O juiz inquisidor no brasil: um confronto com o sistema acusatório

25/04/2019 às 14:12
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O ARTIGO DISCUTE SOBRE A NÃO SOBREVIVÊNCIA NO SISTEMA CONSTITUCIONAL BRASILEIRO DO SISTEMA INQUISITÓRIO.

O JUIZ INQUISIDOR NO BRASIL: UM CONFRONTO COM O SISTEMA ACUSATÓRIO 

ROGÉRIO TADEU ROMANO

I – O FATO 

Segundo se lê de reportagem no site do Estadão, em 25 de abril do corrente ano, a procuradora-geral, Raquel Dodge, defendeu enfaticamente a prerrogativa do Ministério Público para investigar e acusar, conforme prevê a Constituição, ‘não cabendo ao Judiciário interferir na produção de provas’.

Raquel falou durante a cerimônia de posse do novo presidente do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais (CNPG), procurador-geral de Justiça de Mato Grosso, Paulo César dos Passos, nesta quarta, 24.

No entendimento da procuradora-geral, a Constituição ‘aboliu o sistema inquisitorial segundo o qual o Judiciário acumulava a função de julgar e acusar’.

Atualmente, ela argumenta, ‘o juiz não mais interfere na produção de prova, nem tem a função própria nas fases investigatória e acusatória’.

“Preserva sua neutralidade no exame da ação penal, minimizando o risco de que tenha compreensão prévia sobre a acusação”, avalia.

Para Raquel, cabe ao Ministério Público investigar ou acompanhar as investigações com o objetivo de formar a chamada opinio delicti, ou seja, o convencimento sobre as provas e sobre a autoria que lhe permitam concluir se há justa causa para oferecer denúncia ao juiz.

Ela destaca que esse modelo proporciona equilíbrio de forças entre acusação e defesa.

“Esta é a essência da garantia do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal feita na Constituição. A jurisdição penal está indissociavelmente vinculada ao princípio do juiz isento, que não julga com parcialidade”, afirmou.

Raquel considera que ‘o sistema acusatório, inaugurado em 1988, reserva à Justiça o grave poder de julgar’.

“É o Judiciário quem decide se recebe ou rejeita a denúncia, aplicando a lei penal aos fatos que tenham sido provados pela acusação e defesa durante a ação criminal”, observa a procuradora.

“Eventual atuação que contamine a separação de funções prevista na Constituição, denotando indevida intervenção em função típica e privativa de qualquer dos atores do processo penal, fere o sistema acusatório e mina a confiança na Justiça”, concluiu.

II - O CONFRONTO ENTRE O SISTEMA INQUISITÓRIO E O SISTEMA ACUSATÓRIO. O CASO PIERSACK.

É sabido que o Brasil adotou de acordo com o modelo plasmado na Constituição de 1988  o chamado sistema acusatório.

Tal modelo tem como características fundamentais a separação entre as funções de acusar, defender e julgar conferidas a personagens distintos, concedendo-se ao Ministério Público, do que se lê do artigo 129, I, da Constituição o mister constitucional de ajuizar a ação penal pública. Ademais, os princípios do contraditório, da ampla defesa e da publicidade regem todo o processo e o sistema de apreciação das provas é do livre convencimento motivado.

Foge o sistema acusatório, adotado pela Constituição-Cidadã de 1988, do sistema inquisitório, caracterizado pela inexistência de contraditório e de ampla defesa, com a concentração das funções de acusar, defender e julgar na figura única do juiz, e pelo procedimento escrito e sigiloso com o início da persecução, produção da prova e prolação da decisão pelo juiz.

O modelo inquisitório vigorou durante os períodos do século XVII e XVIII,nas legislações européias. Aliás, aqui, a repressão criminal era um primordial interesse público, sendo de interesse estatal.

No processo penal, a evolução histórica deu-se nesse sentido: o que se tinha outrora era o juiz-inquisidor. Paulatinamente, se foi liberando o juiz da função de acusar e, consequentemente, da colheita preliminar da prova, para chegar a condição de terceiro imparcial.

O Código de Processo Penal de 1941, nascido sob a égide de um Estado autoritário, e que teve como fonte o Código Rocco, centralizou no juiz a possibilidade de produção da prova, sem a necessidade de provocação das partes, iniciando a ação penal e adotando providências de ofício, sem iniciativa dos demais sujeitos processuais, inclusive na fase de investigação.

