano de 2009, possuir motéis.

Por fim, ainda existem algumas condutas sexuais que sobreviveram no tempo, ainda que completamente fora da realidade dos costumes existentes na atualidade.  O Código Penal possui como crime, apenado de 1 a 3 anos, induzir alguém a satisfazer a lascívia de outrem (art. 227). Ou seja, se eu, por exemplo, conhecer uma pessoa que se encontra desesperadamente para conhecer alguém apenas para satisfazer sua vontade sexual, que há muito ele satisfaz sozinho e pedir para uma outra pessoa satisfazer a vontade da primeira, cometo o crime do art. 227 do Código Penal, que ainda se encontra vigente. Podemos ainda destacar o art. 229 do Código Penal, que ainda vige – ainda que sem a proibição dos motéis – e proíbe, com as mesmas penas, locais em que ocorra a exploração sexual, embora sabemos perfeitamente que os bordéis são permitidos e tolerados em todo o país. É comum, inclusive, que os pais levem seus filhos adolescentes aos bordéis – os famosos “puteiros” – para estes perderem a virginidade, em completo contrassenso com a ideia do crime de ser um ato repugnante e desprezado pela sociedade – como o homicídio e o estupro.

Finalizando, podemos destacar o também famigerado art. 234 do Código Penal, que prevê pena de 6 meses a 2 anos, para aquele que faz, importa, exporta,  adquire ou tem distribuição ou exposição pública, escrito, desenho, pintura, estampa ou qualquer objeto osceno, para fins comerciais. É proibido pela legislação brasileira – ainda vigente – vendas de revistas masculinas como “Playboy” ou “Sexy”, sexshop, relação sexual na televisão ou no teatro, etc. Tal dispositivo era importante e vigente na década de 40, quando o pudor e a moral eram imensas. Atualmente, com a quebra do tabu com o sexo e a internet – que permitem aos que navegam acesso a uma carga incomensurável de vídeos, fotos, pinturas pornográficas -, este tipo penal caiu por terra, soando até engraçado informar que tal dispositivo ainda segue vigendo – na teoria, claro.

Conforme demonstramos anteriormente, os costumes – principalmente no tocante ao sexo – mudou imensamente nos últimos anos, modificando junto o Direito Penal. Se os tipos penais fossem como hoje há 100 anos, colocariam todos que lá vigiam de cabelo em pé, escandalizados e ofendidos. Da mesma forma, se os tipos penais existentes naquela época hoje estivessem vigentes, faríamos todos nós rimos e debocharmos – e sabíamos que grande parte das legislações cairiam por terra pelo Judiciário brasileiro, até que fossem revogados pelo Legislativo, como de fato foram. E, temos certeza, que daqui a 100, 200 anos, os costumes serão completamente diferentes, fazendo com que condutas hoje proibidas ou liberadas sejam descriminalizadas ou criminalizadas com maior ou menor rigor. A sociedade muda, os costumes mudam e o Direito Penal, acompanhando  a ambos, muda também. E assim seguimos...

Sobre o autor
Rodrigo Picon

Formado em Direito pelo Instituto Tancredo de Almeida Neves e pós-graduado em Direito Penal Econômico Aplicado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), Rodrigo Picon é advogado, regularmente inscrito pela Ordem dos Advogados do Brasil de Minas Gerais, escritor e contista. Atua nas áreas criminal, empresarial, penal econômica, tributária, difusos e coletivos e de adequação à Lei Geral de Proteção de Dados. É autor dos livros "Direitos Difusos e Coletivos" e "Código Penal Comentado".

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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