A competência da Justiça Militar e a Lei 13.491/17

10/04/2019 às 23:54
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A Lei 13.491/17 modificou o Código Penal Militar, alterando a competência para julgamento de crimes militares por parte da Justiça Militar. Entretanto, criou-se a dúvida se tal modificação fere a Constituição Federal, tema abordado pelo presente trabalho.

O Código Penal Militar foi outorgado pela Junta Militar de 1969, através de um Decreto-Lei que recebeu o número de 1.001, em 21 de outubro daquele ano. O presente Código Penal Militar traz o regramento material da legislação penal em se tratando de militares. O seu artigo 9º determina quem poderá ser julgado por crime militar, quando em tempo de paz. Segundo a referida lei, será considerado crime militar quando:

“I - definidos de modo diverso na lei penal comum ou não previsto nela, qualquer que seja o agente;

II – previstos na lei penal comum e na militar, praticados por: a) militar em situação de atividade ou assemelhado, contra militar na mesma situação ou assemelhado; b) militar em situação de atividade ou assemelhado, em lugar sujeito à administração militar, contra militar; c) militar em serviço ou atuando em razão da função, ainda que fora do lugar sujeito à administração militar, contra militar da reserva, reformado ou civil; d) militar durante o período de manobras ou exercício, contra militar da reserva, reformado, assemelhado ou civil; e) por militar em situação de atividade ou assemelhado, contra o patrimônio sob administração militar ou a ordem administrativa militar;

III – os crimes praticados por militares da reserva, reformado ou civil, contra instituições militares, patrimônio sob administração militar, contra a ordem administrativa militar, em lugar sujeito à administração militar contra militar em situação de atividade ou assemelhado, ou contra funcionário de Ministério militar ou da Justiça militar, no exercício de função inerente ao seu cargo, contra militar em formatura, de prontidão, vigilância, observação, exploração, exercício, acampamento, acantonamento ou manobras, ou ainda fora do lugar sujeito à administração militar, contra militar em função de natureza militar ou no desempenho de serviço de vigilância, garantia e preservação da ordem pública, administrativa ou judiciária”.

            O Parágrafo Único do artigo 9º determinava que os crimes militares dolosos contra a vida, praticados por militares contra civis, seriam de competência do Tribunal do Júri, na forma preceituada pelo Código de Processo Penal e a legislação comum. No ano de 2017, tal regra foi parcialmente modificada. A Lei 13.491/17 transformou o então Parágrafo Único do artigo 9º em § 1º, acrescentando um segundo parágrafo, com exceções à regra geral contida no novo § 1º. Segundo a lei de 2017, excetuar-se-á à regra geral – sendo julgado pela Justiça Militar da União - quando o crime for praticado por militares das Forças Armadas contra civil, se praticados no contexto de cumprimento de atribuições estabelecidas pelo Presidente da República ou Ministro de Estado da Defesa; de ação que envolva a segurança de instituição militar ou de missão militar, mesmo que não beligerante ou de atividade de natureza militar, de operação de paz, de garantia da lei e da ordem ou de atribuição subsidiária, realizadas na forma do artigo 142 da Constituição Federal e das Leis 7.565/86, Lei Complementar 97/99, Decreto-Lei 1.002/69 e Lei 4.737/65.

            Dessa forma, o militar das Forças Armadas (Marinha, Aeronáutica e Exército; artigo 142, caput da CF/88) que praticar crime doloso contra a vida contra civil nos contextos supramencionados deixa de ser julgado pelo Tribunal do Júri – Justiça Comum, com soberania popular – e passa a ser julgado pela Justiça Militar da União – Justiça Especializada, composta praticamente por militares.

            Contudo, o Tribunal do Júri possui competência descrita constitucionalmente, cujo inciso XXXVIII do artigo 5º da Carta Magna determina a criação e reconhecimento do júri, sendo-lhe assegurado a competência para julgamento dos crimes dolosos contra a vida (alínea d). O Tribunal do Júri tem sua competência estabelecida constitucionalmente, enquanto que a Lei 13.491/17 possui status infraconstitucional. Uma lei infraconstitucional não pode jamais ser contrária à ordem constitucional, sob pena de ferir a obediência hierárquica entre leis.

