Do Estado Legislativo ao Estado Constitucional

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Este artigo analisa alguns pontos fundamentais a respeito das características que da evolução da jurisdição, tanto comum quanto constitucional, no que se convencionou chamar Estado Constitucional em contraposição ao Estado Legislativo.

A partir do século XIX, com fundamentais contribuições dos pressupostos filosóficos jusnaturalistas e a indiscutível vitória dos valores e ideais liberais decorrentes da ascensão ao poder da classe burguesa, que se consolidaria como o novo modelo de padrão econômico-social que moldaria o ocidente, e traria junto seus mais caros princípios, quais sejam, o individualismo exacerbado, e a liberdade de comércio, todos decorrentes dos ideais de liberdade originários das revoluções liberais americana (1776) e francesa (1789), principalmente, a percepção das relações econômicas e sociais se modificaram muito na Europa, e posteriormente influenciou a conformação de modelos jurídicos de outras partes do mundo (BARROSO, 2005).         

A conjugação de fatores como o fortalecimento econômico e político da burguesia e o direcionamento teórico sobre o surgimento e a função que seria atribuída ao Estado desenvolvido pelos Iluministas, movimento que daria substrato filosófico à revolução francesa e que apressaria a queda dos regimes absolutistas então vigentes, pretendia antes de tudo a igualdade entre os homens e a sujeição do Estado a um ordenamento jurídico que lhe conferisse limites.

Nesse contexto de criação de elementos que pudessem dificultar ou mesmo desencorajar a atuação abusiva do poder disponível ao ente estatal, até então compatível com desmandos pessoais de uma nobreza sem limites, a burguesia encontrou no princípio da legalidade um fundamento de controle para os arbítrios de um sistema absolutista que imperava em quase toda a Europa ocidental. Daí decorreu o fato de que, os direitos, a partir de então passaram a originar-se exclusivamente de normas jurídicas adequadamente aprovadas por um corpo eleitoral, e que obedecesse a um conjunto específico de procedimentos formais.

O que se desenhou a partir daí, conforme explica Marinoni (Marinoni, 2015), foi a subordinação do Poder Judiciário e do Poder Executivo às deliberações adotadas pelos Poder Legislativo revestidas sob as condições que agora se apresentavam autoritárias, uma vez que a afirmação do Estado Liberal ao Absolutista significou também a substituição do autoritarismo absolutista pelo autoritarismo legislativo, já que o modelo que se insurgia tinha o objetivo fundamental de controlar os abusos de um poder executivo forte e centralizador e de um poder judiciário corrupto e hereditário.

Sob essas diretivas, o modelo filosófico sobre a concepção do direito que melhor se apresentava era o positivismo jurídico, uma vez que parte do pressuposto inicial de que somente a lei configura-se como origem fundamental do direito, influenciando tanto o modo de manifestação da jurisdição, como o modo de compreender a efetiva eficácia das intenções previstas nas cartas constitucionais. No primeiro caso da jurisdição, adotou caráter meramente revelador da vontade do legislador, externando suas verdadeiras intenções (Marinoni, 2015). E quanto às constituições, transformou-as em mero texto de intenções políticas.

Como é sabido as reflexões baseadas em uma concepção positivista do direito não primavam por considerar o caráter ético valorativo atribuído às normas jurídicas. Ao contrário disso, atribuíam ao direito, pelo menos no que diz respeito as suas vertentes que se manifestaram na Alemanha, na França e na Inglaterra no anos oitocentos, atributos principalmente relacionados formalidade, ao estatalismo e artificialidade, daí resultando conforme Marinoni (Marinonni,2015) esclarece, de concluir-se que o direito teria como fonte exclusiva a própria legislação, sendo pois a validade das leis originadas exclusivamente de atividade legislativa estatal. Sobre as características das concepções positivistas sobre a concepção do direito, marinoni acrescenta ainda o imperativismo, a crença na suposta plenitude do direito, a sua artificialidade, dentre outras.

