ANÁLISE DA PRÁTICA CRIMINOSA DO ABORTO NO BRASIL E O ESTUDO COMPARADO DA DESCRIMINALIZAÇÃO EM PAÍSES DA AMÉRICA LATINA
Amanda de Souza Rodrigues[1]
Enio Walcacer[2]
RESUMO: O presente artigo visa tecer uma análise comparada do instituto do aborto no Brasil em relação aos países da América Latina no que se refere aos avanços e retrocessos no campo dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, evidenciando a temática da descriminalização do aborto. O estudo visa compreender como a criminalização do aborto, tal como ocorre hoje na legislação vigente, atinge de modo coletivo o direito à saúde das mulheres e quais as possíveis consequências da legalização do aborto no Brasil e nos países latinos. O método de estudo a ser utilizado no presente artigo pode ser compreendido como bibliográfico-documental e quanto ao procedimento utilizado é o exploratório, o mesmo aprimora as ideias ou descobre intuições.
PALAVRAS-CHAVE: Aborto; Saúde; América Latina; Descriminalização.
1. INTRODUÇÃO
O aborto é compreendido como uma técnica milenar que nem sempre foi interpretada de modo clandestino ou socialmente reprovada. A discussão que versa sobre os direitos reprodutivos e acerca da descriminalização do aborto na América Latina se fundamentou a partir de forças distintas a fim de contribuir para a formação de um quadro mais polarizado e mediante os anseios da sociedade, que está em constante evolução.
Em consonância com os dados fornecidos pelo Ministério da Saúde, o aborto constitui a 5ª causa de morte materna no País. Em 2016, dos 1.670 óbitos causados por problemas relacionados à gravidez, ao parto ou ocorridos até 42 dias depois, 127 foram devido ao abortamento. (BRASIL, 2016)
Através de um estudo realizado com o título "Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da saúde" disponibilizado pelo Instituto de Pesquisas Aplicadas - IPEA, aferiu que um índice de 7,1% dos estupros ocorridos em 2014 resultara em gravidez, de acordo com estatísticas fornecidas pelo Sistema Único de Saúde. O estudo apontou que dentre as mulheres vítimas grávidas como consequência do estupro, 19,3% realizaram aborto previsto em lei. Essa proporção cai para 5,0% entre adolescentes e 5,6% entre crianças. (IPEA, 2014)
Nesse contexto, as medidas que se referem à saúde pública adotadas pelo Estado levam em conta, dentre outras características, o artigo 196 da Carta Magna de 1988, que dispõe que o Estado detém o compromisso com a tomada de medidas políticas, sociais e econômicas a fim de promover e recuperar a saúde da população, a fim de reduzir nocividades ao meio social. O aborto é a razão para que inúmeras mulheres procurem clínicas clandestinas para realizarem a prática que, em muitas vezes, pode comprometer a vida da gestante tendo em vista os ambientes precários e insalubres encontrados por quem não dispõe de muitos recursos financeiros para realização do aborto.
O debate acalorado frente à questão da descriminalização e suas consequências ainda gera diversos questionamentos e, muitos deles, fundamentam-se em relação aos direitos à dignidade e autonomia da mulher e, de modo oposto, ao direito à vida do embrião. Para tanto, o presente artigo, no seu primeiro capítulo analisará o conceito na visão de diversos doutrinadores e juristas, a origem e a evolução do aborto no Brasil de modo a promover um detalhamento aprofundado da questão. Será analisada ainda a criminalização do aborto frente às legislações brasileiras, nesse tópico, será abordado como o tema era tratado desde o Código Imperial de 1830 até a legislação atual.
O segundo capítulo do presente artigo abordará um estudo comparado da descriminalização do aborto em países da América Latina, de modo a tecer um comparativo entre a legislação brasileira com as demais. Por fim, o último capítulo trará a questão da descriminalização do aborto no Brasil como uma questão de saúde pública, tendo em vista que embora reconhecida a ilegalidade do aborto no país, muitas mulheres se submetem, diariamente, aos métodos clandestinos ou medicações proibidas para a realização da prática, muitas vezes colocando sua saúde em risco.
Quanto à metodologia do estudo, para Macedo (1994, p. 30), methodos significa organização, e logos, estudo sistemático, pesquisa, investigação; ou seja, metodologia é o estudo da organização, dos caminhos a serem percorridos, para se realizar uma pesquisa ou um estudo, ou para se fazer ciência. Etimologicamente, significa o estudo dos caminhos, dos instrumentos utilizados para fazer uma pesquisa científica. O método de estudo a ser utilizado no presente estudo pode ser compreendido como bibliográfico-documental e quanto ao procedimento utilizado é o exploratório, o mesmo aprimora as ideias ou descobre intuições.
