INTRODUÇÃO
Antes de tecer alguns comentários sobre a linguagem científica e a linguagem laica, seria bom narrar recente notícia publicada na imprensa.
Dizia a notícia que a justiça eleitoral estava enviando intimações para os nomeados às juntas eleitorais cominando, para o caso de não comparecimento no dia das eleições, pena de um (1) ano de prisão.
O órgão de imprensa considerava repulsiva a linguagem severa utilizada nas cartas de intimação e afirmava que as boas maneiras, a cortesia e os bons modos deveriam ser observados pelo Poder Judiciário.
Este é apenas um exemplo das diferenças existentes entre a nomenclatura jurídica e a sua tradução para a linguagem popular pela imprensa.
1. A LINGUAGEM E SUA FUNÇÃO
“A linguagem é a base das relações sociais e, em razão disso, os diversos grupos de uma comunidade linguística organizam um código comunicativo próprio, formando, ao lado da língua-padrão, um universo semiológico.”[1]
A linguagem existe para representar graficamente os pensamentos humanos.
Nesse contexto, o texto jurídico é uma forma de comunicação, nele ocorrem os elementos envolvidos no ato comunicatório; deve haver, então, um objeto de comunicação (mensagem) com um conteúdo (referente), transmitido ao receptor por um emissor, através de um canal, e utilizando um código próprio.[2]
Da necessidade de uma linguagem própria advém a expressão latina nomenclatura.
Nomenclatura é a terminologia adotada por determinada ciência. É o conjunto de termos peculiares a uma arte ou ciência, seu vocabulário próprio, sua forma de descrever os fatos e objetos do seu mundo analítico, seu código.
Na Ciência Jurídica a nomenclatura é o nomen juris.
Sendo científica, a linguagem jurídica é precisa, objetiva, denotativa, referencial e autoritária. Já a informação jurídica divulgada pela imprensa é imprecisa, subjetiva, conjectural, não comprometida com a realidade dos fatos.
O mundo jurídico prestigia o vocabulário especializado, a nomenclatura que, no dizer de Miguel Reale, é uma linguagem científica, para que o excesso de palavras plurissignificativas não dificulte a representação simbólica da linguagem.
Por exemplo: a incompetência do juízo tem significado diverso na nomenclatura jurídica e na linguagem da imprensa. Na primeira, significa que o titular do juízo não pode exercer a jurisdição em dado caso; na segunda, que o juiz não é um profissional competente.
A construção do discurso jurídico visa o convencimento e utiliza os princípios da lógica clássica para a organização do pensamento; o discurso informativo, inerente à imprensa, é meramente divulgador de fatos, sem compromisso com a nomenclatura científica.
2. NOMENCLATURA JURÍDICA E IMPRENSA
Assim, temos duas realidades distintas decorrentes do uso da nomenclatura jurídica: a primeira, aquela utilizada pelos “operadores, protagonistas ou cuidadores do Direito” – como se deseje adjetivar - , pessoas treinadas em uma linguagem própria, inerente à elaboração dos trabalhos de sua atividade, um código lingüístico; e, a segunda, a linguagem utilizada pela imprensa para traduzir o juridiquês para o vernáculo popular, desvirtuando a nomenclatura jurídica em favor da informação acessível ao vulgo, ao leigo.
Dessas duas realidades surge o confronto entre o bem informar – pela imprensa – e o uso da terminologia científica-jurídica – pelos estudiosos do Direito.
O ato comunicativo jurídico é prescritivo e descritivo, não se podendo moldar às necessidades lingüísticas dos consumidores de informação popular, leiga.
Isso gera um confronto que não é negativo, já que traduz a necessidade de se comunicar bem e eficientemente, em linguagem acessível, as coisas do Direito ao mundo laico, ao cotidiano das pessoas, o que é feito pela divulgação dos fatos jurídicos e sociais pela imprensa.
3. A IMPRENSA E SUA IMPORTÂNCIA
Rui Barbosa afirmou que a imprensa era os olhos da nação e, portanto, a ela deveria ser assegurada a plenitude da liberdade de expressão e divulgação de todos os fatos sociais, econômicos, políticos e jurídicos. Porém, a Justiça é, tradicionalmente, cega!
E a quem competiria assegurar tal liberdade à imprensa? A resposta é clara: ao Judiciário.