Bem lembrou GOMES[1]que, no tempo do sistema inquisitivo(Idade Média), o juiz investigava e julgava o caso. O risco de ser parcial era absolutamente inevitável. Isso porque quem busca provas, quem investiga um fato, quem se compromete psicologicamente com uma determinada posição da parte interessada, não reúne, depois, condição alguma para ser o juiz imparcial do processo.

Isso porque o juiz que investiga não pode julgar, lembrando que a  fase preliminar de investigação não é contraditória.

Não é por outro modo que as Cortes europeias, na linha da jurisprudência do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, como se lê do caso Piersack[2], consideram contrário ao padrão objetivo da imparcialidade do juiz o fato de ele estar envolvido anteriormente com funções de investigação e persecução ou exercer ambas as funções(caso Kristinson).[3]

No caso Piersack vs Bélgica viu-se o entendimento de que a imparcialidade do juiz não possui somente uma natureza subjetiva, vislumbrando-se um aspecto objeto. A primeira estaria vinculada aos sentimentos e convicções pessoais do magistrado frente ao caso concreto. Já a segunda buscaria evidenciar um juiz que, na situação palpável, seja capaz de demonstrar a imparcialidade. Não basta que a autoridade julgadora não esteja subjetivamente atrelada a situações de impedimento ou suspeição, devendo-se exigir daquele magistrado, outrossim, que não pairem dúvidas sobre a sua imparcialidade em relação a outros aspectos.

Aponto que, naquele caso, emblemático para os estudiosos, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos afirmou que  ¨todo juiz em relação ao qual possa haver razões legítimas para duvidar de sua imparcialidade deve abster-se de julgar o processo. O que está em jogo é a confiança que os tribunais devem inspirar nos cidadãos em uma sociedade democrática¨.

O exercício prévio no processo de determinadas funções processuais pode provocar dúvidas de parcialidade.

Que dizer do caso De Cubber vs Bélgica, quando o Tribunal Europeu de Direitos Humanos concluiu  que ¨na própria direção, praticamente exclusiva, da instrução preparatória das ações penais empreendidas contra o Requerente, o citado magistrado havia formado já nesta fase do processo, segundo toda verossimilhança, uma ideia sobre a culpabilidade daquele.¨

A  lição de MAYA[4] é de que os tribunais Constitucionais da Espanha e da Itália  têm o entendimento no sentido da vedação de que  um mesmo órgão jurisdicional exerça atividades decisórias em diferentes fases de um mesmo procedimento penal, como ocorre no caso da revisão de medidas cautelares impostas na fase da instrução processual e, depois, de conhecimento e julgamento de recursos interpostos contra decisão de mérito, como se decidiu no caso Castillo Algar vs Espanha.

Sendo assim é lógico temer que o magistrado não venha a dispor de uma inteira liberdade de julgamento e  não ofereça garantias de imparcialidade necessárias.

A imparcialidade do julgador é uma garantia constitucional implícita. Se a Constituição de 1988 não enunciou de forma explícita o direito a um juiz imparcial, temos que o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, adotado pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 16 de dezembro de 1966(artigo 14, I), assim como a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, adotada no âmbito da Organização dos Estados Americanos, em São José da Costa Rica, em 22 de dezembro de 1969,  garantem o direito a um juiz ou tribunal imparcial, como se lê do artigo 8.1, que integra o nosso ordenamento jurídico, uma vez que foi promulgado internamente por meio do Decreto n. 592, de 6 de julho de 1992,  o que ainda ocorreu com a Convenção Americana dos Direitos Humanos, cuja promulgação se deu por meio do Decreto n. 678, de 6 de novembro de 1992.

 Observo, aliás, que, no julgamento do Recurso Extraordinário n. 466.343/SP, entendeu o Supremo Tribunal Federal que os tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil possuem status normativo supralegal.

Há uma incompatibilidade lógica entre tais funções cumuladas, a de investigar e de julgar. Não há dúvida que assim agindo o juiz, quando, na fase processual, já está contaminado pela parcialidade.

A imparcialidade do juiz o levará a formar sua convicção apenas na fase do contraditório, como se vê da exegese do artigo 155 do Código de Processo Penal, diante da chamada persuasão racional.  

Institutos como o chamado inquérito judicial, previsto no Decreto-lei 7.661/1945, Lei de Falências, em flagrante violação ao sistema acusatório, não foram recepcionados pela Constituição de 1988, a par ainda do texto da Lei 11.101/2005, Nova Lei de Falências.