2. CONCEITO E BREVE HISTÓRICO DO ABORTO NO BRASIL
O aborto sempre foi um tema presente em diversos debates e discussões ao longo da história, por se tratar de uma questão complexa que envolve vários campos de atuação como, por exemplo, o direito, a medicina, a religião e a moral. No Brasil há registros da prática do abordo desde o período colonial, todavia, nessa época o aborto não possuía nenhum amparo ou menção na legislação e ainda não era considerado um tema de grande relevância no mundo.
A palavra aborto deriva-se de um termo em latim abortus derivado da composição de um prefixo ab que se compreende em privação e ortus, que significa nascimento. Dessa forma, tem-se que seu significado consiste na privação do nascimento e, de modo geral, afere-se a palavra aborto à morte de uma criança ainda no ventre materno, provocada a qualquer momento da gestação, período que vai desde a fecundação do embrião até os momentos precedentes ao nascimento. (ALVES, 1999, p. 113)
Nos dizeres de Pierangeli (2005, p. 83) a palavra aborto vem do latim abortus que significa privação do nascimento, segundo o autor, "a interrupção voluntária da gravidez com a expulsão do feto do interior do corpo materno, tendo como resultado a destruição do produto da concepção."
Desse modo, vale a exposição dos ensinamentos de alguns doutrinadores, Capez (2004, p. 108), em sua obra, conceitua o aborto como:
A interrupção da gravidez com a conseqüente destruição do produto da concepção. Consiste na eliminação da vida intra-uterina. Não faz parte do conceito de aborto, a posterior expulsão do feto, pois pode ocorrer que o embrião seja dissolvido e depois reabsorvido pelo organismo materno, em virtude de um processo de autólise; ou então pode suceder que ele sofra processo de mumificação ou maceração, de modo que continue no útero materno. A lei não faz distinção entre o óvulo fecundado (3 primeiras semanas de gestação), embrião(3 primeiros meses), ou feto(a partir de 3 meses), pois em qualquer fase da gravidez estará configurado o delito de aborto, quer dizer desde o inicio da concepção ate o inicio do parto.
E, ainda sobre o conceito, Mirabette (2011, p. 57) leciona:
Aborto e a interrupção da gravidez, com a interrupção do produto da concepção, e a morte do ovo (até 3 semanas de gestação), embrião (de 3 semanas a 3 meses) o feto (após 3 meses), não implicando necessariamente sua expulsão. O produto da concepção pode ser dissolvido, reabsorvido, pelo organismo da mulher, ou até mumificado, ou pode a gestante morrer antes da expulsão não deixara de haver, no caso, o aborto.
Verardo (1996, 118) salienta que alguns obstetras delimitam o tempo de gestação para definir o aborto: "até a 22ª semana da gravidez; a interrupção após este período é considerada parto prematuro e se houver óbito do feto, este é considerado natimorto." Ou seja, até os cinco meses e meio de gravidez a expulsão do feto é considerada aborto pela medicina, dos cinco meses e meio em diante, parto prematuro.
De acordo com Emmerick (2008, p. 61) “a prática do aborto já constava das linhas das primeiras cartas jesuíticas, sendo de uso recorrente entre mulheres indígenas”. Segundo a autora, tudo leva a crer que a prática do aborto já fazia parte da vida das mulheres tanto no Brasil quanto em Portugal.
Nesse sentido, Emmerick (2008, p. 62) elucida que:
A condição feminina no Brasil Colônia esta associada aos interesses religiosos, políticos, econômicos e sociais da época, ou seja, estritamente ligada ao projeto da colonização do império colonial português. O Estado português tinha como preocupação central o vazio demográfico do Brasil Colônia, ao passo que a preocupação central da Igreja Católica era com a questão moral no insipiente Estado colonial, construindo uma associação da mulher à imagem da “santa - mãe”.
Vale ressaltar que nesse período o aborto já era criminalizado pela Igreja Católica, que repudiava o tema diante da questão moral envolvida. Naquela época, mulheres que abortavam eram consideradas adúlteras e pecadoras, sofrendo penas morais e religiosas impostas pela Igreja, nos conhecidos Tribunais Eclesiásticos dos quais decorreram, posteriormente a Inquisição promovida pela Igreja Católica.
Mendes (2011, online) elucida que embora houvesse uma forte repressão ao aborto, as mulheres ainda o realizavam diante das péssimas condições em que viviam no período colonial, devido à pobreza e ao abandono, além da tentativa de esconder a ilegitimidade dos filhos.
A Organização Mundial da Saúde (OMS, 2007) estabeleceu o conceito de aborto no ano de 1977, com o objetivo de unificar os critérios e não subestimar a morte do feto, definindo-o como a expulsão ou extração uterina de um embrião ou feto de 500g ou menos.
