ARQUIVAMOS O ESPAÇO PÚBLICO

Revogamos a Carta Política de 1988.

21/04/2019 às 11:33
Leia nesta página:

E maldizemos a dignidade, a democracia, a cidadania.

Antes de investigarmos o título (Objeto Negativo: transmutação da CF/88), em primeiro lugar, vejamos os objetivos da Carta Política, ou seu Objeto propriamente dito. Nosso argumento inicial destaca que:
Para a Carta Política de 1988, diga-se, desde já, a justiça social é um princípio fundamental, sem o qual não se realiza a dignidade. Desse modo, a justiça social é o corolário da dignidade da pessoa humana (dever-ser, como “obrigação pública de fazer” do Estado Democrático de Direito) e, assim, a justiça social corre resguardada pela proteção constitucional das cláusulas pétreas; pois, sem a dignidade (trazida pela justiça social) não há a forma do Estado Democrático de Direito e, em qualquer hipótese de violação desse princípio elementar, anula-se a eficácia constitucional sob a reserva do art. 60 da CF/88, a mesma que impõe a impossibilidade de alteração da forma-Estado e dos direitos e das garantias fundamentais.
Ainda há que se pontuar que, se o artigo 6º – ao retratar direitos sociais fundamentais – é cláusula pétrea, há que se aplicar o grau máximo de preservação constitucional, além se verificar o Princípio da Não- Retrogradação Social ou Princípio do Não-Retrocesso Social.
Antes, porém, de embalar na argumentação e na retórica em defesa do conteúdo humanizador (civilizatório: teleológico) da Carta Política, citemos o que nos manda rezar juridicamente a CF/88.
PREÂMBULO
Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um ‘Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos’, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL (in verbis – grifo nosso).

Ideia central que se segue no art. 1º da CF/88, pois, a República e a democracia não se sustentam (nem se anunciam) sem a prevalência da cidadania e da dignidade.
TÍTULO I
Dos Princípios Fundamentais
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I - a soberania;
II - a cidadania
III - a dignidade da pessoa humana;
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V - o pluralismo político.
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.
 
Imersos, de princípio, no art. 1º da CF/88, a conclusão inicial é de que as políticas públicas devem financiar a cidadania. E, se assim ocorre, alimenta-se a dignidade da pessoa humana, a inclusão popular, a participação social na Política: que é o esteio da Carta Política.
O ovo da serpente do Objeto Negativo da CF88
O contrapé da CF/88, no entanto, ocorre sob a direção do seu Objeto Negativo, e que se observa como comutação dos objetivos constitucionais, isto é, revogando-se os marcos civilizatórios da sociedade brasileira e do Estado Democrático de Direito. O Objeto Negativo também revoga o espaço público, mas também a democracia, a Constituição – enquanto Carta Política –, o Estado de Direito, os princípios gerais do direito. E prossegue revogando a Política (urbanidade, civilidade), o Processo Civilizatório, no intuito de interditar o conjunto complexo dos direitos humanos.
Por isso, temos, desde 2016, a vigência do Objeto Negativo da Carta Política.
A questão que se poderia colocar agora é: Falta ordem legal expressa para isso? Não falta mais.
A total investida contra a Constituição Federal de 1988 – aniquilando-se os Colegiados participativos e expressos em Lei Constitucional, além de toda ordem de tergiversação ou de Transmutação Constitucional (revogação de seus pressupostos), e que agem para dar cabo do Esclarecimento e do Iluminismo, (sem que caiba uma mínima dúvida metódica, isto é, quanto ao método empregado – de acordo com o método cartesiano) – é a prova irrefutável de que revogamos toda construção político-jurídica dos últimos 2000 anos.
Da Grécia à Roma antiga tudo que era republicano se “desmanchou no ar” perante o fascismo, de ira irascível, sem racionalidade, com desprezo pelo Estado-Povo, e com base em crendices sacrílegas e mitologias medievais. Por este empuxo de natureza belicista e economicista, a Constituição de 1988, nascida teleológica e programática, terminou tautológica (sem nomologia de defesa social) e morta pela ação/inação, interpretação de ocasião; seguindo-se a natureza jurídica pragmática prevalecente. Na prática, a CF/88 deixou de ser cumprida (por ser comprida demais), efetivamente, no quesito de ser “uma obrigação pública de se fazer pelo social”.
Por isso, pode-se dizer, infelizmente, como se prefigurou a partir do título: A Transmutação Constitucional (injustiça sistêmica imposta com anuência do Judiciário) permitiu que se decretasse, dos píncaros do Poder Político, o ARQUIVAMENTO DO ESPAÇO PÚBLICO. Porque, sem meias palavras, revogamos a Carta Política de 1988 e maldizemos a dignidade, a democracia, a cidadania, a decência constitucional, a justiça social, a vocação pela emancipação popular.
Então, quais são os objetivos da Carta Política?
  Em sentido contrário a este contraditório trazido pelo Objeto Negativo da Constituição Federal de 1988, pode-se dizer que a Carta Política anuncia o Princípio Civilizatório – e que a justiça social lhe socorre na condição de um princípio fundamental batizado como cláusula pétrea.
Todavia, para avançarmos nesse segmento constitucional, vejamos primeiro a instrução trazida pela CF/88 quanto aos objetivos do Estado Democrático de Direito – com fundamento na solidariedade e na justiça social, vírgula, dignidade:
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II - garantir o desenvolvimento nacional;
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