A imparcialidade que se exige do juiz não justifica a persistência do artigo 5º, II, do Código de Processo Penal, na parte em que se diz que  o juiz poderia requisitar a instauração de inquérito policial. Se o juiz conhecer do fato que, em tese, admite a persecução penal, cumpre aplicar o artigo 40 do Código de Processo Penal e remeter ao Parquet a noticia para a adoção das providências que são de seu mister, como titular da ação penal pública.

De toda sorte, a doutrina tem-se debruçado sobre tal importante questão, merecendo aplausos as ideias de Jacinto Nelson de Miranda Coutinho. Aliás, COUTINHO[5] exprime tais ideias em obra objeto de muitos aplausos.

A garantia da imparcialidade não pode ser suprimida, pois cláusula pétrea. Disse OLIVEIRA[6] que a imparcialidade do juiz é requisito de validade do processo, estando inserido no devido processo legal constitucional, como uma das principais conquistas do modelo acusatório de processo. Nada mais certo.

III  – A PROTEÇÃO DA IMPARCIALIDADE OBJETIVA NO PROJETO DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL BRASILEIRO – PLS 156/2009: O JUIZ DAS GARANTIAS

O citado PLS n. 156/2009 prevê a figura do chamado ¨Juiz das Garantias¨, que seria responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais, em seu art. 15. 

Aliás, a Exposição de Motivos no Projeto de Código de Processo Penal, em seu item III, justifica a necessidade do ¨Juiz das Garantias¨, visando a consolidação de um modelo que venha a ser orientado pelo princípio acusatório. Manter-se-ia o distanciamento do juiz do processo, responsável pela decisão de mérito, em relação aos elementos de convicção produzidos e dirigidos ao órgão de acusação. Assim, pela redação do artigo 17, daquele Projeto, ¨o juiz que, na fase de investigação, praticar qualquer ato incluído nas competências do art. 15, ficará impedido de funcionar no processo.¨

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Vem a pergunta ao estudioso: A questão da imparcialidade objetiva do magistrado pode ser analisada a partir de algumas decisões que ele pode ser chamado a proferir ao longo do inquérito ou de outra forma de investigação preliminar? Haverá tal parcialidade, se, na fase de investigação, o juiz proferir manifestação, com afirmações taxativas sobre a existência do crime e mesmo a autoria delitiva? Não tenho dúvidas de  que se nessa decisão o juiz, de forma categórica, em sua fundamentação, afirmar que houve crime, que o investigado foi o autor, compromete a sua parcialidade para instruir e julgar o processo.

Isso se distancia claramente da cognição que faz o juiz de pronúncia, funcionalmente competente para externar se há prova da materialidade de um crime doloso contra a vida e ainda de indícios de sua autoria.

A parcialidade objetiva surge mediante um forte prejulgamento que faz o juiz, em cognição, para adoção de medida cautelar na investigação: garantia real, prisão cautelar, busca e apreensão, por exemplo. Essa cognição será horizontal, sobre questões, ou ainda vertical, sobre o fundo do direito.

Se o magistrado disser que, na decretação de uma prisão preventiva(artigo 312 do CPP), que não tem dúvidas de que o investigado é autor do crime, estará, sem dúvida, demonstrando a sua parcialidade. Ele terá exercido muito mais do que uma cognição superficial, uma cognição própria do modelo da probabilidade. Estará comprometendo sua imparcialidade no processo.

Claro que um juiz que autoriza uma ação controlada(Lei 9.034/1995) ou ainda a prisão preventiva do investigado, diante de fortes provas de autoria delituosa, tem comprometida a sua imparcialidade para instruir e julgar o processo penal. Como poderá condenar, ou até mesmo negar uma absolvição sumária? O crivo da nulidade absoluta da sentença faz-se necessário, pois estaríamos diante de um juiz impedido.

Se um juiz puniu um servidor num processo administrativo, não pode julgá-lo em ação penal, que verse sobre o mesmo fato(causa petendi).

IV   – O PROBLEMA DA AÇÃO PENAL EX OFFICIO OU PROCESSO JUDICIALIFORME

Assim o artigo 26 do Código de Processo Penal determinava que a ação penal, nas contravenções penais, seria iniciada com o auto de prisão em flagrante ou por meio de portaria, expedido pela autoridade judiciária ou policial. Tal dispositivo não foi recepcionado pela Constituição Federal, do que se lê do disposto no artigo 129, I, da Constituição Federal.

