Inconsistências da política de subsídio cruzado

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Com frequência, se escuta que as tarifas de serviços públicos no Brasil são excessivas ou desarrazoadas. Para compreender este fenômeno, é preciso debater um elemento primordial da formação destes preços: o subsídio cruzado.

Na realidade dos diferentes serviços públicos divisíveis (em geral, monopólios naturais[1], titularizados, por lei, pelo Estado), é usual que a cobrança da tarifa necessária à justa remuneração da atividade se mostre inviável em relação a muitos usuários, seja pela vulnerabilidade econômica destes consumidores, seja pela inexistência de escala mínima para dispersar satisfatoriamente, entre os beneficiários diretos, as despesas de capital e custos fixos incorridos na prestação do serviço.

A despeito da impossibilidade de pagamento da tarifa pertinente, entende-se que os serviços públicos que possuem um caráter de essencialidade devem ser, ainda assim, disponibilizados nestes casos, a partir de uma política tarifária que observe a capacidade de contribuição do usuário ao sistema.

Evidentemente, tal contexto impõe um desafio financeiro ao administrador público, que precisa identificar fontes alternativas de custeio para suprir o déficit gerado, apresentando-se, basicamente, duas opções para compensá-lo: (i) a constituição de mecanismo de subsídio cruzado tarifário, pelo qual se imputa aos demais usuários a responsabilidade financeira pela parcela não cobrada dos beneficiários diretos, ou (ii) a instituição de subsídio fiscal, por meio da qual a necessidade adicional de recursos é suportada pelo universo de contribuintes[2].

Em que pese esta última alternativa ser, a nosso sentir, mais condizente com o ordenamento jurídico no que concerne à almejada transparência governamental, à accountability dos gestores públicos, ao respeito aos direitos fundamentais do indivíduo (contribuinte), e mesmo à eficiência econômica[3], a utilização do subsídio cruzado se mostra, hoje em dia, largamente disseminada nos três níveis federativos.

Fazendo coro a críticas que têm se tornado cada vez mais frequentes[4], passamos a expor, em poucas linhas, as razões pelas quais acreditamos que a adoção deste modelo se revela prejudicial ao país.

Inicialmente, com o fim de melhor aclarar a controvérsia apresentada, cumpre esclarecer que o subsídio cruzado pode consistir tanto numa parcela implícita na tarifa (difícil de ser percebida e quantificada), como constituir encargo tarifário segregado, a exemplo das verbas incidentes sobre a fatura de energia elétrica previstas na Lei nº 10.438/02, cuja natureza não-tributária foi afirmada pelo Supremo Tribunal Federal nos autos do Recurso Extraordinário 541.511-2.   

Independente da forma específica de cobrança do subsídio cruzado, entretanto, revela-se fácil compreender a preferência governamental por sua utilização, dado que este mecanismo libera o gestor público das amarras legais que norteiam a instituição ou majoração de tributos, ao mesmo tempo em que exclui um valor potencialmente relevante da disputa pelos escassos recursos públicos (rememore-se que as cifras referentes ao subsídio cruzado tendem a transitar fora da peça orçamentária).

Frise-se que a existência de um concessionário privado, responsável pela prestação dos serviços públicos, torna ainda mais pronunciada a predileção pelo subsídio tarifário em detrimento do fiscal , uma vez que, aos investidores, fracionar o risco de inadimplência entre uma pluralidade de usuários costuma parecer alternativa preferível à sua concentração num único – e mau – pagador como o Poder Público.

Esta conveniência ao gestor público e, conforme o caso, aos players de mercado, tem, contudo, um alto custo. Podem-se apontar, essencialmente, três objeções centrais ao mecanismo de subsídio cruzado: (i) sua incompatibilidade com a modicidade tarifária a que todos os usuários (e não apenas os hipossuficientes) fazem jus, (ii) a ausência de controle democrático para instituição de uma exação que acaba sendo, na prática, compulsória (pense-se na dificuldade de viver num ambiente urbano sem ligação à rede de água ou energia) e (iii) a complexidade de correlacionar adequadamente, por meio desta ferramenta, o montante exigido e a capacidade contributiva dos usuários-contribuintes.

Sobre o primeiro ponto, registre-se que, embora a modicidade tarifária expressamente reclamada pelo §1º do artigo 6º da Lei nº 8.987/95 possa ser considerada um conceito aberto, esta implica, sob um prisma objetivo[5], minimamente em um limite primordial: não pode ser considerada módica a tarifa que remunera o prestador além do custo incorrido para a execução da atividade (incluído neste “custo”, naturalmente, o retorno pertinente ao capital investido).