Nesse sentido, conforme elucida Freitas (2011, p. 72):
Estabeleceu-se a idade gestacional de vinte e duas semanas, que coincide aproximadamente com o peso estabelecido para o feto, definindo ainda o aborto como interrupção da gravidez quando o feto ainda não é viável fora do ventre materno. A viabilidade extrauterina é um conceito que se modifica e depende do progresso da medicina e da tecnologia, estando atualmente em torno das vinte e duas semanas de gestação.
Por sua vez, Matielo (1994, p. 102) esclarece que o aborto ocorre com a morte do feto ou embrião, nas palavras do autor, "independente da expulsão do produto, pois circunstâncias diversas podem acarretar a reabsorção daquele pelo organismo materno, o que não descaracteriza a ocorrência do aborto."
Embora o aborto seja uma expressão bastante utilizada, sua interpretação ainda não é uniforme, Galeotti (2011, p. 25) leciona:
As leis, tanto as mais permissivas como as mais restritivas, distinguem entre aborto terapêutico e aborto eletivo ou voluntário. O aborto terapêutico é realizado por razões médicas e o aborto eletivo ou voluntário se realiza por escolha da mãe e sob seu critério que, pode ser, dentre outros: idade; incapacidade para cuidar de um filho por razões econômicas, sociais, etc.; estigma ou o que representa uma gravidez fora do matrimônio em algumas culturas; decisão pessoal de não querer ser mãe.
De acordo com Bitencourt (2007, p. 39), "o bem jurídico protegido é a vida do ser humano em formação." Nesse contexto, o Direito Penal protege a vida humana desde o momento da concepção, de forma que a destruição desta vida, até o início do parto configura aborto, que pode ou não ser considerado criminoso.
No Brasil, o aborto apenas passou a ser tipificado como crime a partir do Código Criminal Imperial, de 1830 e, mesmo assim, apenas quando realizado por terceiro, com ou sem o consentimento da gestante. "Era punível também o mero fornecimento de meios abortivos, ainda que o aborto não ocorresse", conforme elucida Prado (2008, p. 91). Contudo, Emmerick (2008, p. 58) afirma que "o bem jurídico tutelado era a segurança da pessoa, no caso a mulher, e não a vida do feto".
3. UM BREVE RESGATE ÀS LEGISLAÇÕES BRASILEIRAS
Durante muito tempo a prática abortiva não foi considerada como conduta criminosa no Brasil, não havendo tipificação da mesma nas legislações penais. Considerava-se, neste tempo, que a mulher tinha a livre disposição sobre o seu corpo, no que tange à concepção, podendo escolher se interrompia ou não a sua gestação sem que isso incorresse em qualquer tipificação penal. Desta feita, o aborto consentido não era punido legalmente, sendo tido como um mero ato de escolha, que se feito de forma livre e consentida não implicaria em punição.
Nas palavras de Bitencourt (2011, p.87) o aborto só é criminoso quando provocado, pois, possui a finalidade de interromper a gravidez, e eliminar o produto da concepção, sendo exercido sobre a gestante, ou sobre o próprio feto ou embrião. O autor também esclarece que: a mulher apenas consente na prática abortiva, sendo a execução material do crime feita por terceira pessoa, podendo, porém, haver o concurso material de pessoas.
Com a chegada do Código Penal do Império de 1830 o aborto teve sua inclusão nos crimes contra a segurança da pessoa e da vida, com previsão em seus artigos 199° e 200°, onde prevalecia penas específicas por meio da seção denominada infanticídio.
Nesse sentido, o Código Penal Imperial (1830), preceitua em seus artigos:
Art. 199. Ocasionar aborto por qualquer meio empregado interior ou exteriormente com consentimento da mulher pejada. Pena - de prisão com trabalho por um a cinco anos.Se este crime for cometido sem consentimento da mulher pejada. Penas - dobradas.
Art. 200. Fornecer com conhecimento de causa drogas ou quaisquer meios para produzir o aborto, ainda que este se não verifique. Penas de prisão com trabalho por dois a seis anos.
Se este crime for cometido por Medico, Boticário, Cirurgião ou Praticante de tais artes. Penas-dobradas. (BRASIL, 1830)
Após 60 anos do Código Imperial, o Código Penal de 1890 trouxe uma continuidade na punição para a prática do aborto, todavia, a pena seria reduzida a 1/3 se o aborto fosse realizado para encobrir o que a lei denominou de "desonra própria". Nesse período, em casos de estupros a mulher ainda assim recebia punição, porém havia redução de pena.
