1. Introdução
O presente artigo foi escrito originalmente em inglês por Miroslav Hromada, juiz tcheco, e traduzido para o português, com alterações, por Renan Araújo. Os autores se conheceram na República Tcheca em 2017, por ocasião de pesquisa comparativa realizada na Faculdade de Direito da Universidade da Boemia do Oeste. Um artigo sobre o sistema de justiça brasileiro, escrito originalmente em inglês por Araújo e traduzido para o tcheco por Hromada, foi publicado no periódico Soudce, dos magistrados tchecos, em 2018.
Brasil e República Tcheca são dois países completamente diferentes. O tamanho e a população dos dois é incomparável; eles se encontram em continentes distintos e possuem características naturais diversas. A composição de suas populações é bastante diferente, cada qual com uma história particular, além de outras influências com impactos diversos. Como resultado disso, os seus sistemas legais também variam. O que parece óbvio para os juristas de um país, levanta dúvidas para os do outro.
Mesmo assim, não é sábio ignorar a realidade estrangeira. Ela, muitas vezes, pode oferecer um melhor olhar para o nosso próprio quintal. Algumas práticas enraizadas, que parecem verdades invioláveis, podem ser desmistificadas. Muitas experiências estrangeiras podem inspirar mudanças. Ou, ao contrário, nos mostrar as nossas próprias virtudes.
2. Um panorama sobre a República Tcheca
Até 1993, o país fez parte da antiga Tchecoslováquia, que se dividiu formando a Eslováquia e a República Tcheca. Localizado na Europa Central, o pequeno país possui uma população de 10,6 milhões de habitantes e uma extensão territorial de 79.000 km2, comparável a países como Portugal e Áustria ou a estados brasileiros como Pernambuco. Por outro lado, seu PIB per capita em 2018 foi de 156.000 reais e sua taxa de desemprego de 2,2% (OECD, 2019).
A maioria dos habitantes da República Tcheca é de etnia tcheca, componente do gênero étnico dos eslavos, o mesmo dos russos. Minorias geralmente também são de etnia eslava, oriundos de nações próximas como a Eslováquia e a Ucrânia. Outras etnias envolvem a relativamente grande população de vietnamitas (que vieram em grande escala na época em que o país fazia parte do bloco comunista) e o grupo minoritário de ciganos (os roma), que são comumente discriminados e acarretaram críticas internacionais à República Tcheca nos últimos anos.
Em termos de organização governamental, a República Tcheca adota o sistema presidencialista. O poder Legislativo é encabeçado por um Parlamento bicameral, formado pela Câmara dos Deputados e pelo Senado. Assim como no Brasil, os atos do Parlamento são a fonte básica da legislação – não se adota um sistema de precedentes como fonte legislativa. Atualmente, a República Tcheca é um estado-membro da União Europeia e, por essa razão, o direito aplicado ao bloco também se impõe em seu território.
3. A educação jurídica
A formação em Direito na República Tcheca dura cinco anos e confere ao graduado o título de mestre (magistr, abreviado como Mgr. antes do nome do graduado). Somente quatro faculdades, todas públicas, oferecem tal formação: Universidade Carolíngia de Praga (fundada em 1348, atualmente com cerca de 4.000 estudantes de Direito), Universidade Masaryk de Brno (fundada em 1919, atualmente com cerca de 3.000 estudantes de Direito), Universidade Palacky de Olomouc (fundada em 1566) e Universidade da Boemia do Oeste (fundada em 1993). Apesar de gratuitas, o ingresso em tais universidades é altamente competitivo. Além disso, o aluno deve se formar no prazo máximo de cinco anos, caso contrário deverá custear a continuidade de seus estudos.
Titulações mais altas incluem o JUDr. (iuris utrisque doctor), tradicional doutoramento que envolvia a formação em direito secular e canônico, e o mais moderno PhD., doutorado voltado à pesquisa. Para o título de JUDr., que é comum de se ver antes dos nomes de magistrados e promotores tchecos mais velhos, a exigência era a escrita de uma dissertação e a aprovação em uma prova oral. Atualmente, o doutorado moderno requer três anos de pesquisa e a aprovação de uma tese original, como no resto do mundo.
É comum que estudantes trabalhem durante sua graduação, principalmente como assistentes em escritórios de advocacia. Entretanto, a prática não é obrigatória nas faculdades; o curso é focado na teoria.
Em 2017, 1.488 mestres em Direito foram formados na República Tcheca. De acordo com pesquisa de opinião realizada com os formandos, 58% pretendiam ser advogados, 15% buscavam a magistratura, 10% desejavam trabalhos administrativos em setores estatais, 4% visavam a carreira acadêmica e 3% almejavam a promotoria.