Admitida a quebra desta proporcionalidade basilar entre o benefício obtido pelo usuário e o valor cobrado (o que, inevitavelmente, ocorre em relação àqueles consumidores que suportam o ônus do subsídio), o preceito legal torna-se letra morta e se perde qualquer baliza efetiva para julgar a adequação do nível tarifário.

Aprofundando a análise acerca do descompasso entre a política de subsídio e o texto legal, revela-se interessante notar, neste ponto, que a Lei nº 8.987/95 indica expressamente, como meio aceitável para obtenção de modicidade tarifária, o estabelecimento de fontes alternativas de receitas para o concessionário, silenciando sobre a possibilidade de instituição de subsídio cruzado para este mesmo fim.

Com efeito, o artigo 13 deste diploma legal[6], por vezes citado como fundamento para concepção do mecanismo de subsídio, dispõe, na verdade, que a diferenciação de tarifas somente é admissível em virtude de características técnicas dos serviços ou de custos específicos de atendimento a diferentes segmentos de usuários, o que, a nosso sentir, traduz sentido exatamente oposto ao do subsídio cruzado; de fato, o preceito legal sugere a interpretação de que maiores custos justificam maiores tarifas, enquanto o subsídio cruzado implica a fixação de uma relação inversamente proporcional entre estes dois elementos.

Avançando para a questão do controle democrático, verifica-se que, ao contrário do que ocorre no processo de instituição de tributos, sujeito a uma série de limitações decorrentes de garantias outorgadas ao contribuinte, o subsídio cruzado termina por ser construído e aprovado, ordinariamente, em um contexto de pouca supervisão e controle, a partir de (i) manifestações de agências reguladoras, (ii) decisões societárias de empresas estatais prestadoras de serviços, ou, na hipótese de desestatização, de (iii) discussões entre técnicos do ente público e consultores externos na fase de modelagem dos projetos.

Frise-se que a ausência de escrutínio por representantes eleitos macula não apenas a seleção dos usuários que suportarão o encargo adicional, como também e principalmente, a escolha daqueles que se beneficiarão pela redução ou eliminação de tarifas.

Revela-se provável, aliás, que esta escassez de controle social e a desnecessidade de comprometer recursos públicos específicos sejam razões preponderantes para a notória proliferação de isenções, tarifas sociais e congêneres financiadas por subsídio cruzado, em uma confirmação prática da sabedoria popular sobre a facilidade de se fazer caridade com o chapéu alheio.

Adicionando insulto à injúria, constata-se a instituição habitual de subsídio cruzado entre usuários vinculados a diferentes entes federativos, em serviços de titularidade de governo local ou regional (referimo-nos aqui, precipuamente, a hipótese, comum no setor de saneamento, em que serviços de competência municipal são diretamente prestados ou delegados por entidades estaduais). Sem embargo de sua utilização disseminada, cremos haver neste arranjo um potencial vício insanável na cobrança a usuários (contribuintes) não sujeitos à influência legal do ente público titular do serviço.  

Por fim, no que tange à questão da apuração da capacidade contributiva dos usuários-contribuintes, afigura-nos elementar constatar que uma decorrência inevitável (e indesculpável) da lógica do mecanismo debatido consiste no fato de que pessoas com níveis similares de renda e patrimônio possam subsidiar ou ser subsidiadas, a depender unicamente de residirem em áreas mais ou menos adensadas.

Isto ocorre, pois, nos diferentes segmentos de infraestrutura, o subsídio usualmente se faz necessário menos por uma carência específica ou incomum de renda entre os beneficiários, e mais pela circunstância de não existir, nas áreas de prestação do serviço, número suficiente de pessoas para absorver adequadamente os investimentos normalmente vultosos realizados na construção ou operação dos ativos.

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Outro fator que corrobora a impressão de dissonância entre o mecanismo de subsídio cruzado e a avaliação de capacidade contributiva diz respeito à possibilidade de que simples mudanças de hábitos de consumo reduzam a parcela de contribuição ao sistema: ora, enquanto a redução do valor gasto com o serviço diminui o comprometimento da renda do usuário, aumentando (evidentemente, de forma marginal) sua capacidade contributiva, opera-se uma correspondente desoneração da parcela de subsídio exigida, uma vez que esta é, habitualmente, proporcional à tarifa faturada.

Enfim, sintetizadas as principais críticas à política de subsídio cruzado, passa-se a uma brevíssima análise da alternativa à disposição dos gestores públicos para solução do déficit em discussão: a utilização de recursos orçamentários.