Assim, por essa perspectiva, a atuação interpretativa da jurisdição era considerada meramente instrumento a serviço do legislativo, pois se limitava a um puro ato de conhecimento, pois toda a norma já teria um significado intrínseco, e objetivamente dado, bastando que apenas fosse individualizado e explicitado. Assim o método interpretativo era do tipo lógico dedutivo e excluía qualquer tipo valoração ou escolha discricionária do intérprete (marinoni, 2015).

No entanto, essas concepções jurídicas oitocentistas fundamentalmente individualistas e patrimonialistas não demonstraram os elementos necessários para conformar-se à nova realidade social, com suas novas demandas específicas e inerentes complexidades a que o mundo assistiu nas décadas seguintes. Os dissabores de guerras e os novos rearranjos estatais, pactuados sob a política do bem estar social, bem como a necessidade de novos rearranjos constitucionais, portadores modelos principiológicos decorrentes do que se convencionou chamar de movimentos pós-positivista e neoconstitucionalista. Tais fenômemos contribuíram para o declínio das características que a concepção do direito e da jurisdição que modelavam o arcabouço jurídico institucional construído pelo liberalismo.

O efeito dos acontecimentos que ocorreram no mundo, especialmente a explosão de duas guerras mundiais, fizeram surgir a necessidade de uma nova proposta de enquadramento de princípios e modelos jurídicos que conferissem ao direito suporte para a compreensão de justiça e de construção de valores que norteassem a convivência humana dentro de limites que garantissem direitos fundamentais. Desse modo, é fundamental ressaltar as mudanças por que passou o Direito Constitucional na Europa, que de algum modo influenciaram também o direito constitucional e o modo como a jurisdição se manifestava.

Sarmento, ensinando sobre os eventos históricos que influenciaram o advento do neoconstitucionalismo, com clara ênfase no que ocorria na Europa, na segunda metade do século XX, explica que no velho continente predominava uma cultura jurídica de característica predominantemente legicêtrica, que restringia o direito quase que exclusivamente àquilo que era produzido e promulgado ao poder legislativo, sem atribuir, no entanto, força normativa às constituições, que eram consideradas por essa época, meras cartas de intenções políticas de quem ocupava o poder por ocasião de sua edição (SARMENTO, 2009).

Em outra obra, Sarmento salienta que tal modelo se conformava a partir de duas premissas fundamentais, quais sejam, a crença de que somente o parlamento possuía legitimidade para construir o direitos. E a outra, de que à jurisdição comum, aos juízes não era dada legitimidade para tal atribuição. No entanto, a concepção destas duas premissas serão abaladas profundamente, ao longo do século, por fatores econômicos, como a face selvagem do capitalismo, bem como o progressivo aumento do direito de voto. Esses fatores levariam à transformação do estado liberal em Estado Social (SARMENO, 2007).

Com o fim da segunda Guerra Mundial, após o declínio de ditaduras em países como Espanha e Portugal décadas depois, a percepção sobre o significado da constituição sofreu significativas mudanças (SARMENTO, 2009). Fenômenos ocorridos na Segunda Guerra Mundial como o Nazismo fizeram notar a possibilidade do que maiorias possam perpetrar contra minorias verdadeiras barbáries, e desencadearam um movimento de fortalecimento da jurisdição constitucional, instituindo mecanismos potentes contra eventuais desrespeitos aos direitos fundamentais, mesmo em face do legislador.

A partir do delineamento destas conclusões, o constitucionalismo surge como uma alternativa plausível, já que às novas constituições seriam inseridos o que se chamou desde então de positivação dos direitos naturais. E à jurisdição foi sendo atribuído outro papel.

 Esse processo neoconstitucionalidor se foi deixando desenhar, segundo barroso, perpassando-se três marcos fundamentais.