 Não é preciso repetir, mas uma sociedade livre só se faz por meio da justiça social que conduz à dignidade, a forma-Estado em que todos estejam de fato ao alcance do Princípio da Justiça Social. Com este objetivo prefigurado, a Carta Política delimitou, limitou, a arena econômica sob o Objetivo da CF/88: a própria justiça social.
Da Ordem Econômica e Financeira
CAPÍTULO I
DOS PRINCÍPIOS GERAIS DA ATIVIDADE ECONÔMICA
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
I - soberania nacional;
II - propriedade privada;
III - função social da propriedade;
IV - livre concorrência;
V - defesa do consumidor;
VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação;
VII - redução das desigualdades regionais e sociais;
VIII - busca do pleno emprego;
IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.
Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.

 Com esta configuração, a CF/88 ainda intitulou a ordem social como objetivo diretivo da embargável justiça social.
TÍTULO VIII
Da Ordem Social
CAPÍTULO I
DISPOSIÇÃO GERAL
Art. 193. A ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais.

Após este exame inicial (e, no fundo, apenas exemplificativo, nunca exaustivo) da Carta Política de 1988, podemos dizer que há uma trama de direitos, garantias, liberdades e remédios jurídicos que tornam a justiça social o principal mecanismo da dignidade humana – e assim a coloca ao abrigo da mais forte defesa constitucional contra o oportunismo jurídico: sob a condição de ser uma cláusula pétrea.
De que modo se garante esta afirmação?
 Neste sentido, é preciso dizer preliminarmente que princípios informam direitos. Que direitos precisam de garantias, de liberdade (isonomia), e de remédios jurídicos para sua efetividade. Uma vez que o princípio da humanização, em exemplo fundante, só tem fluxo regular com a afirmação do direito. E este só se afirma com a racionalidade.
Contudo, para que seja uma racionalidade que não se desprenda da origem e da motivação, da humanização basilar, a racionalidade tem que se diferenciar da violência e se conectar com a dignidade: outro princípio fundamental – visto que, fora do direito não há dignidade, só violência.
Por sua vez, não há dignidade na injustiça. E disso decorre que a justiça social seja um princípio fundamental da sociedade e do Estado Democrático de Direito. Pois bem, se a própria essência do capital, a propriedade, está submersa na obrigação da função social, temos que a função social é um tipo de princípio pragmático; uma vez que, sem sua fruição não há meio efetivo de se precaver a dignidade do arbítrio provindo da força política e da violência do capital. Então, já se pode antecipar a conclusão de que, se não há dignidade na injustiça, na miséria e na indigência humanas, é o Princípio da Justiça Social que atuará como meio reparador da injustiça, para que o Estado Democrático de Direito cumpra sua missão fundamental: emancipação, inclusão, elevação do social e do humano.
Por isso, há um dever expresso de cumprimento da cláusula da justiça social
Este dever-ser do Estado, portanto, é uma condição “sine qua non”, uma condição sem a qual vige outra forma de Estado, que não o democrático e social, e ao arrepio da CF88. Por fim, se a dignidade é o objetivo maior do Estado e do Direito democráticos, a justiça social é sua cláusula de garantia à segurança social.
No entanto, é uma cláusula especial, de força e forma inamovíveis, insubstituíveis, ou seja, a natureza jurídica da justiça social tem o lastro de uma cláusula pétrea.
E segue-se desta forma a CF/88:
Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:
...
§ 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
I - a forma federativa de Estado;
II - o voto direto, secreto, universal e periódico;
III - a separação dos Poderes;
IV - os direitos e garantias individuais.

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Finalmente, é possível dizer que o contraditório trazido pela negação da CF/88 (anulação da Política) é consorte da afirmação do seu Objeto Negativo (injustiça social), ou em linguagem dialética do direito, para recuperarmos o estofo humanizador (combatente da injustiça social), é urgente requerer a negação da negação da dignidade humana – e que coincide com a afirmação da justiça social como cláusula pétrea.

Vinício Carrilho Martinez (Pós-Doutor em Ciência Política)
Professor Associado da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar
Departamento de Educação- Ded/CECH
Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/UFSCar

Sobre o autor
Vinício Carrilho Martinez

Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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