O habeas corpus e o “direito de ficar”

07/05/2019 às 15:53
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Nos últimos anos a garantia individual constitucional do habeas corpus (art. 5º, LXVIII, CF) vem sendo interpretada como o meio jurídico-processual de impedir a prisão injusta ou como instrumento desencarcerador da pessoa (corpus) ilegalmente presa.

Nos últimos anos a garantia individual constitucional do habeas corpus (art. 5º, LXVIII, CF) vem sendo interpretada como o meio jurídico-processual de impedir a prisão injusta ou como instrumento desencarcerador da pessoa (corpus) ilegalmente presa. É cediço, entretanto, que a norma constitucional devidamente interpretada não conduz apenas à garantia da liberdade física contra o ato de constrição da liberdade, de natureza violadora, arbitrária ou constrangedora.  

            Principie-se por conceituar a liberdade de circulação como direito individual, adotando-se a lição de JOSÉ AFONSO DA SILVA[1]:

                        “O direito à circulação é manifestação característica da liberdade de  locomoção: direito de ir, vir, ficar, parar, estacionar. O direito de circular (ou     liberdade de locomoção) consiste na faculdade de deslocar-se de um ponto a outro        através de uma via pública ou afetada ao uso público.”

            Também PONTES DE MIRANDA[2], em obra clássica, afirma que:

                        “Restringir a liberdade pessoal é limitar, abarreirar, comedir, por quaisquer           meios empecivos, o movimento de alguém; obrigar o indivíduo a não ir, a não ficar ou       a não vir de algum lugar; constrangê-lo a mover-se ou a caminhar; impedir-lhe que   não fique, vá ou venha. Tais meios proibitórios podem ser originados de lei legítima.     Nesse caso, não fica menos íntegra a liberdade pessoal.” (Grifou-se).

            Para impedir a violação ou ameaça ao direito individual à liberdade de deambulação (física, corporal) ou locomoção (artificial, motora) o habeas corpus (art. 5º, LXVIII, CF) foi elevado à categoria de garantia constitucional.

            Segundo historiadores do constitucionalismo brasileiro a doutrina do habeas corpus teria sido introduzida no Brasil por esforço de Rui Barbosa[3], admirador do liberalismo anglo-saxão e norte-americano, que já afirmava relativamente à Constituição de 1891:

                        “Logo habeas corpus hoje não está circunscrito aos casos de constrangimento      corporal: o habeas corpus hoje se estende a todos os casos em que um direito nosso, qualquer direito, estiver ameaçado, manietado, impossibilitado no seu exercício pela            intervenção de um abuso de poder ou de uma autoridade.”

            Na visão de Rui o habeas corpus não se reduziria apenas a uma garantia de desencarceramento (caráter repressivo) ou instrumento inibidor da ameaça de prisão (caráter preventivo), mas teria o sentido de impedir qualquer tipo de coação ilegítima, seja impedindo a prisão injusta, garantindo a livre deambulação ou locomoção, enfim assegurando direitos.

            No entanto, algumas decisões denegatórias de habeas corpus proferidas pelos tribunais pátrios levam à conclusão de que os ensinamentos doutrinários acima mencionados não foram absorvidos pelos julgadores, pois o fundamento utilizado em seus julgados para a concessão ou negação da garantia reside na presença ou ausência do “real perigo de prisão”.

            Ora, os que ingressam com pedidos de habeas corpus, muitas vezes, desejam tão somente a  garantia de livre circulação, compreendendo esta os direitos de ir, vir, ficar, parar, estacionar, a não ir, a não ficar, a não vir de algum lugar. Qualquer decisão que exija o real ou iminente perigo de prisão para fins de concessão de habeas corpus contraria o pressuposto da garantia de livre circulação (mover, deambular, locomover, ir), implicando em constrangimento ilegal.

            Nenhum dos casos especificados trata, como visto, de “real perigo” ou de risco de iminente de prisão, mas de uma garantia de livre circulação, incluindo a possibilidade de ficar, parar, estacionar em determinado lugar.


[1]              Curso de Direito Constitucional Positivo.  

[2]              História e Prática do Habeas Corpus.

[3]              Idem.

Sobre o autor
R. Carlyle

MBA em Poder Judiciário pela Fundação Getúlio Vargas – Escola de Direito Rio (2009). Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Ceará - UFCE, obtendo o título de Master in Science com a dissertação Controle Jurisdicional das Comissões Parlamentares de Inquérito (2002). Participou II Curso de Especialização em Direito Civil pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN (1989). Bacharelou-se em Ciências Jurídicas e Sociais - DIREITO pelo Instituto de Ciências Humanas de Mossoró da atual Fundação Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – FUERN (1986). Livros publicados A “Reinvenção” do Judiciário. Scortecci editora, SP, 2014. Desafios ao Direito no Século XXI. Scortecci editora, SP, 2011. Temas de Direito. Scortecci editora, SP, 2011. Juiz Presidente da Segunda Turma Recursal dos Juizados Especiais Cíveis, Criminais e da Fazenda Pública do Rio Grande do Norte (2017-2020). Juiz de Direito titular da 3ª Vara Criminal da Comarca de Natal (Capital), desde 1997. Juiz Auxiliar da Presidência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte (biênio 2013-2014). Juiz suplente do Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Norte (biênio 2005-2006). Juiz Auxiliar do Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Norte nas Eleições de 2006. Professor, orientador e examinador no Curso de Preparação à Magistratura (especialização lato sensu) da Escola da Magistratura do Rio Grande do Norte - ESMARN./TJRN. Juiz Preceptor nos Cursos de Formação Inicial de Magistrados na ESMARN/TJRN. Lecionou “Sentença Penal” na Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Norte – FESMP; “Direito Penal” no curso de Direito da Faculdade Natalense para o Desenvolvimento do Rio Grande do Norte – FARN (2001); e “Processo Penal” no curso de Direito da Universidade Potiguar – UNP (1999-2000). Ministrou aulas de “Direito Eleitoral” na Escola Superior da Magistratura do Rio Grande do Norte e de “Direito Processual Penal” na Academia de Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Norte.

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