A “nova” política de drogas e o fim da redução de danos como retrocesso

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Este artigo analisa a mudança da política nacional de drogas decretada pelo governo Bolsonaro em março de 2019 com a percepção de retrocesso na substituição da política de redução de danos pelo financiamento de comunidades terapêuticas.

 


A “nova” política de drogas e o fim da redução de danos como retrocesso

Resumo:

Este artigo analisa a mudança da política nacional de drogas decretada pelo governo Bolsonaro em março de 2019 com a percepção de retrocesso na substituição da política de redução de danos pelo financiamento de comunidades terapêuticas calcadas na abstinência forçada.

Introdução

Em março de 2019 foi divulgada pelo governo Bolsonaro, por meio do Decreto 9761, a nova política de drogas, baseada na abstinência no tratamento da dependência química e no investimento em comunidades terapêuticas, representando um retrocesso em relação à política de redução de danos (RD) que vinha sendo desenvolvida no país e que é a prática mais usada nos países desenvolvidos.

Enquanto o programa de redução de danos é realizado nos Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS AD), contando com uma equipe multiprofissional - psiquiatras, psicólogos e outros profissionais de saúde, as comunidades terapêuticas são majoritariamente vinculadas a igrejas e organizações religiosas bem como não dispõem de aparato médico.

Em geral essas comunidades são marcadas por uma estrita rotina de atividades de oração e trabalho, e boa parte delas localiza-se em fazendas distantes de áreas urbanas visando o distanciamento completo do usuário a tudo que lembre o vício. Trata-se de metodologia inversa da redução de danos, atuando no sentido de o usuário assumir a responsabilidade em torno de suas ações cotidianas.

Não adianta isolar o indivíduo se será na sociedade ampla que ele deverá lidar com as questões que o levaram às drogas. São emoções construídas nas relações sociais turbulentas e não resolvidas que desaguam na dependência química. Não se questiona aqui a intenção daqueles que trabalham nessas comunidades, muitos provavelmente bem intencionados, mas no formato da abordagem adotada, atrelada tão somente à crença religiosa e distante da rede de saúde.

Segundo reportagem do jornal O Globo de 24 de março de 2019, são aproximadamente 2 mil comunidades terapêuticas existentes no Brasil, das quais 496 receberão um total de R$ 153,7 milhões por ano do governo federal – as que assinaram contrato com o Ministério da Cidadania. Outro edital está em vias de publicação, o que deverá ampliar o número de comunidades financiadas pela gestão Bolsonaro. O valor é próximo do que recebem os 331 Caps AD do país, com investimento anual de R$ 158 milhões. Estes, por sua vez, deverão passar por mudanças para acolher o novo modelo, segundo afirmou o secretário nacional de cuidados e prevenção às drogas do Ministério da Cidadania, Quirino Cordeiro.

1. A política de redução de danos

Em termos históricos, a Redução de Danos tem origem no ano de 1926, na Inglaterra, com a publicação do Relatório Rolleston, a partir do qual se indicava a prescrição médica de opiáceos para dependentes químicos de heroína, como forma de prevalecer os benefícios desta administração frente aos potenciais riscos da síndrome de abstinência. Já a primeira iniciativa comunitária, surgiu na Holanda em 1984, como reivindicação de usuários de drogas injetáveis, que preocupados com os elevados índices de Hepatite B entre si, por conta do compartilhamento de seringas, demandaram ações do governo para a contenção da epidemia, e a partir de então foi criado o primeiro programa de distribuição e troca de agulhas e seringas.

No Brasil, está em vigor no Ministério da Saúde desde 2002, contudo a primeira experiência em RD no país ocorreu em 1989 na cidade de Santos, com a distribuição de seringas estéreis entre usuários de drogas injetáveis com o objetivo de conter a disseminação do HIV/AIDS (CRUZ, 2011). Fonsêca (2012) destaca que a partir de 2004 houve uma mudança na política de Redução de Danos, de modo que a AIDS deixou de ser o foco da redução e o crack assumiu este lugar. A RD passa a ser compreendida como uma estratégia na Política de Atenção Integral a Usuários de Álcool e outras Drogas. Contudo, na prática, os projetos de redução de danos continuaram tendo dificuldade de implementação (FÔNSECA, 2002). Em primeiro lugar, majoritariamente continuaram a ser desenvolvidos à margem do SUS, permanecendo desarticulados com outras instâncias. Ademais, seu espectro de ação em nosso meio é limitado, encontrando forte tensionamento com outros setores do aparelho estatal, posicionados a favor de uma política antidrogas, como foi abordado acima. Não à toa o governo Bolsonaro encontrou forte apoio em setores conservadores para a alteração da política de drogas.