Ademais, o Tribunal do Júri foi consolidado pela Carta Magna de 1988 como direito fundamental da pessoa humana, haja vista sua existência estar descrito no rol do artigo 5º da Constituição Federal – que trata exatamente dos direitos e garantias fundamentais. E os direitos e garantias fundamentais são supradireitos, devendo todo o ordenamento jurídico respeitá-lo, a fim de garantir um dos pilares da República Federativa do Brasil, que é a dignidade da pessoa humana (inciso III do artigo 1º da Carta Magna).

Não pode, portanto, nenhuma norma desrespeitar um direito e garantia fundamental. O Supremo Tribunal Federal já entendeu que pode a competência do Tribunal do Júri ser mitigada por outra competência, por prerrogativa de foro, existente na própria Carta Magna. Contudo, o próprio órgão ministerial determinou a impossibilidade de norma infraconstitucional ou Constituições Estaduais firmarem competência diversa do Tribunal do Júri. Nesse sentido:

No que concerne à competência do Tribunal do Júri, para o processo e julgamento dos crimes dolosos contra a vida, tem o STF decidido que apenas podem ser excepcionadas, nos casos de foro especial por prerrogativa de função, as hipóteses previstas na própria CF/1988, quanto à competência para o processo e julgamento de crimes comuns em geral, consoante se depreende dos arts. 102, I, b e c; 105, I, a; 108, I, a. (...) o foro especial por prerrogativa de função, regulado em Constituição de Estado-membro, não afasta a norma especial e expressa da competência do Júri, ut art. 5º, XXXVIII, d, da CF/1988, ao conferir ao Tribunal do Júri a competência para o processo e julgamento dos crimes dolosos contra a vida.
[RHC 80.477, voto do rel. min. Néri da Silveira, 2ª T, j. 31-10-2000, DJ de 4-5-2001.]

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Habeas corpus. 2. Procurador do Estado da Paraíba condenado por crime doloso contra a vida. 3. A Constituição do Estado da Paraíba prevê, no art. 136, XII, foro especial por prerrogativa de função, dos procuradores do Estado, no Tribunal de Justiça, onde devem ser processados e julgados nos crimes comuns e de responsabilidade. 4. O art. 136, XII, da Constituição da Paraíba não pode prevalecer, em confronto com o art. 5º, XXXVIII, d, da CF/1988, porque somente regra expressa da Lei Magna da República, prevendo foro especial por prerrogativa de função, para autoridade estadual, nos crimes comuns e de responsabilidade, pode afastar a incidência do art. 5º, XXXVIII, d, da CF/1988, quanto à competência do Júri. 5. Em se tratando, portanto, de crimes dolosos contra a vida, os procuradores do Estado da Paraíba hão de ser processados e julgados pelo Júri.
[HC 78.168, rel. min. Néri da Silveira, P, j. 18-11-1998, DJ de 29-8-2003.]

           

Assim, não poderia norma infraconstitucional afastar a aplicabilidade de norma constitucional, principalmente por ser garantia e direito fundamental. Entendemos, portanto, que o novo § 2º do artigo 9º do Código Penal Militar possui vício de inconstitucionalmente material, não se devendo ser aplicada a competência da Justiça Militar da União em detrimento da competência constitucional do Tribunal do Júri. No Supremo Tribunal Federal, há atualmente duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI), de números 5.804 e 5.901, que discutem perante o Supremo Tribunal Federal a inconstitucionalidade do § 2º do artigo 9º do Decreto-Lei 1.001/69, a qual entendemos a necessidade de julgamento pela procedência do pedido.

Sobre o autor
Rodrigo Picon

Formado em Direito pelo Instituto Tancredo de Almeida Neves e pós-graduado em Direito Penal Econômico Aplicado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), Rodrigo Picon é advogado, regularmente inscrito pela Ordem dos Advogados do Brasil de Minas Gerais, escritor e contista. Atua nas áreas criminal, empresarial, penal econômica, tributária, difusos e coletivos e de adequação à Lei Geral de Proteção de Dados. É autor dos livros "Direitos Difusos e Coletivos" e "Código Penal Comentado".

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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