1. Das infinitas questões que se disputam perante a barra da Justiça Criminal, poucas apresentam mais dificuldade que a tentativa de extorsão: art. 158. do Código Penal1.
Contra expressiva corrente doutrinária, admitem-na autores de boa nota, considerando tal crime de natureza material, isto é, não se aperfeiçoa sem a efetiva lesão do bem jurídico.
Os que a não reconhecem, porém, esses alegam que a tentativa é incompatível com a extorsão, delito formal, ou de consumação antecipada.
Valem-se também da letra da Súmula nº 96 do Colendo Superior Tribunal de Justiça, que reza: “O crime de extorsão consuma-se independentemente da obtenção da vantagem indevida”.
Mas, afirmar de modo absoluto que repugna à extorsão a figura do “conatus” não é senão afastar-se da verdadeira exegese do texto legal e aplicá-lo em franco desacordo com os preceitos da Justiça, a qual manda evitar sempre a imoderação no castigo: “Interpretatio aequior, et benignior, summenda est”. É de preferir a interpretação mais equitativa e mais benigna.
2. A interpretação que atende à hipótese da tentativa no crime de extorsão é a que, a nosso aviso, leva primazia entre os penalistas.
Nélson Hungria, o Pontífice Máximo do Direito Penal pátrio, escreveu, com efeito, em sua monumental obra:
“Apesar de se tratar de crime formal, a extorsão admite tentativa, pois não se perfaz unico actu, apresentando-se um iter a ser percorrido. Assim, toda vez que deixa de ocorrer a pretendida ação, tolerância ou omissão da vítima, não obstante a idoneidade do meio de coação, ou, no caso de extorsão mediante sequestro, deixa este, já em execução, de se ultimar (por circunstância alheia à vontade do agente), não se pode reconhecer senão a tentativa” (Comentários ao Código Penal, 1980, vol. VII, p. 77).
E logo abaixo:
“Há que se identificar a tentativa punível ainda no caso, não muito infrequente, em que a vítima, vencendo o temor incutido, comunica a ameaça à polícia, e esta predispõe as coisas de modo a surpreender o extorsionário no ato de se apoderar da coisa fingidamente consignada ou quando se apresenta no lugar indicado para recebê-la” (ibidem).
Doutrina é esta em que conspiram graves autores:
“Ocorre (tentativa de extorsão) quando o sujeito passivo, não obstante constrangido pelo autor por intermédio da violência física ou moral, não realiza a conduta positiva ou negativa pretendida, por circunstâncias alheias à vontade do autor” (Damásio E. de Jesus, Código Penal Anotado, 18a. ed., p. 610).
Pelo mesmo teor, o insigne Heleno Cláudio Fragoso:
“Não se exige, para a consumação, que o agente tenha conseguido o proveito que pretendia. O crime se consuma com resultado do constrangimento, isto é, com a ação ou omissão que a vítima é constrangida a fazer, omitir ou tolerar que se faça e por isso pode-se dizer que, em relação ao patrimônio, este é crime de perigo” (Lições de Direito Penal, Parte Especial, 11a. ed., vol. I, p. 217).
Ainda:
“Como no constrangimento ilegal, a tentativa é aqui perfeitamente admissível, configurando-se quando, apesar do emprego de meio idôneo, não consegue o agente que a vítima faça, tolere que se faça ou deixe de fazer alguma coisa” (ibidem).
Afigura-se esta interpretação mais conforme ao direito e à razão. Na real verdade, como quer que “interpretar, no sentido jurídico, é procurar o pensamento contido na lei, a significação das palavras, o alcance do texto, a explicação da frase. Interpretar é descobrir a vontade da lei” (Vicente de Azevedo, Apostilas de Direito Judiciário Penal, 1952, vol. I, p. 56), não entra em dúvida que a todas se avantaja a interpretação que deu ao texto legal seu próprio autor: Nélson Hungria, que não somente foi o principal colaborador e artífice do Código Penal de 1940, mas também seu exegeta supremo.