Sua metodologia apresenta uma inovação que deve ser valorizada numa luta mais humana em torno do tema. Dentre vários méritos, a RD enfatiza a promoção de serviços de fácil acesso e pronto acolhimento como alternativa às abordagens de alta exigência que se tornam política de governo na gestão Bolsonaro, as quais exigem a abstinência total como pré-requisito para a aceitação ou permanência do usuário.

A redução de danos parte da consideração de que as pessoas são diferentes, usam drogas de formas distintas e há maneiras diversas de compreender a questão a partir dos vários pontos de vista, incluindo suas dimensões social, espiritual, cultural, psicológica, biológica e jurídica. Apesar da criação de uma rede coletiva e participativa produzir efeitos clínicos altamente significativos, ela não impõe ao usuário, como condição de participação, parar de usar entorpecentes – apesar de ser uma das expectativas. Os profissionais que atuam nesse programa devem assumir uma postura compreensiva e inclusiva, de modo que os serviços de tratamento e saúde devem estabelecer com o usuário relações de cooperação, sem o uso de técnicas hostis ou de confronto, e sim experimentos de acolhimento e escuta.

Entre algumas das estratégias de redução de danos, mencionadas por Fonsêca (2012), estão:

“Terapias de substituição (de drogas “pesadas” por drogas “leves”); terapias de redução do consumo; aconselhamento sobre os riscos presentes no uso; mudança na via de administração; compartilhamento (o usuário e seus familiares tomados enquanto parceiros no tratamento); resgate da cidadania e da autoestima; estabelecimento de parcerias (farmácias, igrejas, centros comunitários, entre outros); ações desenvolvidas especificamente com grupos considerados de risco (travestis e prostitutas; usuários de drogas injetáveis; moradores de rua – crianças e adultos etc.); campanhas de vacinação; monitoramento em ambientes controlados (salas de injeção segura; “coffee shops” etc.); campanhas de relegitimação do uso tradicional de substâncias psicoativas” (2012, p. 31).

2. Alguns casos práticos da redução de danos

Reportagem da revista ÉPOCA (2017) mostra que países que adoraram políticas de redução de danos experimentaram benefícios a partir da sua aplicação. Nessa direção, revela um levantamento da Universidade Pierre e Marrie Currie, publicado em 2006, que constatou terem caído as taxas de incidência de infecção por HIV entre usuários de drogas injetáveis na França e na Espanha: na França, em 1994, 23% deles tinham o vírus. Em 2002 eram 14%. Na Espanha, a prevalência caiu de 38%, em 1996, para 33%, em 2002. Caiu também o número de mortes por overdose: na França houve 588 em 1994, em comparação aos 89 em 2003.  Na Espanha, foram 579 em 1991, em comparação aos 221 em 2002.

Outro exemplo positivo da política de RD está em dados divulgados pela prefeitura de São Paulo em 2016, mostrando o êxito do programa social De Braços Abertos implementado pela gestão do prefeito Fernando Haddad, que tem como objetivo dar moradia em hotéis, ofertas de emprego, alimentação e capacitação profissional para usuários de crack que se reuniam no centro de São Paulo. Segundo os dados de uma pesquisa realizada com 400 pessoas, 88% dos participantes do programa afirmaram ter reduzido o consumo de crack em média em 60% - de 42 pedras por semana para 17 (FREITAS, 2016).

No entanto, esse formato de política foi deixado de lado a partir da gestão Dória a frente da prefeitura. Exemplo das novas ações foi a ação determinada pela prefeitura paulista em 2017 para executar remoções e internações compulsórias de usuários de crack da Cracolândia.

2. A política antidrogas e o paradigma da abstinência

Numa análise mais profunda da micropolítica da prática de guerra às drogas, e interessados no tratamento para usuários de drogas, Passos e Souza (2011) analisam a proximidade entre a política antidrogas e o paradigma da abstinência, de modo que a abstinência se torna um eixo articulador entre a justiça, a psiquiatria e a moral religiosa. 

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A articulação entre criminologia e psiquiatria no Brasil vem de um diálogo iniciado na segunda metade do século XIX, numa interlocução direta com o Direito Penal. O problema é que, apesar das alianças, a relação entre criminologia e psiquiatria não foi harmônica e complementar. Mencionam os autores:

“A ambição da psiquiatria encontrou resistência no interior do próprio Direto Penal, principalmente no século XX. Embora a psiquiatria tenha conquistado um espaço dentro do Direito Penal, os juristas determinaram um limite para essa atuação. É dentro deste jogo de poder que o usuário de drogas ora se vê perante o poder da criminologia, ora diante do poder da psiquiatria; ora encarcerado na prisão, ora internado no hospício” (PASSOS; SOUZA, 2011, p. 157).

Em decorrência disso, a histórica articulação entre poder psiquiátrico e direito penal pode ser entendida como uma das forças contrárias à implementação da redução de danos no Brasil. A produção histórica do estigma do usuário de drogas como uma figura perigosa ou doente nos permite compreender parte dos problemas que a RD passa a enfrentar quando essa política se torna um método de cuidado em saúde que acolhe as pessoas que usam drogas como cidadãos de direitos e sujeitos políticos.