Para ingressar em uma dessas carreiras jurídicas (magistrado, promotor, advogado), é preciso ter a formação em das faculdades acima e a aprovação em um exame profissional, como se verá a seguir.
4. Admissão às carreiras jurídicas
Magistratura
Para se tornar um juiz na República Tcheca, é preciso experiência profissional de três anos, aprovação no exame de magistratura e idade mínima de 30 anos.
A experiência profissional é realizada nos tribunais, numa posição semelhante à de trainee, após o término da formação de cinco anos em Direito. O trainee passa por todos os departamentos da corte distrital (instância mais baixa) e da corte de apelação. Ele ou ela participa de audiências, produz algumas decisões simples, para os julgamentos e realiza algumas oitivas de testemunhas. Além disso, o trainee também aprofunda sua formação na Academia Judicial, órgão estatal que oferece formação e cursos para trainees, juízes e promotores. No curso, são realizados moot courts, seminários, ensino de línguas e de soft skills (habilidades relacionadas ao trato social, como inteligência emocional, comunicação, etc).
Após três anos de prática, o trainee pode realizar a prova para se tornar juiz. A prova possui um nível elevado e todas as matérias jurídicas são cobradas. Possui uma etapa escrita e uma oral e dura três dias. Após a aprovação, o trainee deverá aguardar para se tornar juiz – até que atinja a idade mínima de 30 anos e que uma vaga seja aberta, considerando que a quantidade de juízes é numerus clausus. A República Tcheca possui cerca de 3.000 juízes, um número relativamente alto para seu tamanho (cerca de 30 juízes por 100.000 habitantes). Por isso, não é comum planos pelo governo de expansão do número de vagas para juízes. Assim, os trainees, mesmo aprovados, precisam aguardar trabalhando como assistentes nos tribunais durante vários anos.
Os juízes são indicados pelo Presidente da República em sua proposta de governo. O cargo é vitalício, sendo o único limite para aposentadoria a idade de 70 anos. Como forma de garantir sua independência, um juiz não pode ser transferido de um tribunal para outro sem seu consentimento. A exoneração só é possível caso ocorra alguma quebra grave de decoro e é decidida uma corte especial através de um processo disciplinar. Essa corte é composta por três juízes, um promotor, um advogado e outros representantes de profissões jurídicas.
Promotoria
Os promotores são escolhidos através de um processo parecido com o de juízes: três anos de prática, exame de admissão e mínimo de 25 anos de idade. O Ministério Público tcheco faz parte do poder executivo, sendo os promotores são nomeados pelo Ministro da Justiça. Por fazerem parte do governo, os promotores possuem íntima ligação com a Polícia tcheca e supervisionam as investigações dos casos em que funcionaram como acusação. Há cerca de 1.300 promotores na República Tcheca.
Advocacia
Para exercer a advocacia, também é necessária a prática de três anos e a aprovação em uma prova profissional. Durante o período de prática, que deve ser realizada em um escritório de advocacia, o trainee pode exercer boa parte das atividades de um advogado, com algumas poucas exceções, como casos criminais de competência da Corte Regional (delitos mais graves e recursos).
Com a prática e a aprovação no exame, o novo advogado deve obrigatoriamente se registrar na Associação de Advogoados da República Tcheca, órgão profissional e autônomo, e pagar uma taxa anual. Não há numerus clausus de advogados na República Tcheca.
Outras profissões jurídicas
As outras profissões jurídicas que exigem prática e um exame profissional são o notário e o executor. O notário é responsável por documentos públicos, assim como no Brasil, e o executor é responsável pela execução de decisões judiciais cíveis e comerciais, sendo uma profissão jurídica relativamente nova, criada em 2001. Há também numerus clausus para notários e executores.
A regra geral é que a experiência profissional e o exame de uma carreira jurídica sejam reconhecidos em outra. Assim, ao ter três anos de prática em um escritório e aprovação no exame para advocacia, o bacharel se habilita também para ser promotor ou juiz, por exemplo. O problema é que há o numerus clausus nas vagas para as carreiras públicas. Portanto, há concursos organizados entre os interessados habilitados (que possuem experiência e foram aprovados no exame profissional) para cada vaga que é aberta. A competitividade para cada vaga pode chegar a 10 para 1.
5. O Judiciário tcheco
O Judiciário é um dos três poderes do sistema constitucional tcheco. Os juízes vinculam-se somente à lei. Por outro lado, considerando o sistema governamental de pesos e contrapesos, o presidente indica os juízes, a partir dos nomes propostos pelo Ministro da Justiça, que, por sua vez, indica os presidentes e vice-presidentes de cada corte distrital e regional (os presidentes da corte nacional e da corte constitucional são indicados pelo presidente). A Corte Constitucional, por sua vez, controla a constitucionalidade dos atos do Parlamento, que fiscaliza o Executivo.
