OS EFETOS DA EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE SOBRE OS CRIMES PRATICADOS CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA

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Tomando-se por base inicialmente a aplicação da Lei nº 8.137/90, que Define crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo, assim como a possibilidade de extinção de créditos tributários pelo próprio pagamento das obrigações

OS EFETOS DA EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE SOBRE OS CRIMES PRATICADOS CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA

 

 

1 Manuella Maria Carneiro Pires, 2 Henrique John Pereira Neves

 

1 Centro Universitário Joaquim Nabuco, discente do curso de Direito

2 Centro Universitário Joaquim Nabuco, docente do curso de Direito

 

1,2 Centro Universitário Joaquim Nabuco. Avenida Guararapes, R. Padre Euclídes Jardim, 233 - Santo Antônio, Recife - PE, 50010-460

 

RESUMO – Tomando-se por base inicialmente a aplicação da Lei nº 8.137/90, que Define crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo, e dá outras providências, assim como a possibilidade de extinção de créditos tributários pelo próprio pagamento das obrigações tributárias principais e acessórias, pode-se avaliar se com o pagamento das devidas obrigações por parte do contribuinte devedor, há a extinção da punibilidade por perda do objeto punitivo, levando à conclusão e entendimento do próprio STJ sobre a matéria em comenta.

 

Palavras-Chave: Extinção Punitiva; Fim da Relação Tributária; Extinção do Crédito Tributário

 

1.      INTRODUÇÃO

 

Consoantes os ensinamentos de Alexandre (2018), o Direito Tributário integra o ramo do direito público, posto que mantém observância ao princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado e ao princípio da indisponibilidade do interesse público, isto é, aos princípios que constituem o regime jurídico de direito público. Apesar dos vários ramos jurídicos existentes, cada um dos segmentos não devem ser vislumbrados e aplicados no mundo jurídico de forma apartada e estanque. Vários são os conceitos e definições, por exemplo, do Direito Civil, que podem e devem ser utilizados para esclarecer determinada celeuma tributária. Portanto, de igual forma, vê-se a ligação entre o Direito Tributário e o Direito Penal, notadamente quando em exame e aplicação da Lei nº. 8.137/90, que no decorrer de seu texto elenca os crimes contra a ordem tributária praticados por particulares e funcionários públicos. 

Objetivando precipuamente arrecadar tributos, a Lei nº. 10.684/03 estabelece em seu art. 9º, § 2º, a extinção da punibilidade, ou seja, a vedação do Estado de aplicar sanções nos casos em que o sujeito ativo proceda pelo pagamento integral dos débitos tributários, inclusive acessórios, a qualquer tempo, segundo atual posicionamento do Superior Tribunal de Justiça.  

Ao normatizar a modalidade de extinção em comento, o legiferante acabou por positivar a total despenalização de referidos delitos. Portanto, este estudo teve como objetivo verificar se com o advento do regramento disposto no § 2º do art. 9º da Lei nº. 10.684/2003, houve ou não uma espécie de afrouxamento punitivo dos Crimes contra a Ordem Tributária, já que praticados, na maioria, por indivíduos de classes sociais mais abastadas.

Buscando elucidar a questão supracitada, segui-se, nos tópicos deste estudo, à análise da Lei nº. 8.137/90, assim como ao exame se a extinção da punibilidade instituída pela Lei nº. 10.684/03 afastou a finalidade punitiva e repressiva das penas aplicáveis aos crimes praticados contra a Ordem Tributária; os efeitos da vitimização difusa em razão da prática dos delitos tributários, além da averiguação das consequências jurídicas decorrentes da instituição da extinção da punibilidade pelo pagamento integral dos débitos tributários.