Neste ponto, faz-se pertinente salientar que, não obstante a recente promulgação da Lei nº 13.460/17[7], a proteção jurídica conferida ao contribuinte ainda é, incontestavelmente, muito superior àquela concedida aos consumidores, inclusive aos usuários de serviços públicos (diga-se, aliás, que a lei referida se mostra suspeitamente lacônica no que toca à política tarifária).

Assim, parece-nos que a principal vantagem em se custear subsídios por meio de impostos, e inseri-los nas despesas orçamentárias do ente estatal, consiste em fomentar o debate democrático sobre quem deve arcar com o ônus financeiro desta arrecadação (garantindo-se aos eventuais escolhidos, em qualquer caso, as salvaguardas constitucionais e legais relativas à limitação do poder de tributação estatal, como o respeito à reserva legal, anterioridade tributária, etc.) e sobre quem - e em que extensão – deve ser beneficiado.

Ressalte-se, por oportuno, a inexistência de qualquer óbice jurídico para a eventual transferência de recursos orçamentários a operador privado dos serviços; ao contrário, presume-se razoável considerar que a cessão de recursos pelo Estado (e não o subsídio cruzado) é, de fato, a maneira idealizada pela legislação para lidar com a insuficiência da arrecadação tarifária, mormente após a edição da Lei nº 11.079/04 e a positivação, em nosso ordenamento, do contrato de concessão patrocinada.

Registre-se, a propósito, que uma alternativa óbvia para viabilizar a prestação de serviços deficitários consiste na desoneração tributária dos prestadores de serviço; de fato, é curioso notar que, não raro, ao mesmo tempo em que exige dos usuários sacrifícios significativos para o custeio de atividades de interesse público, o Estado tributa pesadamente a exploração destes negócios, direcionado os recursos arrecadados para outras finalidades.

Em conclusão, entendemos que a intensa agenda de desestatização prometida pelo governo federal e por entes subnacionais para os próximos anos representa uma valiosa oportunidade histórica para repensar as políticas de financiamento de serviços públicos, e que, neste novo cenário, seria efetivamente salutar se as tarifas passassem a refletir uma justa remuneração dos serviços prestados e auxílios e favores específicos demandados pela sociedade fossem debatidos nas esferas representativas competentes.

 

 


[1] Sobre a teoria clássica de monopólio natural, vide o interessante contraponto de Thomas J. DiLorenzo. DILORENZO, Thomas J. The Myth of Natural Monopoly. Review of Austrian Economics. Volumes 1-10, 1996. Disponível em: <https://mises.org/library/myth-natural-monopoly-0>. Acesso em: 18 mar. 2019.

[2] Uma maneira calamitosa, porém surpreendentemente comum, de atingir o mesmo objetivo consiste na prestação dos serviços de forma permanentemente deficitária por estatal. Contudo, esta não constitui uma terceira alternativa à parte, mas, sim, mero desdobramento da segunda opção descrita, uma vez que, em algum momento, o Estado terá de aportar recursos à entidade deficitária.

[3] A cobrança de tarifa é economicamente mais justa que a de impostos até a extensão em que os serviços possam ser referíveis à tarifa; a partir deste montante, perde-se qualquer vantagem de justiça fiscal e se fomentam ineficiências (além da supressão das garantias duramente conquistadas pelos contribuintes ao longo da história).

[4] A propósito, vide a contundente crítica de Ricardo Almeida Ribeiro da Silva, para quem as tarifas já representam o componente mais relevante do malfadado “custo Brasil”. SILVA, Ricardo Almeida Ribeiro. Subsídio cruzado é imposto oculto. O Globo. 15 jan. 2019. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/opiniao/subsidio-cruzado-imposto-oculto-23371011>. Acesso em: 18 mar. 2019. 

[5] É possível enxergar a modicidade sob um prisma subjetivo, que relaciona a cobrança com a capacidade de pagamento do usuário, e sob um prisma objetivo, que relaciona a cobrança com o custo do serviço prestado.

[6]  Art. 13. As tarifas poderão ser diferenciadas em função das características técnicas e dos custos específicos provenientes do atendimento aos distintos segmentos de usuários.

[7]Referida lei dispõe sobre participação, proteção e defesa dos direitos do usuário dos serviços públicos da administração pública e foi apresentada como o “Código de Defesa do Usuário do Serviço Público”.

Sobre o autor
Antônio Fernando da Fonseca Martins

Advogado do BNDES, MBA em Finanças pela Faculdade de Economia e Finanças IBMEC.

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