O orçamento do Judiciário é definido pelo Parlamento e administrado pelo governo através do Ministério da Justiça, que determina quanto vai para cada tribunal. Para equilibrar, os tribunais são os responsáveis pela justiça administrativa, revisando os atos administrativos do governo. Assim, não há uma autonomia financeira do Judiciário, que é influenciado pelo governo em sua subsistência material. Os assuntos internos dos tribunais são decididos por conselhos de magistrados, mas não há uma autoridade judiciária máxima que centralize as decisões – o topo do financiamento judiciário é o Ministério da Justiça. O orçamento do Ministério da Justiça em 2017 foi de 4,48 bilhões de reais, para os quais 2,84 bilhões foram destinados ao Judiciário. As taxas pagas pelas partes ao Judiciário corresponderam somente a 10% de seu gasto.
Há também a Associação dos Juízes da República Tcheca, órgão de natureza privada e de membresia opcional. Seu papel é defender os interesses dos magistrados tchecos na mídia, no governo e no Parlamento. Apenas cerca de metade dos juízes tchecos estão associados a eles. Tal associação não possui caráter sindical, uma vez que a sindicalização é vedada aos magistrados.
O salário dos juízes é cerca de 12.300 reais, sendo 2,5 vezes maior que a média salarial do país, no início da carreira, chegando a cerca de 25.000 reais para os juízes da Corte Constitucional.
A equipe dos juízes é composta por assistentes judiciários, que possuem educação de nível médio voltada ao Direito. Seu trabalho consiste em pesquisar a jurisprudência e preparar minutas de decisões em casos processuais mais simples. A quantidade de assistentes varia conforme o nível do magistrado. Na primeira instância, cada juiz tem direito a um assistente, mas muitos trabalham sozinhos. Nos tribunais de apelação, não há assistentes. Na Corte Constitucional, os juízes têm direito a três assistentes.
Em relação à produtividade e eficiência do Judiciário tcheco, em 2016, a duração média de um processo civil foi de 344 dias (mediana: 197 dias). No total, 363.971 processos foram julgados na primeira instância (nível distrital) naquele ano, ou seja, cerca de 263 processos por juiz. A taxa de recursos contra as decisões do primeiro grau tcheco é de 5,31%.
Quanto aos processos criminais, a duração média de um julgamento, em 2016, foi de 196 dias (mediana: 92 dias) na primeira instância. Um total de 82.670 processos criminais, ou 180 por juiz, foram julgados. A taxa de recursos foi de 24,63% nesse ano.
Organização judiciária
Há 26 tribunais distritais, 8 tribunais regionais e 2 tribunais superiores, além da Corte Constitucional, localizada na cidade de Brno.
Os tribunais distritais são a primeira instância e os tribunais regionais são a segunda da maioria dos casos. Suas jurisdições praticamente coincidem com a organização administrativa do governo tcheco, variando bastante em tamanho: o menor tribunal distrital, na cidade de Rokycany, possui 7 juízes para 48.000 habitantes (1 para 6.857), enquanto o maior, em Ostrava, possui 83 juízes para 300.000 habitantes (1 para 3.614).
Os tribunais regionais também possuem competência originária para casos mais sérios ou especializados previstos legalmente, tanto no âmbito civil como penal. Nessa hipótese, os recursos são direcionados aos tribunais superiores em Praga e Olomouc. A Corte Constitucional, no topo do sistema judiciário, é competente exclusivamente para remédios constitucionais excepcionais.
Além disso, o judiciário tcheco também abrange a justiça administrativa dos atos do governo. A primeira instância é localizada nos tribunais regionais e é composta por colegiados especializados. A mais alta instância é o Superior Tribunal Administrativo, em Brno.
O Ministério Público
O Ministério Público é organizado de forma semelhante à organização judiciária. Entretanto, diferentemente dos juízes, que possuem autonomia e independência funcionais, os promotores tchecos possuem uma organização hierárquica e são subordinados às ordens dos promotores de instâncias superiores.
Corte Constitucional
A Corte Constitucional separa-se da organização judiciária normal. O controle constitucional por ela exercido pode ser tanto abstrato (restrição a alguma ação ou disposição por ser ela contraditória com a constituição) quanto específico (julgamento sobre os direitos constitucionais em um certo caso).
Ela é composta por 15 juízes indicados pelo presidente, com a anuência do Senado, com mandato de 10 anos. A reputação da Corte Constitucional é positiva e chegar ao cargo de juiz dela é considerada a maior conquista que um jurista pode adquirir no país.
