- Introdução
Cada trabalho científico tem uma finalidade específica. Os chamados Trabalhos de Conclusão de Curso (TCC) são gênero do qual fazem parte os trabalhos técnicos, as monografias, projetos de iniciação científica, etc., e congregam o requisito formal último para, como o próprio nome já diz, a conclusão de um curso de graduação ou de pós-graduação lato sensu. Já para uma dissertação de mestrado, é exigido o conhecimento amplo e profundo sobre a área na qual o candidato pretende se sagrar “mestre” em determinado assunto, mas não que o seu trabalho seja inédito, i.e., inove no estado da arte do campo estudado. Esse papel é legado às teses de doutorado.
As teses de doutorado, portanto, possuem um standard de qualidade superior aos demais trabalhos acadêmicos, uma vez que o seu resultado deve, necessariamente, trazer uma inovação no estado da arte da área do conhecimento abrangida. Essa inovação pode advir de uma abordagem diferente a um problema conhecido, da utilização de uma abordagem conhecida a um problema diferente, da congregação entre duas soluções independentes em uma nova solução, etc.
Independentemente da estratégia adotada pelo doutorando, alguns pressupostos são essenciais em toda tese de doutorado: ela deve atender a um problema de pesquisa bem delimitado. Em outras palavras, a tese de doutorado deve trazer uma solução inédita para um problema bem delimitado. Para tanto, é necessário que o doutorando exponha, desde logo, em sua introdução qual é o problema que irá endereçar, bem como a estratégia que utilizará no desenvolvimento de sua tese para responder a esse problema de pesquisa. Já no corpo do texto, é essencial que o doutorando esclareça o estado da arte da área de conhecimento abrangida de sorte a ficar claro para o leitor qual é a inovação trazida pelo seu trabalho.
Por fim, o seu trabalho, conquanto não precise contar com a aderência de todos os seus examinadores (eles podem discordar de algumas conclusões ou resultados, mas aprovar o candidato) deve ser, no mínimo, coerente (i.e., não conter contradições insanáveis que comprometam o raciocínio desenvolvido na tese), conciso (i.e, conter apenas o essencial para o desenvolvimento da tese) e convincente (i.e., os argumentos da tese devem ser suficientemente robustos).
Levando-se em consideração todos esses aspectos, foi proposta a análise da tese de doutorado do Professor Alexandre Araújo Costa, sob a orientação do Professor Miroslav Milovic, para obtenção do título de Doutor em Direito em 2008 pela Universidade de Brasília. Segundo o próprio autor, a sua tese buscou mostrar a gradual historicização do pensamento hermenêutico, tanto na filosofia, quanto no direito na medida em que se abriu espaço para a constituição de uma “hermenêutica alinhada com o historicismo presente nas atuais concepções da filosofia hermenêutica”.
De plano já se observa, portanto, que o autor não deixa claro qual é o problema que sua tese pretende endereçar, mas que traçará um paralelo histórico na construção do conceito de hermenêutica, tanto na filosofia como no direito. Um trabalho desse gabarito, conquanto extremamente útil para a comunidade científica, não parece ser suficiente para uma tese de doutoramento, conforme os critérios elencados acima.
O que se investigará, no presente trabalho, portanto é se o trabalho em análise reúne as condições necessárias para ser considerado uma tese de doutorado que venha a inovar no estado da arte pretendido. Para tanto, na primeira parte do artigo, o trabalho será rapidamente revisto, com destaque para os principais pontos encontrados pelo autor. Já na segunda parte, será feita uma crítica à estratégia adotada durante toda a tese para, enfim, concluir se esta pode, ou não, ser considerada uma tese de doutorado.
- Descrição do Trabalho
O trabalho do autor está dividido em duas grandes partes (que chama de livros), endereçando as duas áreas do conhecimento humano analisadas: a hermenêutica filosófica e a hermenêutica jurídica. Aparentemente, a intenção do autor seria, justamente, delimitar o estado da arte nessas duas áreas e contextualizar o autor para o que viria depois.
