DESCARTANDO A CONSTITUIÇÃO

Em defesa do positivismo constitucional

03/05/2019 às 01:13
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Hoje, a luta não é pela efetividade constitucional, pelo melhor cumprimento da Constituição de 1988, mas sim e, sobretudo, pela existência da Carta Política.

A CF/88 não é somente uma Constituição de direitos e de deveres, no sentido técnico da limitação do Poder Político, porque, ainda que também seja isso, é uma Carta Política em que se avolumaram princípios e preceitos de humanização a partir dos direitos de cidadania, da emancipação mediante ação política direta e com a libertação social por meio do conhecimento, bem como com o aprofundamento da democracia a partir das garantias de descentralização e desconcentração do poder.
Ao contrário disso, com movimentos só aparentemente sociais ou populares, desde 2013 (véspera da eleição), os golpes mais baixos da política nacional vem sendo postos nas ruas. A partir de então, foi impossível uma resistência democrática que se opusesse ao blecaute econômico (evasão e sonegação) e ao lastro fascista que só tinha uma cara juvenil. Flertamos com o fascismo e o (es)colhemos em 2016 e em 2018.
 Como parte de um projeto neoliberal, regressivo nos padrões civilizatórios, o desmonte da educação pública tem início com a recusa em se aplicar o que previa a Constituição. O marco dessa visão mercadológica e desumana data da década de 1990, porém, de 2016 a 2019, já cortamos 56% (mais da metade) em investimentos na área da educação . Talvez 2018 se explique por causa disso.
Em todo caso, o fato é que, além das inomináveis consequências sociais e culturais para o povo, ainda é preciso ressaltar a perda da autonomia universitária, a seleção ideológica dos reitores eleitos nas universidades e que não tomam posse porque desagradam o governo. Todavia, mais do que isso, o aprofundamento da descrença na inteligência nacional, o reviver do chamado “complexo de vira-latas”, embute o mal maior: o apego ao desatino diante da realidade. Quando os principais cientistas do país dizem que vivemos em non sense, um abestalhamento global, não é para se acreditar ?
 A redução de mais 30% (trinta!!) nos investimentos nas universidades e nos institutos federais, como uma pá de cal, irá aniquilar os centros produtores de conhecimento e de abalizamento científico. É óbvio que retroagiremos décadas em termos de conhecimento crítico, inovador, propriamente científico – figurativamente, estamos sendo condenados a regredir (da química) à alquimia.
 Em uma só tacada, dissolvemos o art. 207 da CF/88 e todo o capítulo que definiu a posição do Estado Cientificista no bojo democrático da Carta Política . Depois que o Estado Laico (art. 19) fechou a estrutura constitucional da soberania popular, da cidadania, da democracia e dos direitos humanos, com ênfase libertária e emancipatória, o constituinte construiu um respaldo público aos valores iluministas. Constitucionalizamos o vínculo ao conhecimento capaz de libertar das trevas da ignorância acumulada, e o fizemos a partir do artigo 218 da CF/88.
CAPÍTULO IV
DA CIÊNCIA, TECNOLOGIA E INOVAÇÃO
(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 85, de 2015)
Art. 218. O Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa, a capacitação científica e tecnológica e a inovação.
§ 1º A pesquisa científica básica e tecnológica receberá tratamento prioritário do Estado, tendo em vista o bem público e o progresso da ciência, tecnologia e inovação.
§ 2º A pesquisa tecnológica voltar-se-á preponderantemente para a solução dos problemas brasileiros e para o desenvolvimento do sistema produtivo nacional e regional.
§ 3º O Estado apoiará a formação de recursos humanos nas áreas de ciência, pesquisa, tecnologia e inovação, inclusive por meio do apoio às atividades de extensão tecnológica, e concederá aos que delas se ocupem meios e condições especiais de trabalho.
§ 4º A lei apoiará e estimulará as empresas que invistam em pesquisa, criação de tecnologia adequada ao País, formação e aperfeiçoamento de seus recursos humanos e que pratiquem sistemas de remuneração que assegurem ao empregado, desvinculada do salário, participação nos ganhos econômicos resultantes da produtividade de seu trabalho.
§ 5º É facultado aos Estados e ao Distrito Federal vincular parcela de sua receita orçamentária a entidades públicas de fomento ao ensino e à pesquisa científica e tecnológica.
        § 6º O Estado, na execução das atividades previstas no caput , estimulará a articulação entre entes, tanto públicos quanto privados, nas diversas esferas de governo.
        § 7º O Estado promoverá e incentivará a atuação no exterior das instituições públicas de ciência, tecnologia e inovação, com vistas à execução das atividades previstas no caput.
Art. 219. O mercado interno integra o patrimônio nacional e será incentivado de modo a viabilizar o desenvolvimento cultural e sócio-econômico, o bem-estar da população e a autonomia tecnológica do País, nos termos de lei federal.
Parágrafo único. O Estado estimulará a formação e o fortalecimento da inovação nas empresas, bem como nos demais entes, públicos ou privados, a constituição e a manutenção de parques e polos tecnológicos e de demais ambientes promotores da inovação, a atuação dos inventores independentes e a criação, absorção, difusão e transferência de tecnologia.
        Art. 219-A. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão firmar instrumentos de cooperação com órgãos e entidades públicos e com entidades privadas, inclusive para o compartilhamento de recursos humanos especializados e capacidade instalada, para a execução de projetos de pesquisa, de desenvolvimento científico e tecnológico e de inovação, mediante contrapartida financeira ou não financeira assumida pelo ente beneficiário, na forma da lei.
        Art. 219-B. O Sistema Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação (SNCTI) será organizado em regime de colaboração entre entes, tanto públicos quanto privados, com vistas a promover o desenvolvimento científico e tecnológico e a inovação. 
        § 1º Lei federal disporá sobre as normas gerais do SNCTI.
§ 2º Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios legislarão concorrentemente sobre suas peculiaridades.

Observe-se que, trata-se de um capítulo destinado à fixação do conhecimento crítico, inclusive porque não há ciência sem crítica (inovação), apenas reprodução, inculcação, doutrinação, aparelhamento, extensão, anulação da massa crítica (pensante), adestramento ao invés de liberdade para ensinar e aprender (art. 206 da CF/88).
Sem a solidariedade – fraternidade nunca posta em ação, desde o modelo economicista de FHC na década de 1990 –, agora realmente nos mergulham na inanição moral e intelectual.
Com toda sorte de cerceamento à inteligência produtiva e provocativa nos centros científicos e acadêmicos nacionais, ao desmantelar os pressupostos do Estado Cientificista, no mínimo, estaremos condenados a viver sob os desatinos mais sombrios do século XIX: desovados na era da pré-Revolução Industrial.
Por isso tudo, obviamente, devemos acirrar a luta em defesa do positivismo constitucional (sobrevivência da legalidade da Carta Política), para mais à frente cerrarmos fileiras pela sua plena execução: legitimação dos valores humanos constitucionalizados.
Vinício Carrilho Martinez (Dr.)
Professor Associado da Universidade Federal de São Carlos – PPGCTS/DEd

 

Sobre o autor
Vinício Carrilho Martinez

Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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