A CF/88 não traz muitas coisas: desde a suposição de que inexistem normas claras acerca de como se efetivar os direitos sociais de imediato – apesar da previsão do art. 5º, LXXVIII: “§ 1º As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata” –, até mecanismos institucionais e democráticos que fossem revisores do Supremo Tribunal Federal (recall judicial, veto popular), a fim de que não se plasmasse continuamente esse tipo de “ditadura judicial” – ou o próprio recall revogatório do Executivo . Para este último caso estuda-se uma emenda constitucional, permitindo que – em referendo popular, e com aprovação de 10% dos eleitores presentes no último pleito – fosse retirado o trono de quem está no poder.
Essas questões trazem ao debate constitucional variadas implicações, mas, sobretudo, uma em especial: a administração democrática do Poder Político, em suas várias dimensões e institucionalidades. Não bastaria, por exemplo, que a Constituição Federal de 1988 estabelecesse deveres, obrigações, limitações e contenções ao Poder Público. Se não fossem incrustrados meios de se efetivar o que chamamos de “cidadania em concerto”, como imersão popular na democracia, como Ato Pedagógico do “fazer-se política”, a Constituição Cidadã seria refratária ao Princípio Democrático. E este é o caso, precisamente, da imposição de uma Vontade “da” Constituição (expressa desde o Preâmbulo) como forma essencial da imersão e do lastramento da cidadania ativa (referendo, plebiscito, iniciativa popular) e por meio do “autogoverno”.
Esta é uma das principais observações trazidas pelo jurista português J.J. Gomes Canotilho (2018) ao assim referendar nossa alegação: “A República é ainda uma ordem de domínio – de pessoas sobre pessoas –, mas trata-se de um domínio sujeito à deliberação política de cidadãos livres e iguais” (p. 48).
Observa-se a interposição da autodeterminação política, do autogoverno, da auto delimitação institucional, sem dúvida, mas como Ato Fundante e fundamental da CF/88 (“uno actu”) e que consubstancia insumos à “reserva de cidadania”: na origem da “cidadania em concerto”. Outrossim, é importante não confundir autogoverno com autogestão, como exposto na Comuna de Paris (1871), em que o povo ditava as leis, praticava a legalidade e a julgava, diretamente. Nem mesmo o Orçamento Participativo chegou a essa pretensão. De todo modo, autogoverno implica em autocontenção do Poder Político e, se podemos falar assim, em “autoconcertação da cidadania”.
Pois bem, com base principiológica na condição humana de “fazer-se política” (“hominização”), intransferível e inamovível – e ponderável apenas quanto à forma de se aprofundar e não no conteúdo, tal a sina humana decorrente do Princípio da Sociabilidade e da Dignidade da Pessoa Humana –, a CF/88 reacende a Carta Política.
Como Constituição Cidadã, a CF/88 aplica-se ao aprofundamento democrático da cidadania – vista como inclusiva, participativa, popular, ativa – e, sob este princípio, insere-se como Lei Fundamental. Pois, é da soberania popular (tal qual Processo Constituinte) que se avoluma o Processo Civilizatório: é este o espírito deflagrador sob o qual se mede a CF/88 como Carta Política. Nenhuma interpretação constitucional – menos ainda enquanto exegese de poder (“ex parte principis”) –, para ser justa e efetiva, “fraterna, pluralista e sem preconceitos”, pode admitir premissa inferior a esta.
Por isso, sob este escopo, dizemos que a CF/88 patrocina a “cidadania em concerto”, a partir dos pontos de inflexão da condição humana trazida pela Carta Política: Lei Fundamental iluminista, humanista, social/socialista como aporte da Justiça Social. Do contrário, quando desafina a democracia civilizatória, aí sim, precisa-se de conserto a fim de enfrentarmos o “fascismo pós-moderno” das redes sociais.
A contenção da cultura fascista é exposta com galhardia pela Constituição de 1988, falta agora é sua aplicação criminal, diante dos atentados e das graves violações dos direitos humanos fundamentais.
CANOTILHO, J. J. Gomes (et. al.). Comentários à Constituição do Brasil. 2ª. ed. São Paulo : Saraiva Educação, 2018.