Ocupação, detenção e posse

Leia nesta página:

Contém uma percepção inusual da posse.

Ocupação, Detenção e Posse

 

Trabalhando os conceitos

 

            O fenômeno da posse, ainda que vivenciado desde muito antigas formações sociais humanas, somente no século 19 mereceu teorizações sobre seu significado técnico-jurídico.

            Embora tidas como distintas, as teorias da posse de Savigny e de Ihering carregam, no fundo, percepções idênticas acerca do fenômeno, vistas, porém, de diferentes perspectivas. No fundo retratam a mesma realidade. De modo sucinto, podem ser vistas assim: para Savigny, a posse resulta da combinação de dois elementos: um físico, dito “corpus” (ocupação/retenção da coisa) e um psíquico, o “ânimo” (intenção de dono); para Ihering, a posse é mero exercício de poderes da propriedade em relação à coisa.

            Extrai-se da enunciação de seus substratos que o desacordo, se é que há algum, entre ambas as teorias é mais aparente do que real. Com efeito, ambos os doutrinadores disseram praticamente o mesmo: o “ânimo de dono”, na percepção de Savigny, corresponde ao exercício de poderes inerentes ao domínio, na ótica de Ihering. Em miúdos: só tem “ânimo de dono” quem, ocupando/retendo uma coisa, “exerce em relação a ela poderes próprios do domínio”. O ânimo de dono é capto no exercício, em relação à coisa, dos poderes próprios de um dono (embora não haja um dono formal), já que a disposição de ser dono dela não possa no interior do ocupante. Assim, na impossibilidade de adentrar o interior de alguém para auscultar intenção de tornar-se dono da coisa, esse ânimo na sua exteriorização pela prática de atos reveladores da disposição.

 

Os conceitos legais   

 

            A lei adotou um modo peculiar de regular a posse: disciplina das situações de exclusão da posse em relação a quem apenas ocupa a coisa (no sentido de reter coisa móvel ou ocupar coisa imóvel). São situações fáticas e jurídicas que impactam o “ânimo de dono” e, por isso, exclui  a posse. Onde estiver presente uma dessas situações, restará descaracterizada a posse.

            Assim, não é possuidor o ocupante (da coisa imóvel) ou retentor (da coisa móvel):

            a) por ordem, autorização ou tolerância de outrem, senhor ou possuidor, porque quem se ache dono da coisa que ocupa não recebe de terceiro, certamente o real dono ou possuidor dela;

            b) de modo violento (com uso da força ou de ameaça), clandestino (às escondidas) ou ardiloso (com artimanhas), porque a ocupação mediante essas práticas não são próprias de um dono (só há posse se a ocupação for legítima; tecnicamente inexiste posse ilegítima);   

            c) em razão de um direito pessoal ou real limitado (poder de usar a coisa e dela gozar), porque o vínculo jurídico em razão do qual o ocupante pode usar e gozar da coisa exclui a possibilidade de tê-la como dono (findo o vínculo, emerge o dever de restituir; somente se houver recusa à devolução e conformação do titular da coisa, começará, a partir daí, a formação de posse do então detentor).

            Na situação “c” supra, tem-se tecnicamente “detenção”. Esse termo, nessa área jurídica, deve assumir o significado preciso de ocupação/retenção da coisa em razão de um vínculo jurídico, o qual, enquanto presente, inviabiliza a formação de posse. Assim, são detentores: o locatário, o comodatário, o usufrutuário, o devedor-fiduciante etc.

 

Poderes ou faculdades do possuidor e do detentor

 

            Ao possuidor, visto em sua exatidão técnica, a ordem jurídica confere um plexo de faculdades, entre as quais se destacam:

            a) colher os frutos da coisa enquanto persistir a posse;

            a) fazer uso dos interditos possessórios: a quem seja titular da posse em sentido estrito (por extensão legal, os meros detentores da coisa podem promover ação possessória para garantir-se contra terceiros e até contra o proprietário, enquanto em vigor o vínculo jurídico, a fruição da coisa que a ordem jurídica lhe assegura; e ao próprio titular da propriedade para repelir ato ilícito de outrem);

            b) promover, após lapso de tempo estabelecido em lei, usucapião para que se declare ao possuidor o domínio (por óbvio, excluem-se os que tenham mera detenção da coisa).

Pontue-se também que carece:

A doutrina tradicional

            Embora a relevante contribuição doutrinária de Savigny e Ihering à maior compreensão do fenômeno jurídico da posse, o apego aos termos e conceitos de outras eras prevalece e ninguém ousa mudar. Daí o sistema jurídico da posse como percebida tradicionalmente só funciona a custo de muitos ajustes, tais como posse direta e posse indireta, posse legítima e posse ilegítima, posse justa e posse injusta, posse de boa-fé, posse de má-fé, posse legítima e posse ilegítima.  

            A lição de especialistas permite ver essa percepção confusa sobre tema:

Qualquer direito subjetivo tem origem em um fato jurídico. Todavia, a polêmica despertada pela natureza da posse – fato ou direito – é intensificada pela inexistência de uma terminologia capaz de distinguir o fato jurídico que lhe dá origem do direito subjetivo que o secunda. Exemplificando: a morte (fato jurídico stricto sensu) provoca o direito subjetivo de suceder; o contrato (negócio jurídico) desencadeia o direito subjetivo ao credito. Nada obstante, na matéria em relevo, o fato jurídico posse desencadeia o direito de possuir, independentemente de qualquer cogitação sobre a propriedade. (Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosevald. Direitos reais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, ed. 2, p. 34-35)

A expressão posse é ambígua e designa tanto o fato jurídico que, na norma, é descrito como antecedente do direito aos interditos ou à aquisição por usucapião como a faculdade de agir em defesa de seus interesses, quando ameaçados ou lesionados.