Com a chegada do Código Penal de 1940, foi estabelecido que quando o aborto fosse realizado por uma figura médica, no objetivo de salvar a vida da gestante, sem que existisse outra alternativa para salvá-la, não seria caracterizado como crime. O Código Penal também trouxe em seu texto que em casos de estupro, onde fosse da vontade da gestante fazer o aborto, a ação não seria considerada crime.
No nosso país o aborto apenas é liberado quando existem situações extremas, como a gravidez de risco de morte para gestante, casos de estupro e, com a criação da ADPF n° 54 julgada pelo Supremo Tribunal Federal, ocorreram algumas alterações acerca do aborto em casos de anencéfalos, tendo em vista que a mesma tornou-se legal em casos pontuais. A decisão aferida pelo STF afetou de modo direto a sociedade, tendo em vista que debates e divergências ganharam pauta sobre o assunto. (BRASIL, 2009)
Bitencourt (2011, p. 55) leciona que "a doutrina médica especializada classifica o aborto, em razão de anomalias (ex: anencefalia), como sendo uma Interrupção Seletiva da Gestação (ISG)." Neste caso, constata-se que o feto apresenta patologias incompatíveis com a vida extrauterina.
Atualmente, o diagnóstico de anencéfalos é de fácil constatação. Nesse sentido, Carvalho (2015, p. 71) elucida que:
Hoje, com os equipamentos modernos de ultra-som, o diagnóstico pré-natal dos casos de anencefalia tornou-se simples e pode ser realizado a partir de 12 semanas de gestação. A possibilidade de erro, repetindo-se o exame com dois ecografistas experientes, é praticamente nula. Não é necessária a realização de exames invasivos, apesar dos níveis de alfa-fetoproteína aumentados no líquido amniótico obtido por amniocentese.
Dessa forma, a referida ADPF prevê à gestante a possibilidade de interromper ou não a gestação de um feto anencéfalo. A legislação buscou proteger a integridade da gestante e resguardar seu direito de escolha em manter ou não a gravidez.
No tocante aos casos de estupro ou em risco eminente à gestante, o artigo 128 do Código Penal prevê:
Art. 128 – Não se pune o aborto praticado por médico: Aborto necessário: Se não há outro meio para a vida da gestante. Aborto no caso de gravidez resultante de estupro: Se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal. (BRASIL, 1940)
Nesse sentido, na visão de Rocha (2000, p. 55):
A prática do aborto quando cometida em defesa da honra da gestante, ou seja, quando a grávida foi estuprada, é plenamente justificável, de acordo com as leis referentes ao assunto. Em conflito com os direitos de personalidade, aborda-se o direito ao uso do corpo da gestante violado, como também seu direito à honra e à integridade física e psíquica, contrapondo-se com o direito à vida do nascituro. Com isto, o constrangimento físico, a tortura psíquica, o vexame social ao qual a vítima foi submetida, constituem a redução de sua dignidade, dever constitucional do Estado para com ela.
A autora evidencia o respaldo da lei à gestante que sofre estupro e engravida do criminoso, em que, na visão da autora, esses casos são completamente justificáveis de acordo com as leis referentes ao tema, pois a violação física sofrida pela vítima afeta a sua dignidade, dever este do Estado para com todos os cidadãos.
Vale ressaltar que o Brasil é um país que pouco evoluiu na questão da legalização ou descriminalização do aborto. Diversos países, sobretudo da América Latina, já possuem o aborto legal e irrestrito, nos quais identifica-se uma grande queda no número de mortes maternas, tendo em vista que nos países onde há a criminalização, muitas mulheres utilizam-se de meios clandestinos e irregulares para realização de tal procedimento, não obtendo o amparo do Estado.
Existe em discussão um projeto de lei que visa garantir a proteção integral ao nascituro, tendo como base a ideia de que a vida humana se inicia no momento da concepção, é o chamado Estatuto do Nascituro.
De acordo com o projeto, o nascituro, apesar de ainda não nascido, já é possuidor de direitos, como da dignidade, por isso deve gozar da proteção jurídica desde a sua concepção. Assim, conforme o projeto, o nascituro já tem direitos patrimoniais, como o direito à herança, porém, esses direitos somente serão efetivados se o nascituro realmente nascer.
O Estatuto visa alterar a legislação atual, tornando qualquer forma de aborto em crime hediondo, independente da circunstância, além de proibir o congelamento, descarte e comércio de embriões humanos, com a única finalidade de serem suas células transplantadas em adultos doentes.
Tal iniciativa traz grande repercussão, visto que vai na contramão da evolução histórico-legislativo do aborto no Brasil, ferindo aos direitos já conquistados durante décadas.
