Um time de remadores puxa uma elegante canoa até as margens do Charles no início de Junho, sob árvores que mais parecem adornos para o rio. A embarcação segue para o campus do MIT, passando por atletas com jaquetas vermelhas e antigos Volvos, até um distinto senhor vestindo um casaco de lã, que acaba de abandonar o escritório do setor de relações internacionais. Ele escuta o ruído do pesado trânsito de Boston, alegra-se de não compartilhá-lo, e segue a pé até o apartamento onde pretende escapar do calor do verão, espreguiçando-se na frente da TV. Trata-se de um economista de Harvard, profundamente desconfiado da guerra do Vietnam, e prestes a se tornar o homem mais procurado da América. Seu nome: Daniel Ellsberg.
Entre 1964 e 1969, o Professor Daniel Ellsberg foi responsável por um estudo ultra-secreto produzido no Vietnam, enquanto servia em um estabelecimento civil administrado por militares. O Secretário de Defesa Robert McNamara havia lhe encomendado um relatório da situação no país, pretendendo estimular a opinião pública a rever o envolvimento dos EUA na guerra. Os quarenta e sete volumes e as cerca de sete mil páginas demonstraram que o planejamento bélico foi engendrado na longínqua administração Truman, e que o Presidente Lyndon B. Johnson foi responsável pela consulta de alguns especialistas e da opinião pública, antes de enviar as tropas. O estudo, mais tarde apelidado de Dossiê Pentágono, concluiu que a vitória no Vietnam era extremamente remota, praticamente impossível.
O ceticismo do Prof. Ellsberg se transformou em desconforto, quando percebeu que não poderia permanecer calado assistindo a morte de tantos jovens soldados por uma causa perdida. De início, imaginou que poderia expor a questão por meio de algum Senador no solo do Congresso, onde a lei prescreve a imunidade de palavra. Infelizmente, nenhum dos políticos procurados quis se envolver -- qualquer um que disseminasse o documento confidencial poderia ser condenado por espionagem e traição. Buscando uma alternativa, Ellsberg contatou Neil Sheehan, do New York Times, e conseguiu aprovar a publicação de partes do documento.
Assim que as primeiras notas saíram no jornal, os procuradores da Casa-Branca foram acionados e Nixon determinou que agentes destruíssem a credibilidade de Ellsberg. Durante uma ligação telefônica, o Chefe da Casa Branca Alexander Haig chamou o vazamento de “uma brecha devastadora no status de segurança... de magnitude jamais vista.” Os advogados tentaram obter uma liminar para barrar a publicação, enquanto o FBI procurava Ellsberg em Boston e Cambridge. Os agentes arrombaram o seu escritório, buscando elementos para incriminá-lo. Não encontraram nada. O professor estava bem escondido.
De volta ao Salão Oval, Nixon bradava com o Secretário de Estado Henry Kissinger: “As pessoas estão sedentas por este tipo de notícia!”. Referindo-se à Sheehan do Times: “...bastardo; ele foi um bastardo durante anos no Vietnam.” Finalmente, durante a batalha legal em curso, disse: “É... uma destas brigas em que você não sabe... como vai afetá-lo, mas, puxa, é algo que precisamos enfrentar; e, por Deus, é uma briga que eu gosto... Estes bastardos foram muito longe desta vez.” Enquanto os rumores cresciam, o presidente tentava apagar o incêndio com bravatas: “Eu iria até o último andar e demitiria algumas pessoas. Quero dizer, não importa quem ou qual o departamento que esteja fazendo isso, demitiria o do topo.”
Para a sorte de Nixon e das pessoas nomeadas no dossiê, uma apelação deu mais tempo ao governo, censurando a publicação desde cinqüenta dias anteriores à decisão. O governo argüiu que a publicidade do dossiê representava grave risco aos interesses dos Estados Unidos e à ajuda ao Vietnam do Norte. Numa linha de raciocínio muito parecida a de Bush, Nixon murmurou: “Eu acho que é importante encontrar um argumento retórico forte – um nível de segurança máximo – coisas deste tipo, para que possamos obter ressonância do público – não estamos interessados em deixar o caso nas mãos de advogados.” É irônico que Nixon tenha sugerido que os procuradores do governo “empregassem adjetivos ambíguos.”
Na decisão final, a Suprema Corte rejeitou todos os argumentos do governo. Ainda que tenha instituído um garrote para a futura liberdade de imprensa, o Tribunal fixou a diretriz de que é preciso apresentar evidênciais do perigo da publicação de um documento classificado com sigilo. Reconhecendo a censura como um ultraje à opinião pública, autorizou a publicação integral do dossiê.
A repercussão do caso, embora favorável à liberdade de expressão, acabou conduzindo a algumas confusões. O governo tentou suprimir a crítica por mais de duas semanas enquanto soldados morriam no Vietnam, e conseguiu pavimentar o argumento jurídico da “segurança nacional”, que hoje ameaça expandir-se ilimitadamente. Felizmente, as acusações contra Ellsberg por obstrução da justiça foram arquivadas e o Conselheiro da Casa Branca Charles Colson foi acusado pelo mesmo crime, devido a devassa no escritório privado.
O Chefe de Staff H.R. Haldeman resumiu o desastre, parafraseando Donald Rumsfeld: “Do meio das sombras surgiu uma clara lição: você não pode confiar no governo; não pode acreditar no que eles dizem; não pode confiar no seu julgamento. A presunção de infalibilidade dos presidentes foi profundamente abalada por fatos como este, demonstrando que existem pessoas que cumprem ordens, mesmo sabendo que elas são ilegais, e que o presidente também pode estar errado.
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*Napolitano, Andrew. Nação de Ovelhas. Thomas Nelson Inc. 2007. (trad.livre)