Nos últimos anos a garantia individual constitucional do habeas corpus (art. 5º, LXVIII, CF) vem sendo interpretada como o meio jurídico-processual de impedir a prisão injusta ou como instrumento desencarcerador da pessoa (corpus) ilegalmente presa. É cediço, entretanto, que a norma constitucional devidamente interpretada não conduz apenas à garantia da liberdade física contra o ato de constrição da liberdade, de natureza violadora, arbitrária ou constrangedora.
Principie-se por conceituar a liberdade de circulação como direito individual, adotando-se a lição de JOSÉ AFONSO DA SILVA[1]:
“O direito à circulação é manifestação característica da liberdade de locomoção: direito de ir, vir, ficar, parar, estacionar. O direito de circular (ou liberdade de locomoção) consiste na faculdade de deslocar-se de um ponto a outro através de uma via pública ou afetada ao uso público.”
Também PONTES DE MIRANDA[2], em obra clássica, afirma que:
“Restringir a liberdade pessoal é limitar, abarreirar, comedir, por quaisquer meios empecivos, o movimento de alguém; obrigar o indivíduo a não ir, a não ficar ou a não vir de algum lugar; constrangê-lo a mover-se ou a caminhar; impedir-lhe que não fique, vá ou venha. Tais meios proibitórios podem ser originados de lei legítima. Nesse caso, não fica menos íntegra a liberdade pessoal.” (Grifou-se).
Para impedir a violação ou ameaça ao direito individual à liberdade de deambulação (física, corporal) ou locomoção (artificial, motora) o habeas corpus (art. 5º, LXVIII, CF) foi elevado à categoria de garantia constitucional.
Segundo historiadores do constitucionalismo brasileiro a doutrina do habeas corpus teria sido introduzida no Brasil por esforço de Rui Barbosa[3], admirador do liberalismo anglo-saxão e norte-americano, que já afirmava relativamente à Constituição de 1891:
“Logo habeas corpus hoje não está circunscrito aos casos de constrangimento corporal: o habeas corpus hoje se estende a todos os casos em que um direito nosso, qualquer direito, estiver ameaçado, manietado, impossibilitado no seu exercício pela intervenção de um abuso de poder ou de uma autoridade.”
Na visão de Rui o habeas corpus não se reduziria apenas a uma garantia de desencarceramento (caráter repressivo) ou instrumento inibidor da ameaça de prisão (caráter preventivo), mas teria o sentido de impedir qualquer tipo de coação ilegítima, seja impedindo a prisão injusta, garantindo a livre deambulação ou locomoção, enfim assegurando direitos.
No entanto, algumas decisões denegatórias de habeas corpus proferidas pelos tribunais pátrios levam à conclusão de que os ensinamentos doutrinários acima mencionados não foram absorvidos pelos julgadores, pois o fundamento utilizado em seus julgados para a concessão ou negação da garantia reside na presença ou ausência do “real perigo de prisão”.
Ora, os que ingressam com pedidos de habeas corpus, muitas vezes, desejam tão somente a garantia de livre circulação, compreendendo esta os direitos de ir, vir, ficar, parar, estacionar, a não ir, a não ficar, a não vir de algum lugar. Qualquer decisão que exija o real ou iminente perigo de prisão para fins de concessão de habeas corpus contraria o pressuposto da garantia de livre circulação (mover, deambular, locomover, ir), implicando em constrangimento ilegal.
Nenhum dos casos especificados trata, como visto, de “real perigo” ou de risco de iminente de prisão, mas de uma garantia de livre circulação, incluindo a possibilidade de ficar, parar, estacionar em determinado lugar.
[1] Curso de Direito Constitucional Positivo.
[2] História e Prática do Habeas Corpus.
[3] Idem.