Introdução
A tecnologia exprimiu e imprimiu na realidade pós-moderna novas formas e possibilidades comunicacionais que ultrapassam as barreiras físicas, unindo tudo e todos no que Marsrshall McLuhan (1971, p. 77) já definia como aldeia global, termo este que, atualmente, vem sido ratificado pela criação e massificação das chamadas redes sociais (Facebook, Instagran, Twitter, dentre outras).
É neste cenário, no qual as interações físicas ganham contornos virtuais, que duas questões primordiais inerentes ao próprio processo comunicacional das sociedades necessitam ser discutidas e consideradas: a liberdade de expressão e o discurso de ódio. Em um ambiente, o virtual, no qual as possibilidades de se proferir o que pensa são infinitas, é que se pode vislumbrar a linha sutil existente entre liberdade de expressão e os discursos manifestamente preconceituosos e discriminatórios, disseminadores de ódio.
Para exemplificar e tornar mais concreto tal cenário, o presente artigo analisará alguns acontecimentos, nos quais se evidenciou conteúdos de cunho discriminatório. Os casos envolvendo as figuras públicas Thays Araújo (atriz) e Maria Júlia Coutinho (jornalista), vítimas do discurso de ódio de fundo racista em seus perfis na rede social Facebook. Buscar-se-á, portanto, explicitar que a liberdade de expressão pode e deve ser limitada igualmente no universo virtual quando utilizada como elemento potencializador de pensamentos e discursos que tenham como intuito a disseminação da discriminação ou preconceito, condenados tanto socialmente, como também constitucionalmente e na esfera do Direito Penal brasileiro.
1. A Liberdade de Expressão na Constituição Brasileira e em Tratados Internacionais
A Constituição Federal do Brasil, de 1988, assegura e conceitua em seu título II, “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, no artigo 5.º, incisos IV, V, VI e IX, a liberdade de expressão como sendo a livre manifestação de pensamentos. O artigo 220, da CF, também segue esta ideologia ao defender que a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.
Referente ao artigo 220 deve-se ressaltar que o próprio texto constitucional não torna inviolável a liberdade de expressão ao expor que os [...] veículos não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição. Miguel Reale Jr. (2010, p. 388-398) valida tal afirmação ao tratar com podenração a questão da liberdade de expressão quando analisa o artigo 3.º, da CF, inciso IV, o qual discorre sobre a vedação de preconceito em relação a cor, origem, sexo, idade e quaisquer outra forma de discriminação. Ao tocar neste ponto essencial, o qual a Constituição Federal define como um dos objetivos primordiais para a promoção do bem estar geral da nação e o respeito as diferenças, Reale Jr. ressalta a importância da defesa da dignidade da pessoa humana (ou seja, o respeito às particularidades individuais dos sujeitos que compõem a sociedade) como marco inicial e inviolável para a posterior aquisição dos demais direitos.
A Convenção Americana de Direitos Humanos, a qual o Brasil é signatário, defende, em seu artigo 13, a liberdade de expressão, no entanto, pondera, ao ressaltar em seu inciso II, a, que tal liberdade deve assegurar o respeito aos direitos e a reputação das demais pessoas. Proposta semelhante foi adotada no artigo 20, n.º 2, do Pacto Internacional dos Direito Civis e Políticos, ratificado pelo Brasil em 1992, que defende a liberdade de expressão proibindo, contudo, qualquer apologia ao ódio nacional, racial, ou religioso, que constitua incitação à discriminação, à hostilidade ou à violência.
Como observada a questão da liberdade de expressão tornou-se pauta mundial, quando utilizada como instrumento propagador do discurso de ódio, passando a ser reprimida pelo Estado quando, de fato, objetivar a disseminação de conceitos arraigados e conjecturas negativas que visam ao desrespeito das particularidades de cada indivíduo e do grupo ao qual o mesmo vincula-se. Nota-se que tal realidade, inerente ao ambiente físico, passa a sê-lo também no ambiente virtual, no qual, conforme será explicitado posteriormente, o discurso de ódio reverbera-se de forma ainda mais potente, atingido em instante, um número significativo de destinatários.
