O DOLO E A COAÇÃO COMO VÍCIOS DOS NEGÓCIOS JURÍDICOS
Rogério Tadeu Romano
I – O DOLO
Já no direito romano, o dolo definia-se como o ardil ou manobra enganosa destinado a fazer incidir alguém em erro, de modo que determina uma vontade que normalmente não se teria formado(ominis callidatas, fllacia, machinatio ad cincumveniendum). O dolo era irrelevante para o ius civilis. Mas foi o pretor que o coibiu. Mas o dolo que tinha valor para o direito era o dolus malus e não a malícia usual no comércio, a astúcia que usa o comerciante e que toda pessoa medianamente avisada espera encontrar(dolus bônus). Sendo o erro, como ensinou Ebert Chamoun(Instituições de direito civil, 5ª edição, pág. 164), pode o interessado suscitar o erro se ele foi por si só suficiente para provocar a nulidade do ato jurídico, sempre, entretanto, que não foi suficiente para provocar a nulidade do negócio jurídico.
Inscrito entre os vícios de vontade, o dolo nas práticas ou manobras maliciosamente levadas a efeito por uma parte, a fim de conseguir a outra uma emissão de vontade que lhe traga proveito, ou a terceiro.
Como explicou Caio Mário da Silva Pereira(Instituições de direito civil, volume I, 14ª edição, pág. 36), a malícia humana encontra meios muitos vastos de obrar, a fim de conseguir os seus objetivos. Pode alguém proceder de maneira ativa, falseando a verdade, e se diz que procede por ação ou omissão. Mas é igualmente doloso, nos atos bilaterais, o silêncio a respeito do fato ou qualidade que a outra parte haja ignorado, a sonegação da verdade, quando, por omissão de circunstâncias alguém conduz outrem a uma declaração proveitosa e as suas conveniências, sub conditone, porém se provar que sem ela, o contrato não se teria realizado.
O mecanismo psíquico do dolo é a ação ou omissão. Tal se verifica na utilização de um processo malicioso de convencimento que produza na vítima um estado de erro ou de ignorância, determinante de uma declaração de vontade que não seria obtida de outra maneira. No dolo há uma emissão volitiva enganosa ou eivada de erro, na qual, porém, é este relegado a segundo plano, como defeito em si, uma vez que sobreleva a causa geradora do negócio jurídico, e é por isso que o procedimento doloso de uma parte leva à ineficácia do ato, ainda que atinja seus elementos não essenciais ou a motivação interna. Para Caio Mário da Silva Pereira não se pode confundir o erro vício do consentimento que somente atinge a eficácia do ato quando revestido das circunstâncias com relação ao erro gerado pela manobra do interessado, o qual é causa eficiente da anulação sob condição apenas de ser determinante do negócio.
Deve-se indagar se o dolo foi a causa determinante do ato, dolus causam dans, chamado dolo principal, que conduz o agente à declaração de vontade, fundado naquelas injunções maliciosas, como ensinou Clóvis Beviláqua(Teoria Geral, § 52). O dolo só tem o efeito de anular o negócio jurídico quando chegue a viciar e desnaturar a declaração de vontade. Há ainda o dolo acidental, dolus incidens, quando não influir diretamente na realização do ato, que se teria praticado independentemente da malícia do interessado, porém em condições para ele menos vantajosas.
Fala-se que o dolo que conduz à ineficácia do negócio é o que provém da outra parte, e não de terceiro, cujo procedimento fundamentará apenas a obrigação de indenizar o prejudicado. Mas se um dos contratantes o conheceu e dele se beneficiou, constitui motivo da anulação.
Não será considerado terceiro o representante de uma das partes, que terá agido de forma dolosa, pois, em razão desta qualidade, ele procede como se fosse o próprio representado, como esclareceu Clóvis Beviláqua, que disse que o Código Civil de 1916 fez opção pela teoria da representação voluntária e necessária, que fora consignada no Esboço trazido por Teixeira de Freitas, artigo 481.
Registre-se que o o dolo bilateral (art. 150 C.C.) pode não gerar a anulabilidade do negócio jurídico, pois prevalece o princípio de que ninguém poder valer-se da própria torpeza para auferir vantagens.
II – COAÇÃO
A coação que aqui se fala não é a violência física, que exclui completamente a vontade e impede a formação do ato jurídico, mas a violência moral(vis compulsiva), que consiste em ameaças feitas a uma pessoa para constrange-la a realizar um negócio jurídico. O coato poderia não ceder às ameaças e, se cedeu, é porque quis o ato jurídico, mas sua vontade foi perturbada na sua determinação por um motivo, a intimidação ou o terror(metus), que normalmente não existiria. A coação, como o dolo, era irrelevante no ius civile romano. Foi o pretor, em Roma, que a reprimiu. Mas não era toda forma de intimidação que tinha valor para o direito. Para que ela pudesse ser alegada, era preciso que o mal, contido na ameaça, fosse ilegítimo, como se vê do artigo 100 do Código Civil de 1916, que a ameaça se concretizasse em fatos, que fosse séria e capaz de impressionar uma pessoa dotada de uma certa firmeza; que o mal ameaçado fosse mais grave do que resultaria da realização do ato negócio jurídico e, finalmente, que entre a coação e a realização do negócio jurídico houvesse um nexo causal direto.
