Conforme preceitua o Código de Processo Civil de 2015, em seu artigo 373 (BRASIL, 2015) cabe à parte autora comprovar os fatos constitutivos de seu direito e ao réu comprovar a existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor. Esta é a regra a ser utilizada no processo civil, no entanto, o parágrafo primeiro do caput do artigo em questão também faculta ao juiz a inversão do ônus da prova nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir os encargos nos termos do caput ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário.
Sobre o ônus da prova leciona Elpídio Donizeti (2017, p.313):
[...] Da leitura do art. 373, pode-se visualizar que o CPC/2015 estabelece, aprioristicamente, a quem compete a produção de determinada prova. Regra geral, ao autor cabe provar os fatos constitutivos de seu direito e ao réu incumbe provar os fatos impeditivos, modificativos e extintivos do direito do autor. Esse regramento, no entanto, é relativizado pelo § 1º, o qual possibilita a distribuição diversa do ônus da prova conforme as peculiaridades do caso concreto, atribuindo-o à parte que tenha melhores condições de suportá-lo. Trata-se da distribuição dinâmica do ônus da prova, que se contrapõe à concepção estática prevista na legislação anterior (art. 333 do CPC/1973)
Evidentemente, a decisão deverá ser fundamentada, justificando as razões que convenceram o juiz da impossibilidade de produção da prova por uma das partes. Ademais, essencial ater-se ao dever do juiz de permitir que a parte possa se desincumbir do ônus probatório, conforme disposto na parte final do § 1º. Com efeito, a inversão do ônus da prova não pode violar o contraditório, impedindo que a parte sucumba em momento sentencial por não ter cumprido ônus que não lhe era devido anteriormente. Situação como essa configuraria decisão surpresa, violando o art. 10 do CPC/2015.
Assim, via de regra, em situação envolvendo ilícito civil, incumbe à parte autora que está pleiteando a responsabilização civil da parte ré, comprovar que este agiu com dolo ou culpa na prática de ato ilícito que lhe gerou alguma espécie de dano, demonstrando o nexo causal entre a conduta do suposto causador do dano e o dano em questão. Sobre o ilícito civil, dispõe o Código Civil (BRASIL, 2002), em seu art. 186, que “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”. Ainda sobre a responsabilidade civil, o Código Civil também prevê hipóteses em que a discussão sobre dolo ou culpa é irrelevante, pois a responsabilidade pela ocorrência do ato ilícito é objetiva. Logo, basta que se comprove a ocorrência do ato ilícito, o nexo causal e o dano para configurar a responsabilidade civil e o consequente reparo do dano sofrido.
No que tange aos atos ilícitos em decorrência de acidentes de trânsito a regra é a da responsabilidade subjetiva, ou seja, o autor da ação deve comprovar que houve dolo ou culpa na conduta do causador do dano. Ocorre que, em que pese esta seja a regra, na decisão de recente recurso especial, o STJ afirmou ser possível a inversão do ônus da prova em alguns casos envolvendo acidentes de trânsito. Logo, ainda que não seja o caso de uma responsabilização objetiva, a inversão do ônus da prova é uma situação que favorece a vítima, já vulnerabilizada pelo dano sofrido.
Esta situação – de inversão do ônus da prova – fora admitida em um caso envolvendo uma ação de responsabilidade civil decorrente de acidente de trânsito, em que o condutor do veículo automotor fora presumido culpado, pois se encontrava em estado de embriaguez. Assim, entendeu-se que caberia ao condutor do veículo comprovar a ocorrência de alguma excludente do nexo de causalidade. O informativo 644 do STJ trouxe as seguintes informações do inteiro teor do REsp 1.749.954-RO (STJ, 2019):
Inicialmente, consigna-se que as responsabilidades administrativa e criminal, autônomas entre si, não se confundem com a responsabilidade civil advinda de acidente de trânsito. Porém, é inegável que a inobservância de regra administrativa de trânsito ou a prática de crime de trânsito pode repercutir na responsabilização civil, na medida em que a correlata conduta evidencia um comportamento absolutamente vedado pelo ordenamento jurídico, contrário às regras impostas. Efetivamente, a inobservância das normas de trânsito pode repercutir na responsabilização civil do infrator, a caracterizar a sua culpa presumida se tal comportamento representar, objetivamente, o comprometimento da segurança do trânsito na produção do evento danoso em exame. É preciso ressalvar que não é todo e qualquer comportamento contrário às normas de trânsito que repercute na apuração da responsabilidade civil. A caracterização da culpa presumida se dá quando o comportamento se revela idôneo a causar o acidente no caso concreto, hipótese em que, diante da inversão do ônus probatório operado, caberá ao transgressor comprovar a ocorrência de alguma excludente do nexo de causalidade, tal como a culpa ou fato exclusivo da vítima, a culpa ou fato exclusivo de terceiro, o caso fortuito ou a força maior. Assim, é indiscutível que a condução de veículo em estado de embriaguez, por si, representa gravíssimo descumprimento do dever de cuidado e de segurança no trânsito, na medida em que o consumo de álcool compromete as faculdades psicomotoras, com significativa diminuição dos reflexos; enseja a perda de autocrítica, o que faz com que o condutor subestime os riscos ou os ignore completamente; promove alterações na percepção da realidade; enseja déficit de atenção; afeta os processos sensoriais; prejudica o julgamento e o tempo das tomadas de decisão; entre outros efeitos que inviabilizam a condução de veículo automotor de forma segura, trazendo riscos, não apenas a si, mas, também aos demais agentes que atuam no trânsito, notadamente aos pedestres, que, por determinação legal (§ 2º do art. 29 do CTB), merecem maior proteção e cuidado dos demais.
Deste modo, compreendeu-se que a inobservância de regras previstas no Código de Trânsito Brasileiro, desde que esta inobservância represente, objetivamente, o comprometimento da segurança do trânsito na produção do evento danoso, enseja a culpa presumida do transgressor em sua responsabilização civil. Assim, para que seja possível a culpa presumida do infrator, reitera o julgado, é necessário que seja um comportamento idôneo a causar o acidente no caso concreto, fato este que ocorre nos casos de acidente de trânsito envolvendo condutor embriagado.
Registra-se, assim, um importante entendimento jurisprudencial, em que a vítima do acidente de trânsito, que obteve danos materiais e/ou morais com a ocorrência deste evento danoso causado por motorista embriagado, desincumbe-se do ato de comprovar que o condutor agiu com culpa ou dolo, pois a culpa em questão é presumida quando o condutor descumpre norma de trânsito que objetivamente é capaz de comprometer a segurança no trânsito.
Referências
BRASIL. Lei nº 13.105. Código de Processo Civil. In: Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 16 mar. 2015. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm> Acesso em 05 mai.2019
______. Lei nº 10.406. Institui o Código Civil. In: Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 10 jan. 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm> Acesso em 05 mai.2019
DONIZETI, Elpídio.Novo Código de Processo Civil Comentado. São Paulo: Atlas, 2017.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Informativo 644. In: Informativo de Jurisprudência, Brasília, DF, 12 abr. 2019. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/jurisprudencia/externo/informativo/> Acesso em 08 mai. 2019