DEFESA DOS DIREITOS SOCIAIS
PAULO AFONSO BRUM VAZ (Doutor em Direito Público e Desembargador Federal)
Em cada crise econômica a ameaçar o Estado capitalista, com vertentes ou recaídas sociais, também chamado eufemisticamente "capitalismo social", que hoje impera no mundo, assiste-se a movimentos dos monetaristas de plantão, encaminhando reformas pontuais que, digamos assim, comendo o mingau pelas beiradas, são ávida e impensadamente chanceladas pelos comprometidos (ideologicamente) parlamentos, compostos por elites políticas cooptadas pelo ideário do neoliberalismo e descompromissadas com a redução das desigualdades sociais (objetivo do Estado de Direito Social Democrático – assim constou da nossa Constituição – ainda em vigor).
A Constituição cidadã de Ulisses Guimarães, festejada porque consolidava a cogência dos direitos das minorias (repercutindo suas vozes), passou a ser um problema. A ideia de uma Constituição contramajoritária (Rosanvallon) causa agora arrepio social. Foi um erro empoderar negros, mulheres, diferentes de gênero e pobres! Vamos cortar-lhes as asinhas!
Todo o discurso de Mauro Cappelletti acerca do alargamento das vias de acesso à justiça (formal e materialmente), ondas seguidas à risca no final do século passado, tende a se esboroar no próprio fechamento da Justiça e recrudescimento dos direitos e garantias fundamentais dos litigantes (que ainda estão na Constituição, ao que se sabe). A judicialização dos direitos fundamentais sociais é agora demonizada, e nenhuma vantagem, pelo menos que mereça ser cotada estatisticamente, trouxe à concretização de tais direitos.
A judicialização da vida social, provocada pela crise da democracia representativa, devido a problemas estruturais da própria Justiça, precisa ser freada, mesmo quando as instâncias administrativas e as políticas públicas, paradoxalmente, ficam cada vez mais intransponíveis, limitadoras e deficitárias. Embora a descoletivação dos direitos sociais seja um problema sério a ser solvido, não é tempo ainda de se afirmar que a densidade democrática, que era medida pelo alargamento das vias de acesso à justiça, foi longe de mais. Temos ainda muita gente que não consegue chegar ao Poder Judiciário.
Em escala de progressão geométrica, vai a hegemonia do mercado (a mão invisível) solapando direitos sociais conquistados a ferro e fogo nas lutas das classes trabalhadoras, ao longo do século passado.
A redução da dívida pública virou a panacéia de solução para todas as crises, o elixir paregórico que a todos os males cura, mesmo quando não têm, ao menos direta e definitivamente, muita relação com a crise. Suprimiram-se direitos trabalhistas e a economia não reagiu, mas o desemprego aumentou.
A solução, apontada pelos organismos internacionais (FMI, Banco Mundial etc) e países ricos do hemisfério norte, passa sempre pelo desmonte do social, pelo aperto dos cintos das classes trabalhadoras (para quem salvou o emprego e não está em situação de desemprego!) e muito pouco mesmo pelo sacrifício que os setores que mais se beneficiam com o modelo capitalista e responsáveis diretos pela crise. A estes, as vantagens do capitalismo e ao Welfare State, as externalidades negativas. Melhor dizendo, à Providência Divina. Não se aceita mais paternalismo, coitadismo etc. Afinal, não há bens de consumo e serviços suficientes para todos no mundo, apenas para uns poucos mais ricos, e é deles que devemos cuidar.
O Brasil, desde os anos 90, vem aprovando emendas à sua Constituição para limitar direitos sociais e projeta intensificar essa tendência (vide EC n. 06/19). No poder governos de ultradireita, a meta é sempre reduzir o âmbito dos direitos sociais e as vias de acesso a eles. Os serviços públicos, exemplificando, são o alvo preferido. Ao invés de se pensar em melhorar a sua eficiência e aparelhamento e no combate efetivo aos altos salários e proventos de aposentadoria, prefere-se apostar no sucateamento e aviltamento das escassas vantagens que conquistaram. Reduzem-lhes direitos que não passam de prerrogativas compensatórias pelas limitações que as carreiras impõem. Claro está que a demonização do servidor público, embora o Estado precise desinflar, será suportada pelos extratos mais pobres da população, os grandes usuários dos serviços públicos, rumo à precarização.
Já por último, não mais se faz esquartejamento do Estado do Bem-Estar Social a cortes lentos, em doses homeopáticas, mas num ritmo constante e numa velocidade alucinante. O Estado Social, o Constitucionalismo, a política e, por conseguinte, a cidadania, cedem espaço a uma racionalidade econômica neoliberal que desafia o Estado Social Democrático de Direito e os ideais republicanos de erradicação da pobreza e redução das desigualdades sociais. A história já mostrou que esse não é o melhor caminho, mas insistimos em não consultá-la.
Países periféricos do terceiro mundo, do capitalismo e do constitucionalismo atrasados, dependem do direito e do constitucionalismo para evitar o caos social, a disseminação da pobreza e da precariedade, que podem levar ao colapso do próprio capitalismo. Sem o direito, o capitalismo, de bom grado, não aceita transigir e conferir algumas migalhas aos trabalhadores, embora ele próprio sofra com a pobreza e o imobilismo econômico dos extratos sociais menos favorecidos.
Embora a análise econômica do direito seja indispensável, a lógica da economia não pode se sobrepor à do direito (“direito e não direito”), como querem os economistas, mas apenas, por acoplamento estrutural mediado pela Constituição complementá-la. A economia e seu código binário (“ter e não ter”, pagamento e não pagamento) não devem suplantar o direito, ao menos no plano executivo e das decisões judiciais. Cumpre ao Legislativo, maior destinatário das inflexões de custeio de direitos sociais, sopesar a escassez de recursos antes de adotar uma política recessiva esgotando as possibilidades tributárias, coisa que no Brasil nunca saiu do papel.
Em última análise, com esta breve peroração, está-se a apostar em um equilíbrio entre o premente crescimento econômico e a manutenção do nível de bem-estar social razoável a cargo do Estado. Um modelo de social-democracia autêntico, mesclando liberalismo onde ele é necessário e socialismo onde ele é indispensável.
Se o Estado Social não pode ser mais do que pode ser, o capitalismo também não está obrigado a desumanizar-se, e podem assim conviver em harmonia!