A responsabilidade civil por erro médico nas decisões do Poder Judiciário tem por base prioritária tratadistas do Direito Civil - Lei 10.406/2002 (Código Civil - CC) e da Lei 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor - CDC), aqui, sob o princípio da vulnerabilidade do consumidor, em que pese a mitigação pela responsabilidade objetiva do profissional, nas hipóteses de atividade meio (art. 14, §4º, CDC) – exceção, por força de jurisprudência, de casos considerados atividade fim, como por exemplo, a cirurgia estética e alguns casos da anestesiologia. Por outro lado, a culpa por erro médico nas decisões do CFM tem os contornos do conjunto de regras previstas no Código de Ética Médica: princípios fundamentais do exercício da Medicina, normas diceológicas (direitos), deontológicas (deveres e obrigações) e disposições gerais (normas estruturais).
Assim, por um lado, nas ações reparatórias de danos, a aferição da culpa, parte de um conjunto normativo orientado pela defesa do consumidor; por outro, nos processos éticos, de natureza administrativa, o texto base é um conjunto normativo que tem por fundamento, a regulamentação e a fiscalização do exercício profissional da Medicina.
O fato é o mesmo: suposto dano ao paciente por erro médico. Os caminhos para a aferição da culpa pelo mesmo fato partem de pressupostos diferentes. Considerando que os pontos de partida são diferentes, os caminhos percorridos para se alcançar o mesmo objetivo podem, eventualmente, levar a conclusões diferentes, ora por questões processuais, ora por questões objetivas. Não se cogita de crítica à independência de atuações da esfera judicial e administrativa, mas sim, ao senso comum de Justiça, que deve de igual forma atender a todos os interessados.
Devido ao sigilo que guardam os processos administrativos de natureza ética, a comunicação entre os atores dos Conselhos de Medicina e Poder Judiciário estão restritos a solicitações pontuais, que dificultam aos interessados plasmar o conceito de culpa e criar uma unicidade de interpretação para o mesmo caso ou casos semelhantes.
Além do sigilo, os prazos processuais e a independência relativa dos processos nas esferas administrativa, penal e civil são agravantes das dificuldades de intercâmbio de decisões e padronização de conceitos, gerando ainda maior gravame às partes interessadas na solução do caso concreto.
Quando o “erro médico”, gênero, é tratado na espécie “erro de diagnóstico”, a questão fica ainda mais complexa. Temos que a evolução da técnica diagnóstica com reflexos na responsabilidade médica é exponencial. Esse fato interfere significativamente na avaliação e julgamento da culpa do profissional, trazendo maiores divergências de conclusão.
Em “Obrigado pelo Atraso”, Thomas L. Friedman[1] afirma que o avanço tecnológico, em todas as esferas da ciência, está acontecendo de forma mais rápida do que nossa capacidade de absorção dos novos conhecimentos, gerando uma necessária reconfiguração dos padrões éticos:
“Existe efetivamente um descompasso entre a mudança no ritmo da mudança e nossa capacidade de desenvolver sistemas de aprendizagem, sistemas de treinamento, sistema de administração, redes de segurança social e regulamentação governamental que dariam aos cidadãos a capacidade de extrair o máximo dessas acelerações e amortecer seus impactos mais severos”
E continua mais adiante:
“Isso é atordoante para muitas pessoas, porque elas ouvem falar de avanços como uso de robôs em cirurgias, edição de genes, clonagem ou inteligência artificial - ,mas não têm a menor ideia de onde esses desdobramentos vão nos levar.”
No âmbito do CFM, talvez o exemplo mais eloquente dessa mudança que a tecnologia nos impõe aos padrões éticos vigentes seja a questão da regulamentação da teleorientação ou teleconsulta, com a recente suspensão da proposta de alteração do artigo 37, do CEM.
Retomando o foco da questão ao conceito de culpa no erro médico, o CFM, sensível à questão acautelou-se, já no ano de 2002 a esclarecer, no Manual de Orientação ao Anestesiologista, página 20, no tópico “Modalidades de Culpa”, a distinção entre “ERRO MÉDICO” e “ERRO PROFISSIONAL”, amparado nos ensinamentos do penalista Professor Júlio Fabrinni Mirabete, que adiante reproduzimos:
Em assim sendo, o ERRO MÉDICO é uma modalidade de crime culposo no qual o profissional causa um dano ao seu paciente.
Temos que distinguir o erro médico do ERRO PROFISSIONAL, sendo este de acordo com Mirabete: “O erro ocorre quando empregados os conhecimentos normais da Medicina, por exemplo, chega o médico à conclusão errada de diagnóstico, intervenção cirúrgica, etc. não sendo fato típico. Segundo a doutrina e a jurisprudência, só falta grosseira desses profissionais consubstancia a culpa penal, pois exigência maior provocaria paralisação da ciência impedindo os pesquisadores de tentarem novos métodos de cura,...”
Entendemos que os limites do conceito de culpa, no “erro de diagnóstico” devem ser relativizados em função de vários fatores, tais como: urgência na tomada de decisões; disponibilidade de recursos diagnósticos; compatibilidade da formação do profissional ao local da prestação de serviços; cooperação do paciente e de seus acompanhantes na anamnese; dinâmica de comunicação, incluindo gestão de prontuário, entre os operadores da saúde com o médico responsável. Aqui se deve considerar: enfermagem, diretoria clínica, diretoria técnica, hotelaria, logística administrativa, etc.