6. O Direito Civil tcheco e seu processo
Na República Tcheca, o processo civil é dividido em dois grandes ramos: contestado e não contestado. A principal fonte de direito material privado é Código Civil de 2012 (Lei nº 89/2012 Sb – qualquer legislação tcheca pode ser acessada, no original, neste link), inspirado na legislação de ordenamentos como o da Áustria, da Suíça e do Quebec, no Canadá.
No processo civil contestado, tratam-se os temas de disputas entre particulares, sendo iniciado somente na hipótese em que uma pessoa judicializa uma ação contra outra. Algumas das principais matérias tratadas dentro desse ramo são dívidas, disputas trabalhistas e direito proprietário. A principal norma é o Código de Processo Civil de 1963 que, apesar de ter sido reformado diversas vezes, encontra-se defasado e em breve dará lugar a um novo, com inspirações, principalmente, no processo civil austríaco.
No processo civil não contestado, o Estado interfere na esfera privada. Cabem nesse ramo matérias como direito dos menores, direito sucessório, custódias, limitação da capacidade legal, adoção, violência doméstica, dentre outros. O processo é iniciado sob a tutela do Ministério Público. Uma lei específica trata desses casos, a Lei de Procedimentos Especiais (Lei nº 292/2003 Sb), e o Código Civil é utilizado subsidiariamente.
Na primeira instância, a regra é que um juiz seja responsável pelo julgamento. Apenas em casos específicos, como disputas trabalhistas e questões relativas à propriedade intelectual industrial, um colegiado formado por um juiz togado e dois juízes leigos é o responsável pelo julgamento. Além disso, via de regra a competência inicial é das cortes distritais, mas em tais casos específicos (bem como os de direito empresarial), a competência é das cortes regionais.
No âmbito civil, não há uma obrigação geral para que os litigantes sejam assistidos por advogados, com exceção dos casos que chegam à Corte Constitucional e ao Tribunal Superior. Todavia, caso as prefiram, podem contratar advogados para processos em quaisquer instâncias. Os litigantes que não têm condições podem requerer um advogado pago pelo tribunal.
O processo civil segue um rito semelhante ao brasileiro. É iniciado com a judicialização da ação, quando é dada a oportunidade ao réu de resposta. É então agendada uma audiência presencial (a não ser que as partes entrem em acordo antes da audiência). O término da audiência é o limite para apresentação de alegações e provas. Em seguida, é feito o julgamento. Apelações só podem ser interpostas se o mérito da questão tiver valor superior a 10.000 coroas tchecas (cerca de 1.700 reais).
O sistema legal tcheco reconhece a possibilidade de resolução de conflitos extrajudicial, como a mediação. Há diversos advogados especialmente treinados para tal área. A princípio, um acordo de mediação não possui o mesmo valor de uma decisão judicial, mas as partes podem requerer que tal acordo seja balizado pelo Judiciário para que possua valor decisório.
7. O Direito Penal tcheco e seu processo
As principais fontes em matéria penal e processual penal são o Código Penal de 2009 e o Código Processual Penal de 1961. O Direito Europeu também possui certa importância nessa matéria. Por exemplo, um cidadão tcheco pode ser preso por um mandado de país europeu e levado para julgamento em outro estado membro da União Europeia.
Na República Tcheca, a responsabilidade penal começa aos 15 anos. Para infratores menores que 15, a legislação que se aplica é a Lei de Justiça Juvenil (Lei nº 218/2003 Sb). A responsabilidade penal de pessoas jurídicas é regulada por lei específica, a Lei nº 418/2011 Sb.
Entre janeiro e novembro de 2016, houve 204.040 crimes registrados pela polícia da República Tcheca. Um total de 101.308 pessoas foram denunciadas pelo Ministério Público (16.271 eram mulheres). O tipo de delito mais comum foi fraudes em geral (crédito, seguro, falta de pagamento, falsificação de dinheiro). Outros tipos de delitos comuns são os relacionados a drogas e ofensas de trânsito. Nesse período, houve somente 127 homicídios.
O processo penal tcheco só pode ser iniciado por um promotor. O Ministério Público, como parte do Executivo, supervisiona os trabalhos da polícia e, quando achar conveniente, apresenta a denúncia. As cortes distritais são geralmente a primeira instância, tratando dos delitos mais simples. Os delitos mais graves (homicídio, tráfico de pessoas, crimes financeiros de grande monta, etc) são de competência originária das cortes regionais. Os réus só são obrigados a constituírem advogados no caso de estarem em prisão preventiva ou caso respondam a delitos com pena máxima superior a cinco anos de prisão. Caso não tenha condições de pagar um advogado particular, o tribunal contrata um.