Na lição desses conspícuos autores é que nossas Cortes de Justiça têm assentado sua jurisprudência:
“O crime de extorsão comporta a figura da tentativa, em consonância com a doutrina, visto que a ação delituosa foi tempestivamente atalhada em sua execução, de maneira a permanecer a conduta incriminada aquém da meta optata”
(Rev. Tribs., vol. 623, p. 313; rel. Emeric Levai);
“O enquadramento da extorsão entre os crimes formais não impede que se reconheça a possibilidade da tentativa. A extorsão é delito plurissubsistente, isto é, que se preenche com a realização de vários atos. Destarte, a atividade criminosa é perfeitamente cindível: tem um iter criminis e, portanto, pode sofrer interrupção”
(Rev. Tribs., vol. 572, p. 356; rel. Silva Franco);
“Embora seja crime formal, a extorsão admite a tentativa, porque não se perfaz com um só ato: exige um iter criminis que o agente deve percorrer. Ocorre a tentativa quando não se verifique qualquer dos efeitos imediatos à coação (fazer, tolerar ou deixar a vítima que se faça alguma coisa que resulte ou possa resultar em prejuízo seu ou de outrem)”
(Rev. Tribs., vol. 555, p. 374; rel. Dirceu de Mello; apud Alberto Silva Franco et alii, Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial, 6a. ed., vol. I, t. II, pp. 2.574-2.575);
“Se a vítima da ameaça suportou um estado de constrangimento, não entregando o dinheiro exigido pelo réu por convocado o concurso da polícia, tem-se caracterizado o crime de extorsão na forma tentada, eis que o agente só não conseguiu seu desiderato por circunstâncias alheias à sua vontade”
(Rev. Tribs., vol. 799, p. 602; rel. Ricardo Dip).
A não ser assim, a figura penal da extorsão (art. 158) não representaria mais que supérflua reduplicação do crime de constrangimento ilegal (art. 146).
3. Pela suma autoridade que lhe reconhecem os cultores da Ciência de Carrara, quer-se transcrita aqui a perspícua e definitiva lição que, acerca do ponto, ministrou Damásio E. de Jesus:
“Para nós, consuma-se a extorsão com a conduta da vítima.
Diz-se o crime consumado quando nele se reúnem todos os elementos de sua definição legal (CP, art. 14, I). A consumação exige que, presente o elemento subjetivo, o sujeito concretize todos os elementos objetivos do tipo, havendo perfeita adequação entre o fato concreto e o modelo legal. O iter criminis da extorsão apresenta os seguintes elementos, que consubstanciam três momentos típicos relevantes: 1
º) conduta de constranger o sujeito passivo mediante violência ou grave ameaça; 2º) comportamento da vítima, fazendo, tolerando que se faça ou deixando de fazer alguma coisa; 3º) intuito de obtenção da indevida vantagem econômica.A obtenção da vantagem indevida é dispensável, uma vez que se encontra no âmbito da intenção do agente (com o intuito de). Por isso o crime se diz formal ou de consumação antecipada. Os outros elementos, entretanto, de ordem objetiva, referentes ao comportamento do sujeito ativo e à conduta da vítima, são imprescindíveis à consumação. Se o agente, com o elemento subjetivo próprio, constrange o sujeito passivo mediante violência física ou grave ameaça, e este porém não atende à coação, não se pode afirmar, para fins de consumação, que no crime se reúnem todos os elementos de sua definição legal. Está faltando a elementar alternativa fazer, tolerar que se faça ou deixar de fazer alguma coisa.
O crime formal antecipa a consumação ao momento típico imediatamente anterior à produção do resultado visado pelo agente. Considerando os três momentos típicos da extorsão, consuma-se quando da concretização do segundo, i.e., com a conduta da vítima.
A adotar-se a tese de que a extorsão atinge a consumação com o simples constrangimento, ter-se-á de aceitar a consequência lógica de aplicá-la aos crimes que apresentam a mesma construção típica. Em outros termos, consumar-se-iam com o ato executório do sujeito ativo todos os crimes em que a conduta do agente é seguida de comportamento coativo da vítima. Assim, consumar-se-ia o constrangimento ilegal com a violência ou grave ameaça (CP, art. 146). E como o constrangimento ilegal é um crime subsidiário, o princípio incidiria sobre todos os delitos em que ele constitui meio de execução. Em face disso, v.g., o atentado violento ao pudor, na hipótese de o constrangimento visar a que a vítima pratique ato libidinoso, atingiria o momento consumativo com a simples violência ou grave ameaça” (Novíssimas Questões Criminais, 2a. ed., pp. 21-22).
Enfim, a asserção de que a extorsão não conhece tentativa (porque delito formal ou de consumação antecipada) não consta da lei; tampouco o professam os mais reputados mestres de Direito Penal, como Damásio E. de Jesus, Heleno Cláudio Fragoso e aquele “che sovra gli altri com’aquila vola” 2: Nélson Hungria.
Notas
1 Art. 158. do Código Penal:
“Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, e com o intuito de obter para si ou para outrem indevida vantagem econômica, a fazer, tolerar que se faça ou deixar de fazer alguma coisa:
Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 10 (dez) anos, e multa.
2 Dante, Inferno, IV, 96.