Discurso de Ódio: Conceituação e abrangência
Definido por Samantha Meyer-Pflug (2009, p. 98) como uma modalidade de comportamento que objetiva a externalização de pensamentos preconceituosos em relação a um indivíduo ou a um grupo específico, o discurso de ódio visa a propagação de mensagens de cunho negativo e pejorativo, que, segundo Winfried Brugger ( 2007, p.118) [...] tendem a insultar, intimidar ou assediar pessoas em virtude de sua raça, cor, etnicidade, nacionalidade, sexo ou religião ou que tem a capacidade de instagar violência, ódio ou discriminação contra tais pessoas.
Com o advento das novas tecnologias e principalmente, com a instantaneidade e o anonimato advindo da internet e das redes sociais, o discurso de ódio tornou-se elemento presente no cotidiano virtual, fazendo vítimas independemente de classe social. Neste sentido, Renata Machado Silveira (2007) ressalta que o discurso do ódio não é um ato divisível, ou seja, mesmo dirigido a uma pessoa em específico, as ofensas acabam por atingir todos os membros do grupo, a qual o sujeito pertence ou se identifica como sendo parte.
Um exemplo de como a internet vem sendo utilizada para a prática do discurso de ódio está nos dados divulgados pela Organização não-governamental SaferNet Brasil que, em 2014, apontou um crescimento de 8,29% no que concerce a atos ilíticos cometidos no meio virtual. A SaferNet aponta que esses atos tiveram maior ocorrência durante a Copa do Mundo de Futebol e as eleições para a Presidência da República, nas quais os discursos racistas – houve um aumento de 34,15% de páginas consideradas racistas –, xenofóbicos, bem como o tráfico de pessoas, eram alvos das denúncias predominantes realizadas pelos internautas{C}[1].
A partir dos dados apresentados pela SaferNet Brasil e apoiando-se na análise da especialista em comportamento virtual, Raquel Recuero (2009) que descortina o palco da internet, no qual os atores, ou seja, os internautas-usuários, vivenciam a oportunidade de interpretar múltiplos papéis e sentem-se seguros para desempenhá-los graças a sensação de anonimato, vinculado ao perfil virtual, que a questão da liberdade de expressão como canal para a disseminação do discurso de ódio coloca-se em evidência tanto no âmbito social como no âmbito do direito, visto que , assim como ações discriminatórias são punidas no mundo físico, elas também são e devem ser punídas quando cometidas no universo virtual.
Os casos Thays Araújo e Maria Júlia Coutinho: a ponta de um iceberg
No segundo sementre de 2015, a atriz Thays Araújo e a jornalista do Jornal Nacional, Maria Júlia Coutinho, foram vítimas do discurso de ódio em seus perfis na rede social Facebook. Os casos ficaram à cargo da Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática do Rio de Janeiro, que identificou um grupo de pessoas como os autores das manifestações racistas. Na investigação sobre as ofensas à jornalista, mandados de busca e apreensão foram emitidos em uma operação realizada em oito Estados.Recentemente, no caso da atriz, os acusados que estavam presos temporariamente foram postos em liberdade, porém, submetidos à medidas cautelares, enquanto aguardam o início da ação penal. Os crimes imputados aos suspeitos são: o crime resultante de preconceito de cor, a injúria racial e a associação criminosa.
As mensagens proferidas enfatizam com clareza as conceituações anteriormente destacadas sobre discurso de ódio, no qual a prática de discriminação da cor é claramente identificada.