 

2.                  A LEI Nº 8.137/90 E A EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE PREVISTA NO § 2º DO ART. 9º, DA LEI Nº 10.684/03  

 

Tratando-se da análise da extinção da punibilidade, prevista no § 2º do art. 9º da Lei nº 10.684/2003, também denominada Refis II, em alusão à Lei nº. 9.964/00 ou Refis I, que instituiu o Programa de Recuperação Fiscal, deve-se primeiramente abordar a dicotomia existente entre alguns doutrinadores do Direito Tributário acerca da existência ou não de um Direito Tributário Penal.

Entre os doutrinadores do Direito Tributário mantém-se divergência sobre, se de fato, há ou não um Direito Tributário Penal ou Direito Penal Tributário. Enquanto aquele trata das infrações à legislação tributária em sua acepção ampla, havendo a cominação de punições administrativas, analisadas sob os ditames e princípios do Direito Tributário, este afirma que a instituição de crimes tributários deve ocorrer apenas mediante lei, sendo, portanto, analisados somente sob a ótica dos regramentos e princípios do Direito Penal. Diante de referida oposição, no presente trabalho faz-se acepção aos ensinamentos de Harada (2017), que detecta pontos positivos e negativos em ambas correntes e julga ser mais coerente e eficaz, a utilização conjunta de tais preceitos.

Sopesando o posicionamento supracitado, a hermenêutica tem enumerado os seguintes métodos para interpretação das normas jurídicas: gramatical ou filológica, histórica, sociológica, teleológica e sistemática. Atendo-se a técnica sistemática, no qual apregoa-se a interpretação da norma valendo-se de todo o sistema normativo vigente que a circunda, vislumbra-se razão do doutrinador Kiyoshi Harada ao defender a utilização conjunta dos preceitos de cada corrente. Consoante os ensinamentos de Soares (2010), a interpretação sistemática consiste em considerar todo o ordenamento jurídico a que determinada norma insere-se, correlacionando-a também às normas alienígenas, ou seja, estrangeiras.

Sabbag (2017), corroborando, assegura existir forte relação entre o Direito Tributário e o Direito Penal, especialmente no que se refere à interpretação dos crimes tributários, das infrações fiscais e na aplicação das penalidades.

Partindo para a elucidação dos aspectos penais, de forma objetiva, Estefam (2016) resume as três teorias sobre a finalidade da pena, em ordem: afirma que a pena possui apenas caráter punitivo, sendo uma retribuição ao mal causado (Teoria Absoluta); que possui, por outro lado, aspecto meramente preventivo, isto é, com efeito intimidativo (Teoria Relativa); e Teoria Mista, no qual a pena detém em si ambas as acepções das demais teorias. Consoante as lições de Greco (2017), a teoria adotada pelo Código Penal brasileiro em seu art. 59, refere-se à Teoria Mista, pois a pena reúne cumulativamente o aspecto punitivo e intimidatório, designando ao juiz, quando efetuá-la, verificar se esta é suficiente para reprovação e intimidação do autor do ilícito, o sujeito ativo.   

Em contrapartida, o doutrinador tributário, Harada (2017), discorrendo sobre as regras e princípios do Direito Penal Tributário, deixa assente que a finalidade de mencionadas normas é compelir o contribuinte a realizar o pagamento devido do tributo, e não retirá-lo do convívio social. 

Os crimes contra a ordem tributária, praticados através de ações comissivas ou omissivas, previstos no Capítulo I da Lei nº. 8.137/90, possuem como bem jurídico a ser tutelado o erário público, estipulando penalidades que compreende desde detenção à reclusão (2 a 8 anos), afora multa. Há também previsão de crimes contra a Ordem Tributária no Código Penal, em seus arts.168-A, 334 e 337-A. Mister se faz ressaltar que o processamento na seara penal não afasta a aplicação das sanções em âmbito administrativo. Após esse breve relato, parte-se para a Lei objeto da presente pesquisa, isto é, a Lei nº. 10.684/03, que passou a vigir na data de 31 de maio de 2003. Embora com 15 (quinze) anos de vigência, ainda existem controvérsias pontuais, principalmente no que se refere ao disposto no § 2º do art. 9º, que prevê o seguinte: “§ 2o Extingue-se a punibilidade dos crimes referidos neste artigo quando a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios (BRASIL, 2003)”.