Atualmente, apesar de a legislação permitir o aborto em certas circunstâncias, como no caso de estupro, ou de risco de vida da gestante, nosso ordenamento traz certas garantias ao nascituro, como por exemplo o direito de o nascituro receber doação (art. 542. Código Civil), de receber um curador especial quando seus interesses colidirem com os de seus Pais (art. 1.692, Código Civil), dentre vários outros.
4. O ABORTO NO DIREITO COMPARADO EM PASÍSES DA AMÉRICA LATINA
Inicialmente, insta frisar que os relatos da existência do aborto permeiam desde o início das civilizações e tal fato aponta a necessidade e o desejo das mulheres em terem a autonomia sobre seus corpos e sobre a sua liberdade reprodutiva. Nesse sentido, o número de países que optam pela descriminalização ou pela legalização do aborto não para de crescer, contudo, em alguns países, a exemplo do Brasil, a legislação opta por aceitar o aborto apenas em situações específicas como, por exemplo, em casos de estupro ou quando o parto insere risco de vida à gestante e, recentemente, também abriu espaço ao caso de má formação fetal.
Nesse sentido, nota-se a importância em tecer uma análise frente ao direito comparado, especialmente no que tange aos países da América Latina.
No Uruguai, o aborto, conforme as palavras de Johnson (2015), a partir de 1985, com a redemocratização do país, o debate social e parlamentar sobre a descriminalização do aborto adquiriu densidade e intensidade. No final da década de noventa, os abortos inseguros eram a maior causa de morte materna no país, representando quase trinta por cento das mortes. O problema foi evidenciado notadamente no principal hospital de maternidade uruguaio, que atende a toda a população de baixa renda de Montevidéu.
No país, entre os anos de 1985 e 2007 foram apresentados diversos projetos de lei que versam sobre o aborto, com isso, o debate se manteve longo e exaustivo, de modo a desencadear uma maior presença na agenda pública e ampliando-se extensivamente. O fervor público durante esses anos manifestou-se através de inúmeras campanhas clamando pelo direito ao aborto legal, de modo a viabilizar condições para o pleno exercício dos direitos reprodutivos da classe feminina. (JOHNSON, 2015)
Posteriormente, como consequência de tais manifestações, em 2012 foi aprovada a Lei de Interrupção Voluntária da Gravidez no Uruguai, dispositivo esse que visa garantir total amparo às mulheres que optam por interromper uma gravidez indesejada, seja ela por qualquer motivo, desde que no período gestacional preestabelecido. (JOHNSON, 2015)
Nesse sentido, Maia (2008, p. 59) elucida que "o aborto é legalizado até a décima segunda semana de gravidez." Em caso de estupro, amplia-se para catorze semanas o prazo e havendo má formação do feto ou risco de vida para a mãe o aborto é legal a qualquer momento da gravidez, com isso, o Estado uruguaio viabiliza a prática de um aborto seguro.
No que tange ao direito argentino, a legislação permite a realização de aborto em alguns casos específicos como, por exemplo, quando incorre risco à vida e à saúde da gestante, em casos de estupro e abuso a uma mulher incapacitada. Todavia, o dispositivo que dispõe sobre tal questão gera controvérsias na interpretação entre juízes e profissionais da saúde, de modo a gerar polêmicas. (MATIELO, 1994)
No ano de 2013, um hospital situado em Buenos Aires negou-se a realizar o aborto, se pautando em uma interpretação controvérsia da lei, utilizada em sua maioria, por grupos conservadores. Nesse sentido, o Ministério da Saúde de Buenos Aires teve de intervir na ocasião mencionada a fim de garantir o direito da mulher ao aborto. (MAIA, 2008, p. 25)
Dessa forma, insta frisar a referida lei argentina, segundo Ramos (2015, p. 108):
O artigo 86 do Código Penal argentino diz que o aborto praticado por um médico diplomado, com o consentimento da mulher grávida, não é punível nos seguintes casos: a) se for realizado com a finalidade de evitar um perigo para a vida ou para a saúde da mãe e sempre que esse perigo não possa ser evitado através de outros meios; 26 b) se a gravidez provém de estupro ou de um atentado ao pudor cometido contra uma mulher portadora de deficiência.
Ramos (2015) ainda elucida que a restrição é bem nítida e coloca a Argentina no grupo de países nos quais o aborto ainda é considerado como um crime, de modo semelhante à legislação brasileira. Todavia, a experiência indica que a criminalização não coíbe tal prática, tendo em vista que milhares de mulheres se submetem a intervenções em clínicas clandestinas, modo esse completamente nocivo à saúde da gestante, tendo por consequência um elevado número de mortes em decorrência da prática ilícita.
Ramos (2015) ressalta ainda que o aborto ilegal é a principal causa de morte materna no país, estimando-se que são realizados quinhentos mil abortos ilegais por ano e, segundo estatísticas do Ministério da Saúde argentino, morrem mais de cem mulheres por ano em decorrência dessas práticas.