Ressalte-se que esses acontecimentos representam uma pequena parcela das manifestações de cunho preconceituoso e discriminatório identificadas na rede mundial de computadores. Em 2014 a página no Facebook do Portal de Notícias Apuí foi processada pelo Ministério Público Federal do Amazonas por veicular notícias com teor discriminatório e citacão ao ódio contra a etnia Kagwahiva Tenharim. A Ação Civil Pública conseguiu, por meio de uma liminar, retirar do Facebook mensagens nitidamente características do discurso de ódio.
A Repressão Legal ao Racismo
O discurso de ódio, em hipótese alguma, pode ser defendido sob a alegação da liberdade de manifestação do pensamento, pelo fato de ser segregante e injuriante, um ato discriminatório ao ser humano, em razão das suas qualidades de cor ou de etnia, apontadas como um diferenciador depreciativo.
A Carta Mayor foi desenhada, em sua completude, como um documento político de repúdio explícito à discriminação e ao preconceito, desde o seu Preâmbulo, segundo o qual se instituiu um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício de direitos, entre os quais, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social.
O texto constitucional segue, proclamando que a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais (inciso XLI, do art. 5.º), passando a definir como crime imprescritível a prática do racismo (inciso XLII). Contudo, o fez por meio de uma norma de eficácia limitada, isto é, não autoaplicável, carecedora de previsão legal ordinária. Não obstante, garantidoras de direitos e liberdades em face de condutas discriminatórias.
Mas não tardou o legislador infraconstitucional para sanar esta lacuna e, em poucos meses, foi promulgada a Lei n.º 7.716/89, que cuida dos crimes resultantes de discriminação ou preconceito.
O alcance da Repressão Jurídico-penal do Racismo
Aparentemente, o fato de haver uma lei repressora da prática do racismo, transmite a ilusória ideia de que o Estado brasileiro já cuida adequadamente da questão. Infelizmente, quando analisado o limitado alcance da Lei n.º 7.716/89, percebe-se o quão longo ainda é o caminho neste sentido. A começar pelo enfoque histórico do tema, posto que as mensagens os vídeos postados nas redes sociais, com assustadores discursos de ódio, expressam um sentimento revelador de um apartheid velado, existente no Brasil – um fenômeno secular que é ignorado ou meramente negado pela maioria das pessoas.
Esse racismo à brasileira, observado em uma sociedade que não consegue se ver como um sistema altamente hierarquizado, no qual não há igualdade entre as pessoas e onde o preconceito velado gera uma forma muito eficiente de discriminação pela cor (DAMATTA, p. 31), e principalmente pela condição socioeconômica. Neste cenário, qualquer reforma penal com intuito de abranger um maior grupo de condutas discriminatórias, sofre uma enorme resistência, pelo fato de os cidadãos não enxergarem a importância problema a ser atacado, visto que a prática do racismo é um costume profundamente arraigado na sociedade.
Pelo enfoque jurídico, no entanto, a qual aqui se pretende trazer, duas são as abordagens sobre o alcance da repressão penal. A primeira diz respeito ao alcance definido pelo legislador, ao regulamentar as condutas e as sanções penais; e a segunda, diz respeito ao meio de execução e ao lugar onde o crime é perpetrado.
O Alcance da Lei Penal n.º 7.716/89
A necessidade de repressão das práticas preconceituosas ou discriminatórias já fora percebida pelo legislador, desde 1988, com o advento da Constituição cidadã. Observe-se o disposto no artigo 1.º, da referida lei, onde são arroladas as qualidades humanas, alvos da discriminação ou preconceito:
Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação e preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.