A doutrina, segundo se leu das lições de NOGUEIRA[7] procurou explicar o instituto, ainda sob a égide da E.Constitucional n. 1/1969.

Disse ele que esse processo se inicia na polícia e é contraditório, devendo a autoridade policial nomear defensor ao acusado, que não tiver, sob pena de nulidade.

Por força da Lei 4.611, de 2 de abril de 1965, foi estendido às lesões e homicídios culposos o rito estabelecido para as contravenções.

No julgamento do RE 139.168 – ES, Relator Ministro Néri da Silveira, DJ de 10 de abril de 1992, o Supremo Tribunal Federal anulou processo, ab initio, porque iniciada a ação penal por portaria do órgão jurisdicional. Salientou-se a legitimidade do Parquet para promover, privativamente, a ação penal.

O dispositivo constante do artigo 26 do Código de Processo Penal pertencia à época em que vigia na ordem jurídica a Lei 4.611/1965, que permitia a propositura da ação penal pela autoridade policial ou pelo juiz. Ou seja: quem iria julgar era o autor da ação.

Fácil é entender que não subsiste tal norma no sistema jurídico em afronta ao sistema acusatório.

V   – SISTEMA ACUSATÓRIO E A LEI DO CRIME ORGANIZADO(Lei 9.034/95)

No entanto, mesmo após a Constituição de 1988, foram editadas normas jurídicas que adotaram o sistema inquisitório. Tinha-se a figura do juiz inquisidor.  

Uma delas, o artigo 3º da Lei 9.034/1995, que dispõe sobre a utilização de meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas, cujo conceito de crime, depende de edição de lei interna pelo Congresso Nacional, à luz do princípio da legalidade.[8]

No artigo 3º daquele diploma normativa se diz que nas hipóteses do inciso III do artigo 2º(acesso a dados, documentos e informações fiscais, bancárias, financeiras e eleitorais), ocorrendo a possibilidade de violação de sigilo preservado pela Constituição ou por lei, a diligência será, na persecução criminal, realizada pessoalmente pelo juiz, adotado o rigoroso sigilo de justiça.

O juiz envia a um tribunal um ofício secreto, justificando medidas judiciais tomadas em um procedimento investigatório clandestino, que pede para que o seu ofício não seja juntado aos autos, que as partes interessadas não tenham conhecimento dele. É retroceder aos tempos da inquisição, rasgando em pedaços o princípio magno da publicidade que norteia o processo penal moderno. 

Segundo o § 2º do artigo 3º da Lei referenciada, o juiz relatará as informações colhidas e promoverá a anexação de cópias autenticadas dos documentos que tiverem relevância probatória. A lei acaba por equiparar o juiz às partes, o que não se afigura admissível no sistema judiciária vigente no País, produzindo a prova na fase de investigação.

Tal dispositivo cria uma espécie de juiz de instrução, que não existiu na legislação brasileira, num modelo obsoleto que tende a se extinguir no direito comparado.

É certo que, em 1935, VICENTE RAO apresentou projeto, em que era previsto um juizado de instrução, declarando na exposição de motivos:

¨Retira-se à polícia, por essa forma, a função, que não é sua, de interrogar o acusado, tomar o depoimento de testemunhas, enfim, colher provas sem valor legal; conservando-lhe, porém, a função investigadora, que lhe é inerente, posta em harmonia e legalizada pela co-participação do juiz, sem o que o resultado das diligências não pode e nem deve ter valor probatório.¨

O juizado de instrução, instrumento de um sistema misto(que soma aspectos do sistema inquisitório e do acusatório), não foi acolhido pela Constituição de 1988.

Saliento o voto do Ministro Carlos Britto quando disse que na referida Lei o juiz não tem opção; ele é obrigado a diligenciar.

O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADIn 1570, entendendo a ação prejudicada, em face da superveniência da Lei Complementar 105/2001, quanto aos procedimentos que incidem sobre o acesso a dados, documentos e informações bancárias e financeiras, concluiu, consoante voto do Ministro Maurício Corrêa, que a busca e apreensão de documentos relacionados ao pedido de quebra de sigilo realizados pessoalmente pelo magistrado, compromete o princípio da imparcialidade  e consequente violação ao devido processo legal.