Em síntese, como expôs Roberto de Ruggiero(Instituições de direito civil, volume I, 3ª edição, pág. 231), das duas formas porque se pode exercer coação sobre uma pessoa, apenas interessa a violência moral ou vis compulsiva que, dirigindo-se a extorquir uma declaração, vicia a vontade sem a excluir, e não a violência física ou vis absoluta, que exclui completamente a vontade, tirando ao violentado qualquer possibilidade de querer e impedir assim a existência do próprio negócio jurídico. A violência moral, consistindo na ameaça de um mal que sucederá ao ameaçado se ele não praticar o ato, opera apenas psicologicamente, gera com o temor que se incutiu um estado de não completa liberdade na pessoa, mas não suprime a vontade, uma vez que deixa sempre a escolha entre o mal ameaçado e a declaração.
Necessário, pois, para que ocorra a coação:
- Que a ameaça seja verdadeira e séria e não apenas suspeitada, o que implica que o temor incutido seja fundado na suposição verossímil de que o mal de que se ameaçou seja na verdade praticado. Esse mal pode ser futuro;
- Que a violência seja injusta, isto é, adotada ilegitimamente, quer pela relação em que as partes estão entre si, quer pelo fim que visa;
- Que o mal de que se ameaçou seja grave ou notável.
Como ensinou Caio Mário da Silva Pereira(obra citada, pág. 365), “no caracterizar a coação, se bem que frequentemente provenha daquele a quem a declaração da vontade beneficia, admite-se que possa partir de um terceiro, sem se desfigurar como defeitodo consentimento. É, pois, diferente o comportamento do legislador quanto à violência e ao dolo, de vez que este não vicia o ato, quando partido de terceiro, senão na hipótese da ciência do beneficiado, ao passo que aquela o macula sempre. Procurando uma explicação moral para a diversificação de tratamento, alguns autores dizem que se acha no fato de ser mais difícil defender-se da violência do que do dolo, que pode ser evitado pela maior prudência e perspicácia da vítima, enquanto que geralmente não há oposição à coação. O que varia é a extensão da responsabilidade da pessoa a quem o ato jurídico vai beneficiar. Se tiver conhecimento do processo intimidativo, responde solidariamente com o coator pelas perdas e danos que sofrer a vítima, se, ao revés, o desconhece, somente o coator os suporta, podendo-se, em resumo, dizer que o defeito do ato negocial existirá sempre, mas as suas consequências patrimoniais somente repercutem no beneficiado se estiver de má-fé, já o terceiro coator, é em uma ou outra hipótese responsável pelas perdas e danos, como o autor de um ilícito”.
Não será necessário que a ameaça se dirija diretamente a pessoa do paciente. Pode este ser ameaçado, indiretamente, de um dano que atinja o seu patrimônio, ou a uma pessoa de sua família.
Que se dirá nos casos de exposição daquele que se encontre em perigo eminente. Será o caso daquele dono da embarcação que faz água que se compromete a remunerar de forma desarrozoada a quem o leve ao porto, por exemplo. Não há incidência da vis compulsiva. O favorecido não extorquiu a emissão de vontade sobre ameaça de um dano, porém aproveitou-se de um risco a que a vida ou a fazenda do agente estava exposta, para obter uma vantagem. Não realizou um processo de intimidação, mas auferiu benefício por via de um dolo de aproveitamento, que entra na composição do chamado “estado de perigo”.
III – CONSEQUÊNCIAS
Tanto o dolo como a coação como vícios de vontade levam a anulabilidade do negócio jurídico e não nulidade, algo que ocorre com relação a simulação.
Seja no negócio jurídico invalido por coação ou dolo, assim como em outras espécies de vícios, é passível a conversão por convalescença. Essa conversão verifica-se quando o negócio jurídico, que não corresponde, pode ser inválido, aos requisitos próprios de um certo tipo, preencha, entretanto, os requisitos de outro tipo, e vale como pertencente a este.
A convalescença ou sanatória é a validação de um negócio jurídico inválido em virtude de várias causas, como o decurso do tempo, a renúncia à ação, o desaparecimento da causa inicial e a ratificação ou confirmação. Já, no direito clássico, a invalidade do negócio era insanável em relação ao ius civile. Apenas o direito pretoriano, em Roma, admitia a sanatória.