Ademais, outra dificuldade da política de redução de danos, está na moral religiosa. Explicam Passos e Souza (2011):

“A moral cristã compõe, junto com a justiça e a psiquiatria, uma rede de instituições que tem por finalidade única e comum a abstinência. Porém, ao contrário da psiquiatria que se volta mais para a doença mental e da justiça que se volta mais para a delinquência, a moral religiosa inclui um terceiro elemento, a associação do prazer ao mal. O prazer da carne, que frequentemente tem sido associado ao uso de drogas, é objeto histórico de intervenção do poder pastoral e, atualmente, se associa ao poder disciplinar; mas a gênese desse poder é muito mais antiga do que a própria disciplina. O poder da Igreja sobre os usuários de drogas se justifica muito mais por uma problemática do "prazer" do que, exclusivamente, pela problemática da "razão".  Enquanto a psiquiatria e a criminologia produziam verdades sobre a razão e práticas de "cura" do anormal, fosse louco ou criminoso, a moral cristã atém-se aos desvios da "carne", aos prazeres apetitosos” (2011, p. 158).

Considerações finais

Diante das controvérsias na luta contra as drogas e no tratamento do dependente químico, destaca-se como um dos problemas das comunidades terapêuticas a imposição de que todos têm que abandonar as drogas, sem levar em conta as particularidades, o que nos leva a indagar: E quem não conseguir? Será criminalizado e estigmatizado mais do que já é? Além disso, essas comunidades tiram o sujeito do contexto no qual faz uso e dos espaços onde há a oferta. Ao sair da comunidade o indivíduo não aprendeu a lidar com o contexto no qual deve seguir a vida. Logo, ele volta para casa e tem grande chance de recaída.

A hipocrisia por trás das políticas de abstinência associa-se à criminalização de substâncias que estão atreladas às dificuldades sociais vividas por uma sociedade desigual, capitalista e atualmente em grave crise econômica. Nesse horizonte, Farias e Barros (2011) salientam que, em um ambiente socioeconômico caracterizado pela precarização das relações de trabalho, pelo desemprego e pelo apelo consumista afinado com as premissas econômicas neoliberais, tem-se uma situação de exclusão social e de cidadania. Assim, o tráfico se mostra como uma atividade econômica possibilitadora de inclusão, mesmo que marginal, na ordem capitalista.

Com isso, a Redução de Danos, que vinha se consolidando como um importante movimento lastreado nos direitos humanos, e baseado numa discussão democrática e atualizada, tende a perder espaço para um método retrógrado, baseado na abstinência forçada e de forte apego religioso.

Referências:

ÉPOCA. Cracolândia: as políticas de redução de danos funcionam? Por Rafael Ciscati e Marcela Buscato. Publicado em 14 de junho de 2017. Disponível em: <http://epoca.globo.com/saude/check-up/noticia/2017/06/cracolandia-politicas-de-reducao-de-danos-funcionam.html>. Acesso em: 11 mai. 2017.

FARIA, Ana Amélia Cypreste; BARROS, Vanessa de Andrade. Tráfico de drogas: uma opção entre escolhas escassas. In: Psicol. Soc. [online]. 2011, vol.23, n.3, pp. 536-544. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-71822011000300011&script=sci_abstract&tlng=pt>. Acesso em: 12 mai. 2019.

FONSÊCA, Cícero José Barbosa da. Conhecendo a redução de danos enquanto uma proposta ética. In: Psicologia & Saberes, 2012, vol. 1, n. 1, pp. 11-36. Disponível em: <http://revistas.cesmac.edu.br/index.php/psicologia/article/view/42/21>. Acesso em 11 mai. 2019.

FREITAS, Ana. Quais são os resultados de políticas de redução de danos para usuários de crack. In: NEXO Jornal. Publicado em: 31 de março de 2016. Disponível em: <https://www.nexojornal.com.br/expresso/2016/03/31/Quais-s%C3%A3o-os-resultados-de-pol%C3%ADticas-de-redu%C3%A7%C3%A3o-de-danos-para-usu%C3%A1rios-de-crack>. Acesso em: 12 mai. 2019.

PASSOS, Eduardo Henrique; SOUZA, Tadeu Paula. Redução de danos e saúde pública: construções alternativas à política global de "guerra às drogas". Psicol. Soc. [online]. 2011, vol. 23, n. 1, pp. 154-162. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-71822011000100017>. Acesso em: 12 mai. 2019.

Sobre os autores
Walace Ferreira

Professor de Sociologia da UERJ. Pesquisador. Doutor em Sociologia pelo IESP/UERJ.

Beatriz de Souza Pereira

Graduanda em Psicologia na Universidade Veiga de Almeida (UVA).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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