Em sua fundamentação, o Ministro Maurício Corrêa lembrou o ilustre Juiz Federal Walter Nunes da Silva Júnior para quem ¨a psicologia judiciária logrou demonstrar que o inconveniente do juízo de instrução[9] é a vinculação, inconsciente do Juiz, às descobertas angariadas com as investigações feitas por ele, diminuindo-lhe a capacidade de enxergar com maior acuidade e isenção todas as provas pertinentes à elucidação do caso.¨

É claro, translúcido, que o artigo 3º da Lei 9.034/1995 é inconstitucional, pois o sistema acusatório puro, tendo como uma das suas características a atribuição da atividade investigatória preparatória à Polícia Judiciária e ao Ministério Público, está catalogado na Constituição da República.

Não se permite ao juiz o papel de investigador e inquisidor, sob pena de agredir-se às atribuições conferidas constitucionalmente ao Ministério Público e às Polícias Federal e Civil(artigos 129, I e VIII e § 2º; e 144, § 1º, I e IV e § 4º).

Isso porque a função investigativa é função reservada à Polícia e ao Ministério Público.

Não se pode conceber, em pleno Estado Democrático de Direito, restabelecer uma praxe medieval.

VI – SISTEMA ACUSATÓRIO E A LEI DA INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA

A Lei de Interceptação Telefônica regulamenta o disposto no artigo 5º, XII, da Constituição de 1988, que dispõe sobre a interceptação de comunicações telefônicas de qualquer natureza para prova em investigação criminal e instrução processual, de forma a depender de ordem de juiz competente da ação principal, sob segredo de justiça.

Observo que o artigo 3º da Lei 9.296/1996, na parte em que permite tal interceptação, de ofício, pelo juiz, é inconstitucional. Ora, o juiz, na fase de investigação, não pode ficar colhendo provas. Tal tarefa é da Policia ou do Ministério Público. Correta a ilação de RANGEL.[10]

Tal interceptação telefônica somente poderá dar-se de ofício, pelo juiz, durante a fase do processo judicial, de forma a harmonizar a norma infraconstitucional referenciada à Constituição.

VII  – A INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 156, I, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL

Nessa linha de entendimento é ainda inconstitucional a Lei 11.690/2008, no que toca a  redação que foi dada ao artigo 156, I, do Código de Processo Penal, quando se autoriza ao juiz determinar a produção da prova, de ofício, na fase de investigação.

A normatização constitucional afastou o juiz das funções investigatórias, de modo a preservar ao máximo a sua imparcialidade.

O dispositivo mencionado é de inconstitucionalidade manifesta mormente porque afronta ao devido processo legal.

Cabe à acusação, diante do princípio da inocência, a prova quanto à materialidade do fato(sua existência) e de sua autoria, não se impondo o ônus de demonstrar a inexistência de qualquer situação excludente da ilicitude ou mesmo da culpabilidade. Isso porque o artigo 156 do Código de Processo Penal dita que a prova da alegação incumbirá a quem o fizer.

Bem disse OLIVEIRA[11] que a redação dada pela Lei 11.690/2008 é de um retrocesso inacreditável, e também inaceitável.

Penso que estão na mesma linha de entendimento, dentre outros, TÁVORA e RODRIGUES ALENCAR.[12]

Somo ainda tal afirmação a que já disse AMORIM[13] de que o inciso I do artigo 156 do Código de Processo Penal é apenas formalmente novo em razão de estar ideologicamente comprometido com o sistema inquisitorial de processo penal. Disse ele bem que temos, repito, uma violação ao sistema acusatório, por nós adotado na Constituição de 1988.

Isso porque o juiz não tutela e nem deve tutelar a investigação. A jurisdição criminal somente se inicia, a rigor, com a apreciação da peça acusatória, do que se lê dos artigos 395 e 396 do Código de Processo Penal. O que é certo é que o juiz, como garantidor das liberdades públicas, quando defere uma prisão cautelar, quando determina uma interceptação telefônica, não estará protegendo, só, por isso, os interesses da investigação criminal. Ele estará exercendo o controle jurisdicional das restrições à liberdade, tarefa que lhe é dada pela Constituição Federal, no que diz respeito ao devido processo legal.

VIII  – CONCLUSÕES

Merece aplausos  o correto exemplo da Lei 12.403/2011, na redação que se vê ao artigo 311 do Código de Processo Penal , que impossibilita a decretação, de  ofício, da prisão preventiva, na fase de investigação, fato que somente acontecerá a requerimento prévio dos responsáveis por ela e legitimados à persecução em juízo.