[...]

E nesse sentido da faculdade de agir também se emprega a expressão “propriedade”. A qual desses significados corresponderia a essência do conceito é questão metafísica, sem qualquer relevância tecnológica. (Fábio Ulhoa Coelho. Curso de direito civil. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 16/17)

            Posse e Propriedade são dois conceitos para designar categorias distintas do mundo jurídico. Nada diferem em suas construções. Propriedade é o vínculo pessoa/coisa que, em razão da lei (portanto jurídico), confere à pessoa pode usar, gozar e alienar a coisa (daí o art.   do Código Civil: ....). Posse é também vínculo jurídico pessoa/coisa, nascido de situações fáticas legalmente previstas, o qual, em razão também da lei, confere à pessoa, quem embora não formalmente proprietária,  é tida como se proprietária fosse.

            A relação pessoa/coisa só se converte em vínculo jurídico (propriedade ou posse) quando a pessoa em relação à coisa atende a determinados requisitos da lei. Assim, se a pessoa adquire a coisa pelo modo e nas condições estabelecidas na lei, torna-se proprietário; de igual modo, se a pessoa ocupa a coisa nas condições estabelecidas na lei, torna-se possuidor.  

Classificação das posses

            Se tecnicamente conceituada, a noção de posse dispensa um emaranhado de classificações sibilinas:  

            a) posse direta e posse indireta: além de desnecessária, essa classificação anula o real conceito de posse (ocupação com ânimo de dono), embaralhando-o com o de detenção (ter a coisa por ordem de outrem ou em razão de um vínculo jurídico com o dono, por força do qual o detentor pode usá-la e gozá-la – casos do locatário e do devedor fiduciante, mas que, em razão do impedimento legal, não pode tê-la como sua);

            b) posse legítima e posse ilegítima: a posse advém de ocupação legítima da coisa; se ilegítima a ocupação, não se formará posse, sequer a detenção (a ocupação ilegítima não é posse);

            c) posse justa e posse injusta: a posse é simplesmente a posse; se há impedimento fático/jurídico (ilegitimidade) à emergência da posse, esta simplesmente  não nasce – quem ocupa a coisa de modo injusto é apenas um intruso.

            d) posse de boa-fé ou de má-fé: o autêntico possuidor sempre age de boa-fé; quem ocupa de má-fé nunca será possuidor, porque, enquanto persistir essa situação, a posse não nasce.

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            A aceitação disso facilita a apreensão do real significado da posse, abrindo caminho ao rigoroso tratamento terminológico do tema (distinção da posse de figuras afins: ocupação, detenção etc) e, na mesma trilha, permitindo o abandono de classificações descabidas, ou mesmo metafísicas e, por isso, estéreis. (A ciência jurídica, para adquirir foros de cientificidade, peculiar a todo saber científico, precisa despir-se do bizantinismo pré-moderno, afastando-se das discussões metafísicas).

Aplicações

Aplicando uma noção técnica da posse, tem-se:

            a) o adquirente de uma coisa móvel, não tem sua posse antes de se dar a tradição (a transmissão física da coisa); mas, como o vendedor se obriga a transferir a coisa contra o pagamento do preço, o adquirente, que paga, pode mover-lhe ação para obrigá-lo a transferir a coisa – que não é possessória (nela não discute posse), mas o dever obrigacional de entregar a coisa. Isso também se dá em relação ao adquirente de coisa imóvel: efetivado o registro imobiliário do instrumento de aquisição, tem-se (por ficção legal) por operada a transmissão do domínio. Se houver recusa na entrega do imóvel, o comprador, já titular do domínio, poderá reivindicá-lo.

            b) o credor fiduciário, havendo atraso no pagamento das prestações da quantia emprestada para aquisição da coisa, pode requerer a desconstituição da relação contratual devido à qual o devedor se investiu na detenção (jurídica) da coisa e, porque proprietário dela, exigir sua devolução (a lei fala em busca e apreensão numa simplificação para favorecer as instituições financeiras, por queimar a etapa da desconstituição).

            c) instrumental suficiente à exata compreensão da Súmula 487/STF (Será deferida a posse a quem, evidentemente, tiver o domínio, se com base neste for ela disputada): quem demanda a posse em razão dela, pode fazê-lo até mesmo em face de quem a disputa como proprietário; mas se a disputa disser respeito à posse em razão do domínio, nela não será imitido que não for o real dono.    

            Assim, sem a costumeira repetição do “quem disse o quê”, numa postura escolástica de absoluto acatamento de opiniões antigas porque emanadas de autoridades do passado, apreendem-se os aspectos relevantes do fenômeno jurídico da posse e, com o instrumental próprio da ciência do direito, pode-se formular a terminologia precisa ao seu trato. E, aí, chega-se ao que realmente interessa: o desnudamento de um autêntico direito real – isso mesmo, um poder jurídico sobre coisa física instituído por lei –, nascido do ato de ocupar (no sentido de estar em/com) a coisa com aferível ânimo de dono (que se demonstra pela conduta do ocupante).

            Concluindo, acresça-se que, na disciplina do tema posse, o Código Civil (CC), tanto o atual quanto o anterior, carrega muito dos defeitos de percepção da doutrina tradicional.

 

 

 

 

  

Sobre os autores
Erivaldo Santana

Graduado pela Faculdade de Direito da Universidade do Ceará. Ex-Promotor de Justiça do MP do Ceará. Juiz inativo do Trabalho do TRT7. Integrante do escritório de advocacia Santana e Basílio, em Brejo Santo/CE. E-mail: [email protected]

Sérgio Vasconcelos Santana

Graduado pela PUC-PE, pós-graduado em Direito Civil e advogado em Brejo Santo

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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