O Refis I ou Lei nº 9.964/00, foi um programa de parcelamento dos débitos tributários, que estabelecia a suspensão da pretensão punitiva assim como a extinção da punibilidade, caso a inclusão no Refis ou o pagamento integral do débito, respectivamente, se desse antes do recebimento da denúncia criminal. O Refis II, além de renovar o parcelamento dos débitos tributários, também prevê a extinção da punibilidade com o pagamento integral dos débitos tributários, inclusive os acessórios. O legislador não deixou assente em qual momento dever-se-ia realizar referido pagamento, e após algumas modificações de posicionamento, o atual, adotado pelo Superior Tribunal de Justiça em análise ao HC 362.478/SP, DJe 20/09/2017, é de que a quitação pode ser efetuada a qualquer momento, até mesmo, salienta-se, depois do trânsito em julgado. Resumidamente, Paulsen ensina: “antes ou depois do recebimento da denúncia, antes ou após a condenação, antes ou após o trânsito em julgado, enfim, a qualquer tempo, o pagamento integral tem efeito extintivo da punibilidade (PAULSEN, 2017, p. 532)”.

De acordo com Estefam (2016), o direito de punir do Estado através de sanções, ou seja, a punibilidade, emerge a partir do instante em que ocorre a prática do crime. Por meio da redação do art. 107 do Código Penal, o legiferante atribuiu algumas situações, que caso identificadas e atestadas, culminaria na extinção da punibilidade, mais claramente, na impossibilidade do Estado impor penalidades ao autor do delito.   

Realizando uma análise paralela entre as modalidades de extinção da punibilidade, prevista no art. 107 do Código Penal e a extinção da punibilidade pela prática dos crimes contra a ordem tributária, vê-se que a primeira ocorre nas seguintes situações, in verbis:

I – pela morte do agente;

II – pela anistia, graça ou indulto;

III – pela retroatividade de lei que não mais considera o fato criminoso;

IV – pela prescrição, decadência ou perempção;

V – pela renúncia ao direito de queixa ou pelo perdão aceito, nos crimes de ação privada;

VI – pela retratação do agente, nos casos em que a lei permite;

IX – pelo perdão judicial, nos casos previstos em lei (BRASIL, 1940).

 

Depreende-se que as hipóteses estabelecidas pelo artigo retro, em rol exemplificativo, em nada assemelha-se à extinção objeto desta pesquisa. Vê-se que a extinção da punibilidade instituída pelo § 2º do art. 9º da Lei nº. 10.684/2003, assimila-se com mais profundidade ao arrependimento posterior disposto no art. 16 do Código Penal, haja vista nos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça, como é o caso, reparado o dano ou restituída a coisa, isto é, realizando-se o pagamento integral do débito devido, até o recebimento da denúncia ou da queixa, - no hipótese em comento proceder-se-á mediante denúncia -, a pena será reduzida de um a dois terços, todavia para os agentes dos crimes tributários dar-se-á a extinção da punibilidade. Como bem afirma Oliveira (2016) nos crimes contra a ordem tributária, a reparação do dano extingue a punibilidade do agente, enquanto que nos crimes comuns incide na redução da pena ou em atenuação.

Apesar do arrependimento posterior, previsto no art. 16 do regramento penal não ser direcionado aos crimes descritos na Lei nº. 8.137/90, tendo em vista a aplicação do instituto disposto no art. 9º, § 2º da Lei nº. 10.684/2003 ser endereçado aos crimes aqui tratados, faz-se salutar o enfrentamento para fins de verificação da observância ao princípio da isonomia, previsto no caput do art. 5º da Constituição Federal de 1988, em que se professa, o seguinte: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes (BRASIL, 1988)”.