Como disse NUCCI[14], ao comentar o citado artigo 311, jamais deveria o magistrado decretar de ofício a prisão preventiva. Trata-se de medida drástica de cerceamento da liberdade, razão pela qual deve haver um expresso pedido, do Parquet, como exemplo.

Sendo assim a autorização atribuída ao juiz de determinar, de ofício, a chamada produção antecipada da prova, antes de iniciada a ação penal, viola o princípio da  inércia(ne procedat iudex ex officio) que deve nortear  o magistrado, levando-o a atuar como verdadeiro inquisidor.

O artigo 3º da Lei 9.034/95, acerca do crime organizado, assim como o artigo 156, I, do Código de Processo Penal, ferem a garantia da imparcialidade do juiz, estando em confronto com o devido processo legal, vulnerando o sistema acusatório, albergado pela Constituição.

O principal atributo do juiz criminal é sua imparcialidade, que consubstancia verdadeira condição sine qua non do legítimo exercício da função jurisdicional.

Atribuir ao juiz o poder de produzir provas de ofício, na fase do inquérito policial,  deforma o duelo intelectual, pois ele não pode estar psicologicamente envolvido com uma das versões em jogo.

Ademais, o combate ao crime organizado não pode servir de pretexto para a destruição de direitos e garantias individuais.

Tal fato não pode ser ignorado diante de Convenções Internacionais assinadas pelo Brasil.

A imparcialidade do magistrado, seja subjetiva ou objetiva, é garantia constitucional a ser respeitada.

O magistrado que, na fase de investigação, manifesta de forma clara uma cognição conclusiva, em medidas como prisão temporária, prisão preventiva, interceptação telefônica, sequestro de bens, sobre a culpabilidade do investigado, tem sua imparcialidade objetiva questionada, podendo a sentença de condenação que profira ser crivada de nulidade absoluta.


[1] GOMES, Luis Flávio, in artigo extraído da Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes, 15 de fevereiro de 2010, O juiz que investiga não pode julgar(O STJ suspende a ação penal no caso Castelo de Areia).

[2] Um célebre caso enfrentado pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos, com julgamento em 1º de outubro de 1982, caso Piersack vs Bélgica, onde se firmou a ideia de que a justiça não deve simplesmente ser feita: deve também ser vista para ser feita. A esse respeito, recomenda-se consulta à sentença do Tribunal Europeu de direitos humanos de Estrasburgo, demanda n. 8.692/1979.

[3] Aqui entendeu-se que o juiz não pode exercer ambas as funções, de investigação e de julgamento.

[4] MAYA, André Machado. A imparcialidade como marco essencial da prestação jurisdicional e seus reflexos nas regras que definem competência pela prevenção do juízo, in dissertação de mestrado em Ciências Criminais, na Faculdade de Direito PUCRS, Porto Alegre, 2009, pág. 209.

[5] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O Novo papel do juiz no processo penal, in Crítica à Teoria Geral do Direito Processual Penal, Rio de Janeiro – São Paulo, Editora Renovar, 2001, pág. 15.

[6] OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal, 10ª edição, Rio de Janeiro, Lumen Iuris, 2008, pág. 259.

[7] NOGUEIRA, Paulo Lúcio. Curso completo de Processo Penal, São Paulo, Saraiva, 1987, pág. 44.

[8] A 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal concedeu habeas corpus para encerrar ação penal movida contra os fundadores da  Igreja Renascer em Cristo. A decisão pautou-se no fato de que, em 2004, o Senado ratificou a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, a Convenção de Palermo, que conceitua a organização criminosa. Promulgada pelo Decreto 5.015, de 12 de março de 2004, no entanto, a norma não entrou no Código Penal, o que impede a tipificação de crime. 

[9]Instituto presente na chamada instrução preliminar, do chamado sistema misto, antes do contraditório, já na ação penal.

[10] RANGEL, Paulo. Direito Penal, São Paulo, Atlas, 2012, pág. 58.

[11] OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de Processo Penal, São Paulo, Atlas, 2012, pág. 326.

[12] TÁVORA, Nestor; RODRIGUES ALENCAR, ROSMAR. Curso de Direito Processual Penal, Salvador, Bahia, Editora Juspodivm, 2012, pág. 41.

[13] AMORIM, Pierre Souto Maior Coutinho de. O novo art. 156 do Código de Processo Penal – um museu de grandes novidades, in Ius navigandi, artigo elaborado em outubro de 2008.

[14] NUCCI, Guilherme de Souza. Prisão de Liberdade, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2011, pág. 62.

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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