A despeito de reduzidas as qualidades humanas resguardadas pelo diploma legal, mostra-se mais abrangente do que a redação original. Antes de sofrer a reforma pela Lei n.º 9.459/97, a proteção restringia-se à discriminação ou preconceito de raça ou cor. Ou seja, uma redação muito mais tímida que a do texto constitucional, o qual define como objetivos da República, em seu artigo 3.º, inciso IV, a proteção contra a discriminação, apresentando um rol mais extenso de atributos, citando, além das referidos na lei infraconstitucional, o sexo, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Esta exacerbada limitação do alcance da lei penal não se coaduna com atual momento histórico, fazendo-se necessária a repressão do preconceito ou discriminação de gênero, idade, estado de saúde física ou psíquica, condição socioeconômica e procedência regional. Se houvesse um interesse efetivo em reprimir todas as modalidades de atos racistas, deveriam ser abrangidos todos os atributos humanos que pudessem ser motivadores de violentos sentimentos segregacionistas. Ou ainda melhor, legislador ordinário poderia inspirar-se na parte final do inciso IV, do art. 3º, da Constituição Federal, pela sua completude. Desse modo, se o artigo 1.º, da referida lei, sentenciasse e quaisquer outras formas de discriminação, eliminaria qualquer tentativa de esquiva no que tange a interpretação do crime de racismo.
Recentemente, decidiu a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal pela rejeição de denúncia oferecida em desfavor do Deputado Federal Marco Antônio Feliciano. O Deputado foi acusado da prática de crime disposto no artigo 20, da Lei n.º 7.716/89, de induzimento ou incitação a discriminação ou preconceito, por ter postado em seu Twitter referências ofensivas às relações homoafetivas, relacionando-as negativamente à passagens bíblicas. O Ministério Público Federal lastreou sua tese acusatória no entendimento, firmado pelo Supremo Tribunal Federal, a respeito do alcance do termo racismo para efeitos de aplicação da lei penal. O Relator, Ministro Marco Aurélio Mello, que foi acompanhado em seu voto pelos demais, reconheceu a atipicidade da conduta, porquanto a discriminação praticada pelo parlamentar acusado não é abarcada pelo referido artigo 20, o qual pune, conforme já citado, a discriminação ou preconceito a raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, todavia, não pune a discriminação em relação à opção sexual.
Sobre o alcance da expressão racismo, já discorreu Miguel Reale Jr. – em parecer juntado aos autos de Habeas Corpus, impetrado perante o Supremo Tribunal Federal, em favor de Siegfried Ellwanger[6] - sobre a necessidade de uma interpretação extensiva da referido vocábulo, ao cuidar da vagueza de expressões linguísticas utilizadas nos textos legais. Segundo o estudo de Reale Jr., todas as expressões linguísticas possuem o significado mais ou menos vago ou indeterminado. Entretanto, essa vagueza desaparece quando se delimita seu campo de aplicação. Existe nas normas legais uma vagueza denominada vagueza socialmente típica (LUZZATO apud REALE Jr., p. 3), gerada por expressões que são interpretadas através de um juízo de valor, isto é, o jurista, ao analisá-las, remete-se a parâmetros normativos constantes de regras extra-jurídicas, admitidas pela consciência social, regras morais, sociais e costume.Assim, entende-se que o termo racismo, empregado pelo legislador constituinte, é revestido de uma imprecisão proposital, pelo fato de o Direito não se tratar de um sistema fechado, e das normas não serem entidades findas.
A vagueza socialmente típica, no Direito Penal, é encontrada em elementos normativos do tipo cujo significado se alcança por meio das interpretações analógicas. No caso da expressão racismo, trazida pela Constituição Federal, trata-se de um gênero que abrange as várias espécies de discriminação e preconceito (raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional), mencionados no art. 1.º, da Lei n.º 7.716/89.
Reale Jr., emprestando a definição de metódicas estruturantes, de Friedrich Müller[9], afirma que a interpretação da lei deve ser aberta, estruturante, e não um mero ato de reconhecimento de um significado dado anteriormente (MÜLLER, p. 118). O jurista demonstra ainda, aprofundando-se na exegese, que o parlamentar, responsável pela emenda que considerou racismo crime, não visava exclusivamente à discriminação sofrida pelos negros. O insigne jurista explica que, no momento da apresentação da emenda, não se furtou o Deputado Carlos Caó de uma interpretação extensiva do termo racismo, pois quando do início da justificativa à emenda, o referido parlamentar pondera sobre a superação das discriminações raciais, ou seja, manifesta-se no plural, vislumbrando diante de si as mais variadas formas de discriminação.