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Conforme pesquisa realizada pelo Datafolha[1] em 26/06/2017, 92% da população adulta brasileira opina no sentido de que o Judiciário não trata de forma isonômica os cidadãos que auferem rendas díspares (ricos e pobres), sintetizando: “A percepção de que a Justiça brasileira trata melhor os mais ricos do que os mais pobres é majoritária em todas as variáveis sociodemográficas”.

Os tipos penais tributários descritos nos arts. 1º e 2º da Lei nº. 8.137/90, são endereçados, em sua maioria, àqueles que auferem renda passível de fiscalização tributária, detentores de bens e indivíduos com atuação empresarial, logo, podendo ser definidos como crimes de colarinho branco. Pois bem, diante disso, vê-se que o legislador ao instituir a extinção da punibilidade através do pagamento integral, ressalta-se, a qualquer tempo, conforme entendimento do STJ, optou pela completa e total despenalização desses tipos. Seria uma espécie de infringência ao princípio da isonomia? Oliveira (2016) posiciona-se: “Esse privilégio concedido à criminalidade de colarinho-branco possibilita a impunidade dos mais favorecidos economicamente, não obstante seus crimes causarem muito maior impacto à sociedade (OLIVEIRA, 2016, p. 115)”.

3.                  A MORALIDADE ADMINISTRATIVA E A VITIMIZAÇÃO DIFUSA RESULTANTE DA PRÁTICA DE CRIMES CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA

 

Para a prática do crime de sonegação fiscal, disposto nos arts. 1º e 2º da Lei nº 8.137/90, não é suficiente para a punição do agente em esfera criminal a efetuação da supressão, não pagamento; ou da redução, pagamento fracionário dos tributos, contribuições sociais e acessórios. Cumulativamente, o sujeito ativo do tipo penal deve agir com dolo, isto é, desejando a ocorrência do resultado ou assumindo o risco de produzi-lo, devendo para isso praticar alguma conduta fraudulenta disposta nos incisos dos artigos supracitados (GONÇALVES, 2017). Consoante os ensinamentos de Mazza (2018), inexiste a modalidade culposa nos crimes de sonegação fiscal, exigindo-se, desse modo, o dolo do agente para a sua ocorrência. Complementa o autor que a falta de pagamento, por exemplo, de um tributo de forma culposa, isto é, ausente o objetivo de fraudar o fisco, não ensejará na prática do crime descrito. 

Logo, conclui-se que o elemento subjetivo da conduta, dolo, é requisito essencial para a prática do crime de sonegação Contra a Ordem Tributária, inadmitida, por derradeiro a modalidade culposa. Frise-se, o contribuinte que detém o real intuito de burlar o Fisco pratica crime, enquanto que a ausência de pagamento ou o pagamento fracionado do tributo, contribuições sociais e acessórios, sem a presença do dolo consistirá no cometimento, apenas, de infração tributária.

O Estado, com o fito de manter-se e oferecer os serviços à sociedade, deverá dispender capital, provenientes da arrecadação de recursos financeiros. Segundo Cassone (2018), a obtenção pelo Estado de recursos necessários à efetivação das políticas públicas dá-se de duas formas: através das receitas originárias, emanadas dos bens do Estado; e das receitas derivadas, advindas dos contribuintes, ou seja, particulares. A tributação, de acordo com Paulsen (2017) é imprescindível a qualquer Estado, seja ele democrático ou não, e deverá ocorrer de modo equilibrado, atentando-se para as garantias e direitos dos contribuintes, evitando-se onerá-los em demasia. O citado autor, ao tratar da composição do orçamento no Brasil, alude sobre os tributos que mais contribuem para a arrecadação de recursos - do maior para o menor - contribuições especiais, criadas, majoritariamente, com finalidade específica e direcionadas a alguns contribuintes; impostos, tributos não vinculados, no qual o Estado não possui obrigação contraprestacional; e as taxas, tributos vinculados, que incidem na contraprestação Estatal. 