No que diz respeito ao direito cubano, o aborto é permitido desde o ano de 1965, momento em que a legislação previu que a mulher poderia realizar o procedimento por qualquer motivo até a décima semana de gestação. Após a legalização no país, as pesquisas apontaram uma visível queda na mortalidade materna, além da diminuição da taxa de fecundidade em solo pátrio. O aborto em Cuba é permitido em qualquer ocasião e pode ser realizado de modo gratuito sob a solicitação da gestante no sistema de saúde público do país. (RAMOS, 2015)
No que cerne ao direito mexicano, Malkin (2008, p. 91) elucida:
Em relação ao México o aborto foi considerado legal pelo governo da Cidade do México em 2007 e a partir de então passou a ser oferecido gratuitamente a todas as mulheres, principalmente àquelas mais pobres, para evitar que recorressem a clínicas ilegais e parteiras, enquanto as mulheres ricas realizavam o procedimento em consultórios e clínicas particulares. Contudo, as reações por parte dos próprios ginecologistas que atendem nos hospitais públicos foram contrárias e a maioria destes recusava-se a realizar abortos ou tratavam com hostilidade as pacientes, humilhando-as e impondo barreiras burocráticas para o acesso a esse direito.
Em relação ao México, o aborto é uma questão ainda controversa, onde na Cidade do México o aborto ampara qualquer mulher com gestação de até 12 semanas, todavia, é proibido em 18 das 31 constituições estaduais em vigência no país. Desde a sua descriminalização, em 2007, estima-se que mais de cinquenta mil abortos tenham sido realizados e, em estados mais conservadores, como é o caso do Guanajuato, algumas mulheres que o praticaram, foram condenadas a regime de detenção. (MALKIN, 2008)
A Colômbia compreende um panorama mais amplificado sobre o tema, sendo que uma mudança recente na legislação incluiu algumas ocasiões em que a prática do aborto é considerada legal. Até o ano de 2006, a prática era considerada crime em toda e qualquer circunstância, entretanto, os índices de mortalidade materna de colombianas não paravam de crescer.
Nesse sentido, Velez (2005, p. 88) leciona:
De acordo com estudos do Departamento Administrativo Nacional de Estatística (DANE), o aborto correspondia a 16% das causas de morte materna na Colômbia antes da criação dos permissivos legais no ano de 2006. Outro fator é que os projetos de descriminalização do aborto proposto pelos senadores e senadoras propunham a legalidade em casos específicos, não a descriminalização total, e em sua maioria eles incluíam como prerrogativa que a realização do procedimento deveria ter autorização expressa do marido e/ou requerimento de comprovação por parte de um juiz.
Desse modo, em observância à citação do aludido autor, nota-se que a finalidade das propostas que incorreram na mudança da legislação no país era o combate à mortalidade materna, tendo em vista o alto número de gestantes que se submeteram ao aborto clandestino nas últimas décadas.
Outro fato relevante sobre o aborto na Colômbia foi uma recente liminar que aprovou que abortos sejam realizados até instantes antes do nascimento, incitando contra o limite inicial de 24 semanas até então estabelecidas na legislação. O debate iniciou-se com o apelo de uma gestante que desejava praticar o aborto com 26 semanas de gestação, utilizando-se da justificativa do diagnóstico de uma doença genética que viria poder causar cegueira à criança. A votação aprovou o pedido por 06 voto a 03, sendo que os juízes da Corte Constitucional, em face ao ativismo judicial, estabeleceram que o aborto pode ocorrer desde a fecundação até instantes antes do nascimento. (VELEZ, 2005)
No Brasil, o aborto também é um tema que foi judicializado na Suprema Corte. Na Constituição Federal de 1988, o aborto é mencionado em seus artigos 124 e 126, criminalizando-o, pois se compreende em uma violação à vida potencial do feto. Por se tratar de um tema tão polêmico e com inúmeras divergências, existe uma necessidade de apreciação mais atenuada.
Recentemente, a pauta foi retomada no Brasil após a polêmica decisão (HC 124.306/RJ) da 1a Turma do STF, em que se discutiu a revogação da prisão de pessoas atreladas a um caso de aborto. O Ministro Barroso, ao justificar seu voto, argumentou que a criminalização do aborto não é aplicada em países democráticos mais desenvolvidos, tendo em vista que a criminalização do aborto não extingue o fato de mulheres procurarem clínicas clandestinas e, até mesmo colocar em risco sua própria vida.