Contudo, logo no seu “prólogo”, o autor deixa claro que o “crescimento do seu texto” foi menos planejado do que “orgânico”, i.e., teria seguido as “intuições e as necessidades de cada momento” pretendendo-se, assim, como uma “narrativa da gradual historicização do pensamento hermenêutico, tanto na filosofia quanto no direito”. Mais a frente, no “prelúdio”, o autor confessa que o seu trabalho é, em verdade, um “discurso sobre os modos de compreensão do direito” e que “não é nem pretende ser um trabalho científico”:
Portanto, este não é nem pretende ser um trabalho científico. Mais propriamente, ele poderia ser qualificado de hermenêutico: uma mirada hermenêutica sobre a hermenêutica jurídica. Mas o que significa essa frase obscura, quase esotérica? Fazer essa pergunta já nos coloca no centro do problema, pois esta é uma questão de interpretação.
Concede-se que o autor é extremamente sincero, pois avisa, desde logo, ao seu leitor, que o seu trabalho não é, nem pretende ser, científico, mas hermenêutico no sentido de ser um esforço interpretativo da evolução do próprio ato de interpretar, ou seja, de compreender os seus sentidos.
Muito bem. Entretanto, ao abandonar qualquer cientificidade em seu trabalho, a abordagem do autor acaba por dificultar a leitura, pois, sem se saber aonde o autor deseja chegar, fica difícil acompanhar o seu raciocínio, confessadamente circular em muitos trechos. Nada obstante, seguindo com a análise do texto, o autor inicia a sua trajetória reconstrutivista e interpretativa do desenvolvimento da hermenêutica filosófica, abordando uma estruturação sistemática do seu desenvolvimento em detrimento da cronologia histórica. Para tanto, ele desenvolve a hermenêutica como uma técnica de arqueologia de sentidos, para, então, discorrer sobre as interações entre a hermenêutica e o método, a ciência e a reflexividade interna, passando pela discussão entre hermenêutica e linguagem, mitologia e, finalmente, o direito para concluir que o direito possa ser visto como uma narrativa, i.e.,
[...] como um discurso que não apenas esclarece fatos e estabelece normas, mas como um relato mitológico que simultaneamente reflete imaginários e os funda, que cria e consolida os arquétipos com os quais constituímos o nosso universo simbólico, que é a realidade na qual vivemos.
[...]
E é justamente na medida em que abre espaço para uma reflexão produtiva sobre os sentidos produzidos nos processos de interpretação que considero que o pensamento hermenêutico é adequado ao enfrentamento das questões contemporâneas acerca do direito, especialmente da interpretação dos textos jurídicos.
Seguindo, agora, para a segunda parte da tese, o autor adota a mesma estratégia, porém confrontando a evolução da hermenêutica filosófica desenvolvida na parte anterior, com os principais avanços em termos de filosofia jurídica ao longo da história. Para tanto, parte da evolução do naturalismo ao positivismo jurídico, criticando o legalismo positivista e confrontando-o com o que chamou de positivismo normativista. Apresenta, também, as principais discussões do positivismo sociológico e sua influência sobre o desenvolvimento do positivismo jurídico, do chamado neopositivismo kelseniano e a construção do chamado senso comum dos juristas. O autor, então, confronta essas discussões com o “cruzamento de caminhos” entre a hermenêutica filosófica e jurídica para introduzir a teoria da argumentação que pode, ou não ser, ultrapassada para a fundação de uma pretensa nova mitologia jurídica.