Interpretar que o racismo referido no art. 5 º, XLII, limita-se às discriminações por diferenças físicas e biológicas, cor da pele, formato dos olhos, textura do cabelo, é afrontar o princípio fundamental da igualdade. Seria admitir que a Constituição cataloga inferiores e discriminados de graus diferentes, a desigualdade na desigualdade.
Racismo transmite a ideia de superioridade de um determinado grupo de pessoas sobre outras, de modo que tem conotação política, de domínio de uma minoria que se crê superiora em relação a uma maioria; segregacionismo. Deve ser entendida como uma expressão ampla e vaga que, à primeira vista, não demonstra seu pleno significado. Racismo, assim, reflete uma atitude social, alimentada principalmente pelas diferenças de cor, origem e condição socioeconômica – vale dizer, fruto também da competitividade do mercado de trabalho, da busca por um lugar de destaque.
Aplicando-se o princípio da proporcionalidade, a diversidade humana e a dignidade da pessoa, atingidas pelo preconceito, devem prevalecer sobre a liberdade de consciência e de manifestação do pensamento. Parafraseando o eminente Ministro Gilmar Mendes em seu voto (2004, p. 922), a proteção constitucional às liberdades de manifestação do pensamento e expressão da atividade intelectual, artística e de comunicação, visa a evitar embaraços impostos por qualquer disciplina legal e não torná-las liberdades absolutas. De acordo com o entendimento de Gilmar Mendes:
... o princípio da proporcionalidade alcança as denominadas colisões de bens, valores ou princípios constitucionais. Nesse contexto, as exigências do princípio da proporcionalidade representam um método geral para a solução de conflitos entre princípios, isto é, um conflito entre normas que, ao contrário do conflito entre regras, é resolvido não pela revogação ou redução teleológica de uma das normas conflitantes nem pela explicitação de distinto campo de aplicação entre normas, mas antes e tão-somente pela ponderação do peso relativo de cada uma das normas em tese aplicáveis e aptas a fundamentar decisões em sentidos opostos (2004, p. 923).
O discurso de ódio, neste sentido, apresenta-se como prática discriminatória e preconceituosa, a reverberação do racismo e do segregacionismo.
A Cibercriminalidade e o discurso de ódio
Muito embora o discurso de ódio – e toda a sua carga discriminatória e preconceituosa – venha sendo praticado com maior intensidade pela internet, a tipificação penal desta conduta não sofre qualquer relativização em razão do meio pelo qual se executa e se propaga. A rede mundial de computadores é somente mais um locus delicti commissi.
Os delitos perpetrados pela internet são perfilhados em duas categorias principais: os cibercrimes próprios e os cibercrimes impróprios (TEODORO, p. 191). Os cibercrimes próprios ou puros são aqueles que não existiam antes do advento da internet, os que somente podem ser praticados no universo digital ou com o emprego de hardwares. Já os cibercrimes impróprios ou impuros são os delitos clássicos que passam a ser perpetrados no mundo virtual. Portanto, praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito (artigo 20, da Lei n.º 7.716/89), por meio de redes sociais, é um novo cibercrime impróprio. Conquanto o meio comissivo seja a internet, os bens jurídicos tutelados mantêm-se os mesmos: a igualdade, a diversidade humana e a dignidade humana.
O fato de o delito de racismo ser perpetrado pela internet torna a punição mais severa. Ao invés da reclusão de 1 a 3 anos, prevista na caput do artigo 20, aplica-se a pena de 2 a 5 anos, prevista no § 2.º do mesmo artigo.