Em se tratando do Direito Tributário Penal, entende-se que não houve o afastamento de um dos preceitos norteadores das normas tributárias: o arrecadatório. Pois bem, sobre o assunto Oliveira (2016) afirmar que: “O Direito Penal Tributário deixa de ter como fim precípuo a proteção de um bem fundamental constitucionalmente protegido e passa a ser indevidamente empregado como meio de cobrança do crédito tributário (OLIVEIRA, 2016, p. 118)”. Na mesma linha, Harada (2017) entende que os regramentos do Direito Tributário Penal têm como finalidade forçar o contribuinte, autor de crime contra a Ordem Tributária, a realizar o pagamento dos tributos devidos.

Imagine-se a seguinte hipótese: uma empresa, pagadora de vultuosa quantia oriunda de tributos, cumprindo sua obrigação legal, não obstante enfrentar dificuldades financeiras, realiza a quitação no prazo estabelecido. Em contrapartida, outra empresa, de igual porte, encontrando-se em mesma situação financeira, obrigada a efetuar o pagamento dos mesmos tributos, sabedora da possibilidade da extinção da punibilidade conferida pelo art. 9º, § 2º da Lei nº. 10.684/03, com dolo e intuito de burlar o cumprimento da obrigação, realiza declaração falsa, suprimindo o tributo cabido. Ressaltando-se, como bem aduz o doutrinador Segundo (2017), que somente após o término do processo administrativo de lançamento, e atestado pela autoridade administrativa a ocorrência, de fato e de direito, da supressão de tributos, no caso exemplificado, realizada pela segunda empresa, poderá haver o processamento em âmbito judicial do crime de sonegação, visto que o Supremo Tribunal Federal em julgamento do HC 81.611/DF, DJ de 13/05/2005, p. 6, fixou entendimento de que enquanto no processo administrativo supramencionado não houver decisão definitiva, estará ausente justa causa para a ação penal.

Seguindo-se ao exemplo, ato contínuo, o processo judicial estende-se por certo período, levando-se em consideração a quantidade de demandas judiciais ajuizadas anualmente e a desproporcionalidade do quantum de servidores para a realização e cumprimento das atribuições, havendo o trânsito em julgado da ação decorridos 3 (três) anos, condenando o administrador da última empresa, a 4 anos de reclusão e multa. Ressalta-se, que sendo a responsabilidade subjetiva, deve-se comprovar que o acusado foi o responsável pela emissão da declaração falsa (GONÇALVES, 2017).  Diante da conclusão, após o trânsito em julgado, o autor do delito efetua o pagamento integral dos débitos tributários, tendo transcorrido 3 anos da consecução penal, período em que se restabeleceu financeiramente e posteriormente, com a imposição da sanção penal, realizou o pagamento, diferentemente do administrador da primeira empresa, que não “usufruiu” desse período para restabelecer-se, posto que cumpridor de suas obrigações legais como contribuinte. Um dos bens jurídicos tutelados pelos tipos penais presentes na Lei nº. 8.137/90 é a livre concorrência, infringida, pois, quando ausente o recolhimento devido de tributos por pessoas jurídicas, que auferem receitas superiores pela venda e prestação de serviços com preços reduzidos, em comparação as demais empresas e entidades que procedem pelo recolhimento requerido legalmente, configurando assim a concorrência desleal (GONÇALVES, 2017).

A Constituição Federal de 1988, em seu art. 37, estabelece a moralidade como um dos princípios expressos a que a Administração Pública deve observância. Aludido princípio está intrinsicamente ligado a ideia de uso da coisa pública e atuação da Administração de forma honesta, proba e presente a boa-fé. Carvalho (2017) esclarece que a atuação do Estado de modo a atender mencionado princípio advém do atendimento aos padrões da Moralidade Jurídica, e não aos padrões da moralidade social. O autor sintetiza o entendimento da seguinte forma:

A “moralidade social” procura fazer uma diferenciação entre o bem e o mal, o certo e o errado no senso comum da sociedade; já a “moralidade jurídica” está ligada sempre ao conceito de bom administrador, de atuação que vise alcançar o bem estar de toda a coletividade e dos cidadãos aos quais a conduta se dirige (CARVALHO, 2017, p. 74).