Em reflexo, ainda prematuro, com a valorização homem pelo conhecimento que detém em detrimento dos títulos e diplomas que possui, defendido por MARC HALÉVY em “A Era do Conhecimento”, estaríamos, por hipótese, diluindo a responsabilidade entre os atores em determinada situação, de tal forma que a omissão em relação ao simples achado de um papel de balas pela hotelaria hospitalar no leito de um paciente diabético poderá interferir no resultado da atribuição de culpa por erro diagnóstico do médico responsável.
Independentemente das especulações sobre os avanços filosóficos da cultura atual quanto à distribuição de valores e responsabilidades, inconteste que eventual apuração de erro de diagnóstico pode guardar relação íntima com todos os atores acima mencionados (equipe médica, enfermagem, administrativo, paciente, acompanhantes, etc.) e, em alguns casos são de delicada percepção ao julgador e à produção de provas no caso concreto.
A propósito, ao refletir sobre a jurisprudência como processo criativo do julgador a partir do texto legal, MAURO CAPPELLETTI[2] nos ensina: “Efetivamente, eles (os juízes) são chamados a interpretar e por isso, inevitavelmente a esclarecer, integrar, plasmar e transformar, e não raro a criar ex novo o direito”. (anotamos)
Recente publicação de estudo nacional sobre a judicialização da saúde realizado pelo Insper, sob encomenda do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) e divulgado no dia 18 de Março pp, em seminário no Hospital Sírio-Libanês revela que as ações judiciais relativas à saúde no Brasil aumentou 130% entre 2008 e 2017, conforme publicado na Folha de São Paulo de 19 de março de 2019 às 2h00 (www1.folha.uol.com.br, acesso em 19/03/2019). Já foi revelada em estatística anterior realizada pelo Superior Tribunal de Justiça e referida nas Notas Introdutórias dos Comentários ao Código de Ética Médica publicada por EDUARDO DANTAS e MARCOS COLTRI[3] que as demandas versando sobre “erro médico” cresceu 17 (dezessete) vezes entre os anos de 2001 e 2008.
Com esses índices de judicialização da saúde, as seguradoras no Brasil estão se organizando, ainda que precariamente, com baixa confiabilidade – vide liquidação da NOBRE SEGURADORA e cláusulas de exíguo prazo de retroatividade a cobertura de fatos geradores verificados no ato de contratação da apólice de empresa sucessora.
O cenário atual está a invocar do CFM, na qualidade de órgão máximo de regulamentação e fiscalização do exercício profissional da Medicina, uma aproximação, como legítimo “amicus curiae”, ou interventor anódino, sem interesse jurídico, na solução de litígios que envolva a construção do conceito de culpa em erro médico, particularmente, causas envolvendo erro de diagnóstico. Essa possibilidade foi prevista no artigo 138 do Novo Código de Processo Civil (Lei nº 13.105 de 16 de Março de 2015).
Art 138. O juiz ou o relator, considerando a relevância da matéria, a especificidade do tema objeto da demanda ou a repercussão social da controvérsia, poderá, por decisão irrecorrível, de ofício ou a requerimento das partes ou de quem pretenda manifestar-se, solicitar ou admitir a participação de pessoa natural ou jurídica, órgão ou entidade especializada, com representatividade adequada, no prazo de 15 (quinze) dias de sua intimação.
§ 1o A intervenção de que trata o caput não implica alteração de competência nem autoriza a interposição de recursos, ressalvadas a oposição de embargos de declaração e a hipótese do § 3o.
§ 2o Caberá ao juiz ou ao relator, na decisão que solicitar ou admitir a intervenção, definir os poderes do amicus curiae.
§ 3o O amicus curiae pode recorrer da decisão que julgar o incidente de resolução de demandas repetitivas.
Conclusão.
Além da participação do CFM na qualidade de “amicus curiae” acima referida, há outras formas de mitigar o distanciamento entre as decisões Administrativas e Judiciais nas hipóteses de erro médico - gênero e erro de diagnóstico - espécie, através da formação de um grupo de estudos em Direito Médico e da Saúde, composto por representantes do CFM, do Poder Judiciário e Advogados especializados em Direito Médico e da Saúde com objetivo de participar de simpósios, congressos, organizados pela Classe Médica - CFM e Operadores do Direito.
O resultado prático desse grupo misto de estudos seria o alinhamento sinergético das produções Administrativas e Judiciais, com os seguintes propósitos:
- Evitar decisões conflitantes – confiabilidade dos julgados;
- Dinamizar a adequação jurisprudencial à realidade dos avanços tecnológicos de diagnóstico e evolução clínica;
- Promover celeridade e segurança jurídica aos envolvidos
São as nossas considerações.
[1] FRIEDMAN, Thomas L. Obrigado pelo Atraso. Trad. Claudio Figueiredo : Ed. Schwarcz S.A. 2017, págs. 39/45
- CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores? Trad. Carlos Alberto Alvares de Oliveira. Porto Alegre : Sérgio Antonio Fabris Editor, 1993, Reimpressão 1999, pág. 74.
- DANTAS, Eduardo Vasconcelos dos Santos. COLTRI, Marcos Vinícius. Comentários ao Código de Ética Médica. Rio de Janeiro : GZ Editora, 2ª edição, 2012, pág. 1.