Portanto, Judiciário e Imprensa têm que conviver o mais harmonicamente possível, especialmente, no campo da divulgação dos atos e fatos jurídicos reguladores que são das relações sociais.
4. O CONFLITO, SUAS CAUSAS E CONSEQUÊNCIAS
De um lado, a Ciência Jurídica com a sua nomenclatura - linguagem científica -, apropriada ao seu desenvolvimento como ciência, porém inacessível ao leigo; e, do outro, o esforço da imprensa em divulgar de forma simples e compreensível ao leitor leigo os fatos do mundo jurídico, distorcendo a linguagem científica, deturpando a nomenclatura jurídica, em favor da prestação da informação.
Contudo, a imprensa não peca contra a nomenclatura jurídica inocentemente; ela peca pela necessidade de divulgar os fatos em um tempo quase real, sob pena de fenecer economicamente, pois quanto mais rápido chega a informação ao leitor, mais o veículo de comunicação se populariza e atraia publicidade, gerando lucros.
Divulgam-se, então, os fatos e atos jurídicos de qualquer modo, sem audiência prévia dos seus produtores, acarretando a deturpação da linguagem científico-jurídica e, em conseqüência, dos próprios fatos.
Conforme o ditado popular: “A pressa é inimiga da perfeição”.
Como resolver tal conflito?
Eliminando, como desejam alguns, o uso da nomenclatura jurídica, a denominada linguagem empolada, rebuscada, em favor de maior acessibilidade ao leigo?
Se toda ciência tem uma linguagem própria, um conjunto de termos para designar seu objeto, um código comunicativo, eliminar a nomenclatura jurídica seria como extinguir do mundo das ciências o Direito como disciplina científica.
Qual seria a solução?
5. A SOLUÇÃO
O esforço na busca de uma solução para o conflito entre o uso da nomenclatura jurídica e a sua distorção pela linguagem da imprensa, deve ser no sentido da maior transparência dos atos jurídicos, inclusive pela divulgação antecipada da realização dos seus atos.
Por exemplo: a divulgação prévia da realização das audiências, entrega das peças jurídicas e o cumprimento dos prazos, abrindo um permanente canal de comunicação entre os protagonistas do direito e a imprensa, possibilitando um lápso temporal para a imprensa deglutir a linguagem jurídica e traduzi-la para a linguagem comum.
De parte da imprensa, deve ser observado um maior zêlo em não atropelar os fatos, pela urgência da sua divulgação, prejudicando o próprio conteúdo da informação divulgada. Como? Acompanhando permanentemente os trabalhos jurisdicionais, e não somente quando o fato em foco é socialmente relevante.
6. A NOMENCLATURA JURÍDICA PELA IMPRENSA
No sentido da correção na divulgação dos fatos e atos jurídicos, as direções dos grandes jornais, rádios e tvs do país têm elaborado manuais de redação num esforço para um melhor e mais correto fornecimento de informações.
Assim, os manuais de redação dos jornais O GLOBO e FOLHA DE SÃO PAULO, já trazem explicações sobre a linguagem jurídica, afirmando que ela é imperativa: que o juiz não pede nem requer; o juiz manda, determina, sentencia, julga; que as partes se dirigem ao juiz para pedir, solicitar, requerer, apelar; que o juiz não emite pareceres, e sim o Ministério Público e os juristas; que nos tribunais os juízes votam e, portanto, não sentenciam, e assim por diante.
A busca de uma linguagem mais acessível ao leigo para a divulgação dos fatos jurídicos deve ser permanente, porém jamais deve-se exigir que uma ciência relegue a sua própria linguagem, o seu código lingüístico, a sua nomenclatura, em favor da célere divulgação de informações pela imprensa, que não tem o compromisso com as conseqüências advindas dos atos jurídicos praticados e materializados, justamente, através da nomenclatura jurídica.
CONCLUSÕES
Não se pode exigir de uma ciência - no caso, a Ciência Jurídica -, que renuncie ao seu código lingüístico, pois tal corresponderia a pedir a um ser humano para renunciar à própria vida.
Por fim, deve-se perguntar, sempre, diante da informação jurídica transmitida pela imprensa, como o fazia T. S. Eliot: “onde está o conhecimento que perdemos na informação?”
[1] Curso de Português Jurídico, São Paulo: Atlas, 1999.
[2] Idem.