Diante da intensificação do cometimento do cibercrime de racismo, em 2010, foi acrescido o inciso III ao aludido artigo 20, permitindo às autoridades judiciárias que interditem as mensagens ou páginas de informação na rede mundial de computadores, quando contiverem conteúdos discriminatórios. E desde 2012, pode o Poder Judiciário determinar a cessação de transmissões eletrônicas.
Conclusão
A liberdade de manifestação do pensamento é uma conquista também do espaço virtual, no qual cada indivíduo é responsável por seus atos. Os recentes casos de racismo, praticados pela internet, expõem a tênue fronteira entre o direito de exercer a liberdade de expressão (free speech) e a propagação do discurso de ódio (hate speech), carregados de conteúdo preconceituoso e segregacionista. Este conflito entre princípios constitucionais fez emergir a questão de se restringir a liberdade de expressão quando esta for empregada como meio de disseminação de preconceito ou discriminação sobrepondo-se, assim, aos princípios fundamentais característicos de uma sociedade democrática de direito.
Sob a égide do princípio da proporcionalidade, deve-se primar pela prevalência da dignidade da pessoa humana em relação aos demais direitos. Faz-se imprescindível a busca pelo real conceito e aplicabilidade da livre manisfestação de pensamentos e as consequências advindas deste direito, fruto de uma sociedade democrática, para que os indivíduos possam exercer tal liberdade de forma positiva, respeitando as multiplicidades étnicas e valorativas dos cidadãos-internautas.
Referências
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MENDES, Gilmar Ferreira. HC/STF 82424-2. Revista Trimestral de Jurisprudência – STF, v.188, n.º 3, abr./jun. 2004.
MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Liberdade de Expressão e Discurso de Ódio. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
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TEODORO, Frediano José Momesso. As Novas Políticas de Repressão Penal no Ciberespaço. Direito Penal Avançado: Homenagem ao Prof. Dirceu de Mello. Curitiba: Juruá, 2015.
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Suspeitos de racismo contra a atriz Thaís Araújo são soltos pela justiça. 21.mar.2016.< http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2016/03/suspeitos-de-racismo-contra-atriz-tais-araujo-sao-soltos-pela-justica.html. Consultado em 24.jun.2016.
MPF/AM processa responsável pela página do Portal Apuí no Facebook por discriminação contra índios. <https://www.ecodebate.com.br/2014/02/14/mpfam-processa-responsavel-pela-pagina-do-portal-apui-no-facebook-por-discriminacao-contra-indios/>. Consultado em 24.jun.2016.
Inquérito 3.590/DF. Sessão realizada em 12.ago.2014.
Siegfried Ellwanger foi processado criminalmente por infração ao disposto no artigo 20, da Lei n. º 7.716/89, pela publicação de livros de cunho antissemita. A defesa de Ellwanger questionava, perante o STF, o alcance da expressão racismo, disposta no inciso XLII, do artigo 5.º, da Constituição da República, para efeitos de reconhecimento da imprescritibilidade do crime pratico.
REALE JR, Miguel. Parecer juntado ao H.C. nº 82424-2/130, fl. 3.
Ibidem, fl. 3.
O sentido histórico-político de uma constituição reside no fato de ela ser o ordenamento fundante de uma determinada sociedade, incluídas as suas forças divergentes. O direito constitucional diz respeito à fundamentação da sociedade estatalmente organizada e do seu ordenamento jurídico global. (...) A combinação de uma tal ‘abertura’estrutural com a finalidade normativa da fundamentação da sociedade estatalmente organizada e de todo ordenamento jurídico torna compreensíveis as dificuldades maiores e específicas da instituição e concretização de normas constitucionais. (Métodos de Trabalho do Direito Constitucional, p. 67-8).
Ibidem, fl. 14.
Ibidem, fl. 16.
Lei n.º 12.288/10
O mencionado artigo 20 teve o inciso II, do § 3.º, alterado pela Lei n.º 12.735/12.