O primeiro Marco fundamental é de caráter histórico, qual seja o processo de reconstitucionalização europeu após o término da segunda guerra mundial, que redefiniu o papel desempenhado pelas constituições na organização dos Estado e sua influência sobre as outras instituições políticas, reaproximando as ideias de democracia e constitucionalismo.

O segundo marco foi de caráter filosófico e se caracteriza pela decadência do positivismo puro. Ou seja, aqui se assinala a confluência, ainda segundo Barroso, de dois paradigmas jurídicos desenvolvidos nos séculos xvi e xix, ou seja o jusnaturalismo e o próprio positivismo. Assinala ainda barroso que a equiparação do positivismo à lei, afastou do direitos discussões importantes, como aquelas que dizem respeito à legitimidade e à própria noção de justiça. A queda do positivismo está associada ao fim da segunda guerra mundial, e consequente, à reaproximação entre ética e direito.

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Barroso assinala ainda que “A superação histórica do jusnaturalismo e o fracasso do positivismo abriram caminho para um conjunto amplo e ainda inacabado de reflexões acerca do Direito, sua função social e sua interpretação”.

Barroso assinala ainda um terceiro marco teórico, que configura o novo modelo jurídico constitucional que ocorreu no século XX. Esse marco é distinguido por três características: o reconhecimento da força normativa da constituição; a expansão da jurisdição da constituição; e o desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação constitucional (BARROSO, 2012).

O que se percebeu ao longo desse processo de desenvolvimento de modelos jurídico que conformaram a base de relações a que a humanidade se submete, foi o aparecimento de um modelo que propiciou a orientação por princípios promovidos e direcionados pela própria constituição, que redirecionam e delimitam interesses individuais em relação aos interesses sociais, representados pelo restante da coletividade.

Ainda nessa perspectiva de transformação do Estado legislativo, tipicamente positivista, para um Estado propriamente constitucional se deu, segundo Mitidiero, sob o direcionamento de uma tríplice alteração no que se refere à compreensão a respeito do direito. A primeira diz respeito à teoria das normas, e revela a modificação da concepção de que norma era sinônimo de regra, e os princípios ganham nova roupagem e passam agora a ter força normativa vinculante para os seus destinatários, deixando de ser apenas fundamentos para as normas.

A segunda transformação mencionada pelo autor se refere à modificação da técnica legislativa. Ao invés da técnica casuística exclusiva do Estado Legislativo, agora, no Estado Constitucional, adota-se técnica ora aberta, ora casuística. Isso quer dizer que o legislador a depender do contexto pode optar por individualizar especificamente o caso onde certa lei deve ser aplicado ou pode utilizar-se de termo indeterminado.

A terceira mudança apontada pelo autor se refere diretamente ao papel agora assumido pela jurisdição, pois atine à função interpretativa, pois agora no Estado Constitucional a atividade jurisdicional não se circunscreve mais ao papel de apenas descrever ou revelar o direito. À função jurisdicional atribui-se competência para a reconstrução do sentido que se atribui às normas, decorrendo daí a fato de que norma não é mais sinônimo de regra. Assim assinala-se uma grande diferença entre o perfil interpretativista do Estado Legislativo para o Estado Constitucional.

BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito. O triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 851, 1 nov. 2005.

MARINONI,  Luiz Guilherme; ARENHART, Sergio Cruz. Novo Curso de Processo Civil I. 20015

MITIDIERO, Daniel. Neoconstitucionalismo no Brasil: riscos e possibilidades. 2009.

MITIDIERO, Daniel. Precedentes: da persuasão à vinculação. Editora Revista dos Tribunais.

SARMENTO, Daniel. O neoconstitucionalismo no Brasil:riscos e possibilidades. In: LEITE, George Salomão; SARLET, Ingo Wolfgang (orgs.). Direitos fundamentais e estado

constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, pp. 9-49, 2009.

SARMENTO, Daniel. Ubiqüidade constitucional: os dois lados da moeda. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira; SARMENTO, Daniel (orgs.). A constitucionalização do direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, pp. 113-148, 2007.

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