O problema da (i)mortalidade da alma: Breves considerações acerca da finitude em “A morte de Ivan Ilitch” de Lev Tolstói e a sua relação com o Direito na atualidade

18/05/2019 às 02:26
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A angústia do enfrentamento da morte. O problema da finitude e a objetificação do sujeito frente aos procedimentos (médicos/judiciais). A questão da alteridade e a crise existencial na sociedade líquida: uma Interface entre Direito e Literatura.

Historicamente, os seres humanos perseguiram importantes questionamentos acerca da transcendência, seja no campo filosófico, religioso ou literário. A metafísica platônica buscou superar a idéia puramente da physis, proposta pelos pensadores pré-socráticos, que investigaram a arché, ou seja, o princípio de todas as coisas.

Ademais, sobre a imortalidade da alma, Platão escrevera uma importante obra filosófica denominada “Fédon: diálogo sobre a alma e a morte de Sócrates”, na qual se utilizou do método dialético, com o fim de apresentar argumentos de Sócrates, acerca da imortalidade da alma, do conhecimento na relação corpo e alma (reminiscência) e o destino das almas após a morte.

Partindo do ponto de vista literário, o autor russo Lev Tolstói, apresenta a problemática da finitude em sua obra denominada “A morte de Ivan Ilitch,” sob o prisma daquele que não concebe a alma como imortal. Portanto, o sofrimento do protagonista Ivan Ilitch, um magistrado de segunda instância, personagem compenetrado com o serviço forense, extremamente formalista e burocrata, que fora diagnosticado com uma doença desconhecida, que indubitavelmente o leva a morte.

Durante a novela, percebe-se a fragilidade do sujeito, que cognitivamente concebe a proximidade do fim de sua existência tida como comum e a sua anamnese, diante de uma vida não vivida em sua plenitude. Interessante notar que Ivan Ilitch percebe que se encontra diante do tecnicismo médico, bem similar ao tecnicismo jurídico, que fora utilizado por ele inúmeras vezes durante as instruções processuais. Ilitch, agora doente, encontra-se na mesma condição de “réu”, todavia, o método científico utilizado era o da Medicina.

Assim, Ilitch apesar de ser um renomado e vaidoso magistrado, legalista e sabedor na arte de separar questões pessoais dos casos jurídicos, encontrava-se naquele momento, na condição de objeto do método cientifico de forma bem similar e desumanizada, consoante a um acusado defronte ao juiz de instrução. Ilitch sentia-se na posição de “réu” em relação ao médico.  

Com maestria, Tolstói apresenta a questão de objetificação do sujeito diante dos procedimentos médicos e judiciais. Como demonstrado em Franz Kafka, em “O Processo,” e também “Na Colônia Penal,” torna-se o indivíduo objeto de uma persecução arbitrária, na qual o sujeito é irrelevante para o procedimento a ser utilizado.

Igualmente, Ilicth torna-se mero objeto da análise médica, ou seja, não importa o que está na alma do sujeito (no sentido psicanalítico do termo), massacrado pela espera de uma morte inevitável. Nota-se que o protagonista, torna-se mais um paciente diante de vários outros casos do médico, da mesma forma que Ilitch objetificou inúmeros acusados julgados por ele, pois eram apenas números de capa de processo. Trata-se de uma questão de procedimento, que o irritou profundamente.   

Como bem relatado por Albert Camus em “O Estrangeiro,” há casos judiciais que não são interessantes para o magistrado, da mesma forma Ilicth não tinha importância para o médico, aquele era apenas um paciente comum, sem importância, como todos os outros.

Contudo, durante a narrativa percebe-se que tal situação incomoda fortemente o magistrado Ivan Ilitch. Dessa imersão, recorre-se a genialidade de Fernando Pessoa, em seu poema “Se te queres matar, porque não te queres matar,” quando menciona que se “És importante para ti, porque é a ti que te sentes,”ou seja, o magistrado Ilitch percebeu que a sua importância está no seu sentir e o outro (já que não lhe é sentido), não tem importância no processo judicial ou para o tratamento médico. Ilicth procurava ser formalista, legalista e burocrata, portanto, tinha certa indiferença pelo outro, já que aplicara somente a letra fria da lei, em um sentido positivista do termo.   

Assim, novamente segundo Pessoa, constata-se que o sujeito “És importante para ti porque só tu és importante para ti.” Portanto, no leito de morte Ilicth chegou nessa mesma submersão do poeta português, de que a sua importância não estava nos outros senão nele mesmo. Como em “A Metamorfose” de Kafka, Ilitch se torna um peso para a família, que aguardava ser “liberada” desse infortúnio de cuidar de um enfermo prestes a morrer, que obstou a família do lazer, do divertimento ou de assistir uma peça de teatral anteriormente ajustada.   

Portanto, constata-se em relação ao Direito, sinteticamente, que Tolstói denuncia à falta de alteridade nas relações humanas, consoante a esvaziada percepção da condição do que é o outro pelo magistrado, que se torna paciente, e somente após ser objeto do procedimento médico similar ao jurídico, percebera quão tormentoso é ser tratado com indiferença por aquele que detém o monopólio do procedimento.

Na atualidade, analogicamente, pode se inferir essa mesma constatação na sociedade líquida, defendida por Zygmunt Bauman, pautada por relações cada vez mais artificiais, substanciais, vazias e instantâneas, sendo que “o outro” está a cada dia sendo substituído pelo “eu”, como constatado pela vastidão narcísica nas redes sociais, pela busca diária em postar fotos e vídeos, para preencher o vazio interior.

Essa sociedade inócua de relações verdadeiramente humanas, na qual o “eu” supera o “nós,” de certa forma é retratado por Tolstói, tanto na relação do protagonista com os acusados, quanto em sua relação com o médico. Sem dúvida, a leitura da obra “A morte de Ivan Ilitch” pelos operadores da Ciência do Direito é importante para de certa forma, além de se deparar com questões atinentes a existência e a angústia do homem frente à finitude, trata-se de apontar a crise de alteridade nos procedimentos médicos e judiciais.    

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                                                    REFERÊNCIAS

CAMUS, Albert. O Estrangeiro. Rio de Janeiro: Ed Record, 36ª edição, 2014.

KAFKA, Franz. O Veredicto e Na Colônia Penal.Tradução do Alemão e Posfácio: Modesto Carone. Belo Horizonte: Brasilier, 1986.

TOLTSTÓI, Lev. A morte de Ivan Ilitch. São Paulo: Ed: Mediafashion, 2016. 

Sobre o autor
Paulo Henrique Ribeiro Gomes

Possui pós-graduação em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Pós-graduação em Filosofia e Teoria do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Advogado, inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil (Seção Minas Gerais). Membro do Instituto de Ciências Penais (ICP).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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