Nas palavras do Ministro Barroso (2017, p. 28):
A interrupção voluntária da gestação não deve ser criminalizada, pelo menos, durante o primeiro trimestre da gestação. Durante esse período, o córtex cerebral – que permite que o feto desenvolva sentimentos e racionalidade – ainda não foi formado, nem há qualquer potencialidade de vida fora do útero materno. Por tudo isso, é preciso conferir interpretação conforme a Constituição aos Artigos 124 e 126 do Código Penal, para excluir do seu âmbito de incidência a interrupção voluntária da gestação efetivada no primeiro trimestre.
A questão exposta inerente ao ativismo judicial se dá na postura do Supremo Tribunal Federal, ao contrariar a legislação prevista que assegura o direito à vida humana do nascituro. A decisão do STF modifica uma norma vigente, colocando em pauta o ativismo judicial cometido em tal caso.
Considerando que os membros do judiciário não são eleitos popularmente, surgem questionamentos quanto à legitimidade de um ministro modificar, de certa forma, uma lei vigente.
Amaral (2014, p. 35) afirma que alguns casos são omitidos pela legislação:
As hipóteses em que a lei permite o aborto não contemplam a realidade brasileira e, mais do que isso, desconsideram que a continuidade de uma gestação indesejada fere psicologicamente a mulher e compromete sua saúde mental. Somando-se a essa situação, também existe o risco de um aborto clandestino, praticado por centenas de mulheres no país, com uma grande taxa de óbitos decorrentes de práticas não profissionais, infecções e outras complicações.
Ante o exposto, vale ressaltar que é fundamental uma atualização frente à questão do aborto no Brasil, tendo em vista os exemplos de alguns países da América Latina, citados no corpo do presente artigo, que já optaram por descriminalizar ou legalizar o aborto, de modo a promover à mulher o direito de escolha e o total amparo legal para a prática abortiva.
Como demonstrado anteriormente, tal medida viabiliza a diminuição das taxas de mortalidade, pois assim as gestantes não procurariam clínicas clandestinas que hoje realizam o aborto sem os devidos preparos e cuidados necessários à prática, mas hospitais que garante à gestante um atendimento mais adequado e humanizado.
5. A DESCRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO NO BRASIL: UMA QUESTÃO DE SAÚDE PÚBLICA
Apesar de ser amplamente reconhecida a ilegalidade do aborto no Brasil, muitas mulheres se submetem, diariamente, aos métodos clandestinos ou medicações proibidas para a realização da prática. Os abortos realizados clandestinamente constituem uma afronta à questão de saúde pública, de modo a propiciar uma elevada quantidade de mortes maternas, principalmente no que diz respeito às mulheres negras, de baixa renda e escolaridade.
Insta frisar que nem todo aborto clandestino é inseguro, para uma pequena parcela das mulheres que podem pagar, existem clínicas clandestinas com excelentes condições de higiene e profissionais treinados. Contudo, a realidade brasileira é controversa, onde a grande maioria da população não possui poder aquisitivo para investir em uma boa clínica, não restando alternativa a não ser se submeter a realizar o procedimento em ambientes insalubres e sem condições necessárias, gerando riscos à sua saúde, e em uma grande parcela dos casos, o óbito da gestante.
Nesse sentido, Diniz (2008, p. 105) tece seu posicionamento frente à questão:
Essa abordagem, combinada com questões éticas extremamente necessárias, indica que adentrar nos problemas morais, biológicos e jurídicos que afetam o início da vida deve partir da consideração de que a sociedade atual é uma sociedade plural, com distintas convicções sobre aspectos éticos e morais, compreendendo as diversas respostas sobre os limites e os alcances do direito à vida e que lugar deve ocupar o aborto no debate da autonomia reprodutiva da mulher.
Encontrar fundamentos que respaldem a descriminalização do aborto como uma questão de saúde pública não é tarefa considerada fácil. Todavia, não se pode ignorar os argumentos da Organização Mundial da Saúde, que roga que a cada ano, mais de quatro milhões de mulheres se submetem a abortos clandestinos na América Latina e em torno de seis mil dessas mulheres morrem em decorrência da prática desse tipo de aborto. (OMS, 2016)
Blay (2008, p. 65) elucida que ao tratar do direito ao aborto se costuma fazer menção ao direito à vida, "mas esta não é a única forma de compreender a questão: encontram-se, em controvérsia, também, o direito à saúde, à autonomia pessoal e à educação."