 

Alexandre (2018), discorrendo sobre a atuação financeira do Estado, informa sobre as duas finalidades que marcam essencialmente os tributos: fiscal, que tem por objetivo apenas angariar recursos; e extrafiscal, cuja intenção fundamental é a de interferir em algum contexto econômico ou social.  Expondo ainda, que o tributo instituído com o propósito apenas arrecadatório não afasta a finalidade extrafiscal, considerada secundária em relação ao primeiro. Um exemplo legal, de atuação extrafiscal do Estado, visando equilibrar a situação econômica entre empresas de pequeno porte e microempresas frente àquelas de grande porte, consiste no oferecimento de tratamento distinto e mais benéfico em relação ao pagamento de alguns tributos, consoante regramento disposto no art. 146, III, alínea “d” da Carta Cidadã vigente.

 Como dito anteriormente, a Lei nº. 10.684/03 detém caráter preponderantemente fiscal, haja vista a tributação ser essencial para a obtenção de recursos para a manutenção e atuação do Estado. Contudo, deve-se deixar assente que a extrafiscalidade, embora com caráter secundário ainda persiste, visto que os recursos obtidos são utilizados para a consecução do bem comum.  A lei retro previu além da possibilidade do parcelamento dos débitos, a oportunidade de extinção da punibilidade pelo pagamento integral dos débitos tributários, esta, pois, objeto da presente pesquisa. Pois bem, será que a positivação do citado dispositivo infringe o princípio constitucional da moralidade administrativa?    

A moralidade jurídica supracitada busca o bem-estar da coletividade, a Administração Pública atua, pois, objetivando atingir o bem comum. Tal preceito assemelha-se, sobremaneira à teoria filosófica conhecida como Utilitarismo, em que para alcançar a felicidade, verificam-se os resultados benéficos que o ato provocou nos indivíduos a que é direcionado. Sandel (2014), em análise ao Utilitarismo, dispõe que essa teoria afirma que o ato certo é aquele que traz felicidade a um número expressivo de pessoas, tanto é assim, que sofre severas críticas por não respeitar o direito individual, isto é, o indivíduo em sua unidade, mas apenas a coletividade. Logo, o ato realizado diz-se justo, acertado, caso beneficie o máximo de pessoas, sendo irrelevante se prejudica sobremaneira apenas um indivíduo. 

Harada (2017) verifica que para alguns juristas o normativo contido no art. 9º, § 2º da Lei nº. 10.684/03 fere o princípio da moralidade administrativa, já que incentiva o cometimento dos crimes contra a Ordem Tributária e outros do Código Penal abrangidos por tal benesse. Parreira (2014 apud OLIVEIRA, 2016, p. 120), igualmente aponta: “O resultado é uma desmoralização do caráter coativo das normas penais e o consequente enfraquecimento dos bens jurídicos tutelados por elas”. O sonegador, por exemplo, cuja conduta está eivada com dolo e, por conseguinte, pratica o crime com o intuito de fraudar o Fisco, já que os tipos do arts. 1º e 2º da Lei 8.137/90 não comportam a modalidade culposa, ao optar pelo pagamento integral dos débitos tributários, inclusive acessórios, a qualquer tempo, iguala-se ao contribuinte cumpridor de seus deveres e obrigações. Enquanto que determinado contribuinte efetua o pagamento sem incorrer em mora e em respeito aos preceitos legais, por vezes, desdobrando-se financeiramente para realizar honestamente a quitação; outro, autor de crime contra a Ordem Tributária (arts. 1º ou 2º), verifica na extinção da punibilidade pelo pagamento integral dos débitos tributários um permissivo para a prática reiterada de tais delitos, visto que pode, por exemplo, administrando uma empresa, ofertar produtos com preços mais atrativos, não repassando para suas mercadorias os valores correspondentes à tributação em sua totalidade, supressão; ou parcialmente, redução, havendo, portanto, clara concorrência desleal. A Lei nº. 10.684/03, em seu art. 9º, § 2º traz um verdadeiro afrouxamento punitivo para os autores dos crimes de sonegação fiscal, e dos tipos penais estabelecidos nos arts. 168-A e 337-A do Código Penal, dado que a esses permite-se optar pelo pagamento integral de seus débitos tributários, a qualquer tempo, inclusive após o trânsito em julgado, não persistindo a imposição de sanção em esfera penal caso realizada a quitação. Em contrapartida, ao contribuinte honesto, resta-lhe efetuar o pagamento dos seus débitos, enfrentando a concorrência desleal imposta, e.g., por sonegadores, e a estes se equipararem juridicamente, quando aqueles tiverem pago integralmente os seus débitos tributários.