E o trabalho do autor se encerra assim: em aberto. Em outras palavras, o autor não propõe nenhuma solução para a série de questionamentos que faz ao longo de seu trabalho, nem apresenta o problema central de sua tese que teria sido respondida com o seu esforço. A bem da verdade, o autor confessa que o trabalho não teria uma conclusão:
Este trabalho não tem conclusão, no sentido típico da palavra, porque ele não se apresenta propriamente como a tentativa de confirmação de uma hipótese. Em vez disso, ele conta uma história. Uma das possíveis versões da história do desenvolvimento da mentalidade hermenêutica, no Livro I, e das aventuras da hermenêutica jurídica nos dois últimos séculos, no Livro II. Em especial, ele narra uma visão de como a historicidade afirmou-se gradualmente nesses dois âmbitos hermenêuticos.
O trabalho é, em conclusão dessa parte deste artigo, apenas uma narrativa, ou uma cartografia sobre a hermenêutica filosófica e jurídica, com uma pretensão descritiva, mas não crítica ou propositiva. O autor chega a afirmar, portanto, que não buscou “encontrar um sentido imanente aos fatos, mas de traçar uma perspectiva capaz de oferecer sentido narrativo aos elementos essenciais que compõem o mosaico de fenômenos que se resolveu alinhavar”.
- Análise do Trabalho
A tese de Alexandre Costa não parece ser uma tese: confessadamente, não é um trabalho científico, não se propõe a endereçar nenhum problema, não apresenta nenhuma inovação no estado da arte, não se pretende, sequer, a criticar uma ou outra posição existente, quer na hermenêutica jurídica, quer na filosófica.
O trabalho tampouco mostra como a hermenêutica filosófica poderia ser utilizada para rever ou analisar sob outro enfoque a própria hermenêutica jurídica. Também não mostra como a fronteira do conhecimento em termos de técnicas ou métodos da hermenêutica filosófica podem contribuir para o que hoje se entende como hermenêutica jurídica. Ainda, mesmo quando apresenta elementos de relativização da chamada “verdade dos fatos”, i.e., daquela única e correta interpretação da realidade, não o faz de maneira propositiva, adotando uma posição em detrimento das demais.
E não o faz porque, repita-se, a sua tese não endereça qualquer problema de pesquisa. Não há uma única problemática social, jurídica ou filosófica que norteie a tese em discussão. Ela está orientada, sim, a um esforço descritivo e narrativo imenso para compilar de forma compreensível e organizada o desenvolvimento da hermenêutica jurídica e da hermenêutica filosófica. Contudo, se a pretensão de uma tese é trazer uma evolução, um desenvolvimento, uma inovação no estado da arte, a tese de doutorado de Alexandre, não pode ser qualificada dessa maneira.
Além disso, em razão de sua construção despreocupada ou, como o próprio autor chamou, de orgânica, a compreensibilidade do texto ficou bastante comprometida. Desse modo, ficou bastante difícil de acompanhar as digressões do autor a respeito da hermenêutica da própria hermenêutica, os giros linguísticos e a construção da “pós-verdade”. Vale dizer, o seu trabalhou tampouco restou coerente.
Por sua vez, ao deixar de endereçar um problema em específico, o autor abandonou qualquer preocupação apresentar suas ideias e sustenta-las por meio de fundamentos robustos. Dito de outra forma, a tese estudada não se pretendeu convencer o seu leitor a aderir às suas ideias, mormente porque elas jamais foram apresentadas ou, se o foram, não ficaram claras.
Em conclusão, a despeito de todas as duras críticas feitas acima, a verdade é que o autor, como já dito, jamais pretendeu enganar o seu leitor: logo no prólogo e no prelúdio ele já deixou claras as pretensões de seu trabalho. Se um transeunte resolve adentrar na montanha-russa mais chata do mundo, não pode reclamar de não ter se divertido. A leitura do trabalho de Alexandre deve ser feita nos estritos limites que ele pôs: não é um trabalho científico, não haverá o endereçamento de problemas, não haverá inovação. É apenas uma narrativa da hermenêutica. Contudo, a despeito da indiscutível utilidade de um trabalho como esse, não é legítimo qualifica-lo como uma tese de doutorado, pelos motivos já expostos.