Em consonância com o autor, o direito à vida se encontra previsto na Constituição Federal de 1988 e está incluído também nos Tratados Internacionais de Direitos Humanos e, em menção específica ao aborto, trata-se não apenas do direito à vida do feto, mas também à vida da mulher gestante. Blay (2008, p. 67) ainda acrescenta em relação ao tema:
Toda mulher tem direito a decidir, então, sobre sua vida, mais ainda quando se trata de seu próprio corpo. Se o direito à vida do feto se contrapõe ao direito de toda mulher a decidir sobre sua vida, sobre seu projeto de vida e sobre seu corpo, por um lado, essa livre escolha causará danos ao feto e a terceiros, cabendo aí o limite constitucional (também relativo) da autonomia pessoal. Isso deixa duas situações: a primeira, quando o feto não sente dor; a segunda, quando sente. Assim, antes de formado o tubo neural, o feto não sente dor, não sente nada. Nessa instância, a presença de um dano em um ser que não sente se torna controvertida. Porém, se trata de ter consciência de uma situação: uma mulher que não quer ter um filho, que está grávida e que, se seu direito não existe, deverá ver como seu corpo se modifica por um filho indesejado e o verá nascer, quando não o quer em sua vida. Assim, também se pode argumentar que a vida digna de uma mulher não tem menor valor do que a vida de um feto. O aborto é um procedimento demasiadamente intrusivo e ninguém o deseja. É uma situação temida, dolorosa, mas milhares de mulheres recorrem a isso, amparadas ou não pela lei.
Segundo o Ministério da Saúde (2009, p. 13), é necessário compreender o aborto “como uma questão de saúde pública em um Estado laico e plural inaugura um novo caminho argumentativo, no qual o campo da saúde pública traz sérias e importantes evidências para o debate”.
Todavia, apesar dos avanços ocorridos na discussão sobre Direitos Humanos, percebe-se que, tanto o Brasil quanto alguns países da América Latina, são países fortemente marcados por paradigmas religiosos que se contrapõem na construção de novas políticas públicas que visem avanços nos direitos das mulheres, sobretudo, o devido amparo legal frente ao aborto.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente artigo buscou promover uma análise frente à realidade legislativa brasileira em relação à descriminalização do aborto em um estudo comparado aos países da América Latina.
A abordagem ao assunto promove diversas polêmicas, de modo a dividir opiniões entre os defensores do direito à escolha da mulher acerca da continuidade ou não da gestação e àqueles que pugnam pelo direito à vida do nascituro.
Considerando que o Brasil é um estado intitulado laico, motivações de cunho religioso, histórico ou cultural não deveriam ser utilizadas como forma de justificar violações aos direitos humanos.
Insta ressaltar que os países que optaram por descriminalizar o aborto não verificaram aumento no número de procedimentos realizados anualmente, fato esse que colabora com a tese defendida pela legalização do aborto, considerando que a maioria das mulheres não deixam de praticar o ato em decorrência da ilegalidade. Além do mais, o número de condenações pela prática do mesmo é irrisório.
Desse modo, observa-se que a legislação vigente visa proteger a vida do feto, entretanto compromete a saúde de milhões de mulheres que se submetem à realização da prática em condições precárias e degradantes.
Nesse sentido, vale concluir com relação ao aborto, no que tange aos países da América Latina, no Uruguai, em 2012 foi aprovada a Lei de Interrupção Voluntária da Gravidez, dispositivo esse que objetiva aferir total amparo às mulheres que optam por interromper uma gravidez indesejada, seja por qualquer motivo, com isso, o Estado uruguaio passou a viabilizar a prática de um aborto seguro.
Na Argentina a legislação permite a realização de aborto em alguns casos específicos como, por exemplo, quando incorre risco à vida e à saúde da gestante, em casos de estupro e abuso a uma mulher incapacitada.
Na sistemática do direito cubano, desde 1965 o aborto é permitido por qualquer razão até a décima semana gestacional, a prática do aborto no país pode ser realizada de modo gratuito sob uma solicitação advinda da gestante no sistema de saúde público de Cuba. Insta frisar que, após a legalização no país, as pesquisas apontaram uma grande queda na taxa de mortalidade materna.
Já em solo mexicano, o aborto ainda se configura em uma questão controversa, onde na Cidade do México o aborto ampara qualquer mulher até a 12ª semana gestacional, contudo, o aborto é proibido em 18 dos 31 estados mexicanos.
Após todo o exposto, vale concluir que é fundamental uma atualização frente à questão do aborto no Brasil, tendo em vista exemplos de alguns países da América Latina citados acima, os quais já optaram por descriminalizar ou legalizar o aborto de modo a garantir à mulher o direito de escolha e o total amparo legal para a prática abortiva, como consequência, a diminuição de mortes maternas no país.
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[1] Amanda de Souza Rodrigues. Acadêmica de Direito da Faculdade Serra do Carmo. [email protected]
[2] Mestre em Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos. Especialista em Ciências Criminais e em Direito e Processo Administrativo. Graduado em Direito e em Comunicação Social com ênfase em Jornalismo. Delegado de Polícia Civil do Tocantins, professor de Processo Penal, escritor e organizador de obras jurídicas.