A Constituição Federal promulgada no ano de 1988 elenca em seu art. 5º, os direitos e garantias individuais e coletivos, em que se extrai do lema da Revolução Francesa de 1789, “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”, as suas classificações em gerações. Sendo assim, Alexandrino (2017) leciona que os direitos de primeira geração evidenciam o princípio da liberdade, atribuindo ao Estado uma ação negativa, de não fazer, de não interferência; os direitos de segunda geração, enaltecem o princípio da igualdade, que ao contrário do anterior exigem uma ação positiva do Estado, na sua maioria, para o alcance da igualdade social; por derradeiro, os direitos de terceira geração salientam os princípios da fraternidade, que buscam a proteção dos direitos da coletividade e transindividuais, ou seja, difusos.

O direito difuso é aquele que possui como destinatário final mais de um indivíduo, precisamente uma coletividade, por exemplo, o direito à Paz, direito este pertencente a todos. Fazendo-se um liame entre o direito difuso, que busca a proteção da coletividade e os crimes praticados contra a ordem tributária, enxerga-se neste a vitimização difusa. Ao passo que nos crimes contra o patrimônio, expressos no Código Penal, é possível identificar precisamente as consequências decorrentes e as vítimas da prática do delito, que arcarão com os prejuízos patrimoniais caso não consigam reaver o produto do crime; nos crimes contra a Ordem Tributária, pelo fato da vitimização ser difusa, não é viável especificar o indivíduo atingido pela ação delituosa. Resumindo objetivamente, Oliveira (2016):

[...] nos delitos tributários o dano social é imensamente maior que nos crimes patrimoniais (de cunho monetário), pois o bem juridicamente protegido pertence à coletividade (erário, arrecadação tributário ou a própria ordem tributária), e não apenas o indivíduo. Desse modo, há falta de isonomia no tratamento dispensado aos dois casos. Há um evidente tratamento mais benéfico para os crimes tributários, cujos efeitos repercutem em toda a sociedade, em comparação aos crimes que atingem apenas interesses privados de um (ou alguns indivíduos) (OLIVEIRA, 2016, p. 115).          

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                        

 

 

4.      CONCLUSÃO

 

Destarte, apesar dos crimes contra a ordem tributária atingirem a coletividade e em consonância possuírem uma relevância social proeminente, a extinção da punibilidade, tratada na presente pesquisa, percebe-se, trouxe uma espécie de afrouxamento punitivo de tais delitos.

Desta feita, como mostrado pelo entendimento do próprio STJ, perde-se o objeto da possibilidade punitiva penalmente, quando o sujeito passivo da relação tributária vem adimplir com suas obrigações tributárias, pela própria satisfação do crédito tributário.

 

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Sobre os autores
Henrique John Pereira Neves

Formado em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco, pós graduado em Direito Público pela Universidade Estácio-Fir – Recife-PE, professor universitário de Direito.

Manuella Maria Carneiro Pires

Graduanda do Curso de Direito do Centro Universitário Joaquim Nabuco, Paulista-PE

Informações sobre o texto

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