Superendividamento e o consumidor

03/06/2019 às 12:12
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O superendividamento é um problema na sociedade de consumo, e vem se agravando quotidianamente. Como o direito pode proteger os consumidores de possíveis abusos em uma sociedade que incentiva excessivamente o consumo e o endividamento?

O superendividamento é um problema na sociedade de consumo, e vem se agravando quotidianamente. O superendividado pode ser conceituado como aquela pessoa natural que, de boa-fé, tem mais débito que crédito. Isto ocorre, em grande parte, pela concessão de crédito pelas instituições financeiras, ou seja, os empréstimos.

Um formato de empréstimo que facilita a obtenção do crédito junto aos bancos é o empréstimo consignado em folha de pagamento. Nesta modalidade a parcela mensal do pagamento do débito é descontada diretamente da folha de pagamento do trabalhador. Isto gera mais segurança ao banco que, em contrapartida, oferece melhores condições ao consumidor, e por isso, esta modalidade de concessão de crédito é atraente para o consumidor.

Alguns tribunais, incluindo o STJ, entendem que o desconto efetuado em débito automático, diretamente da conta corrente do consumidor, equipara-se aos descontos feitos na folha de pagamento, pois é uma interferência direta ao salário e prejudica igualmente sua subsistência.

Ocorre que a legislação brasileira, para proteger o trabalhador e seu salário, impôs um limite consignatório, não permitindo que fossem descontados mais que 35% dos salários dos trabalhadores, conforme será adiante exposto.

Em que pese a limitação não esteja prevista no Código de Defesa do Consumidor (CDC), não há dúvidas que a relação jurídica no contrato de mútuo do banco com pessoas naturais, em regra, trata-se de relação consumerista. Isto porque há um fornecedor (Banco), prestando um serviço (mútuo) a um consumidor (pessoa natural).

Sendo uma relação consumerista, todo o microssistema do CDC juntamente com seus princípios se aplica à análise do caso. O CDC desempenha um papel de reequilíbrio da relação consumerista, e umas das formas é transferindo o risco do negócio para aquele que detém posição privilegiada na relação, o fornecedor.

1.1. A lei versus o contrato

O limite consignável está determinado em Lei. Este limite está previsto para os trabalhadores regulados pela CLT na Lei 10.820/03, no art. § 1º, que foi modificado pela Lei 13.172/15, que dispõe:

Art. 1º Os empregados regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, poderão autorizar, de forma irrevogável e irretratável, o desconto em folha de pagamento ou na sua remuneração disponível dos valores referentes ao pagamento de empréstimos, financiamentos, cartões de crédito e operações de arrendamento mercantil concedidos por instituições financeiras e sociedades de arrendamento mercantil, quando previsto nos respectivos contratos.
 
§ 1º O desconto mencionado neste artigo também poderá incidir sobre verbas rescisórias devidas pelo empregador, se assim previsto no respectivo contrato de empréstimo, financiamento, cartão de crédito ou arrendamento mercantil, até o limite de 35% (trinta e cinco por cento), sendo 5% (cinco por cento) destinados exclusivamente para:
 
I - a amortização de despesas contraídas por meio de cartão de crédito; ou (Incluído pela Lei nº 13.172, de 2015)
 
II - a utilização com a finalidade de saque por meio do cartão de crédito.
 
A limitação para descontos consignados em folha de pagamento também é prevista para os servidores públicos federais, a matéria é regulada na Lei 8.112/90, em seu art. 45º§ 1º. Há também previsões que limitam descontos para servidores públicos estaduais, devendo ser consultada a lei de cada estado.

Ora, se há uma limitação para o percentual máximo de desconto, qualquer valor que ultrapasse o referido percentual é ilegal.

Mesmo quando firmado um contrato de empréstimo pelo consumidor com as instituições financeiras, se ultrapassado os limites legais, este acordo não deve prevalecer sobre a lei, que é cogente e determina expressamente percentual máximo que pode ser descontado da folha de pagamento. Em que pese a autonomia privada ser um valor importante de nosso ordenamento jurídico, este não deve se sobrepor à lei vigente e nem ao princípio da dignidade da pessoa humana e da garantia do mínimo existencial.

1.2. Da responsabilidade das instituições financeiras

Um dos princípios que devem ser observados pelos fornecedores nos contratos de consumo é a boa-fé objetiva. E um dos concretizadores da boa-fé objetiva é o dever de informação, sendo este um direito básico do consumidor (art.  CDC).

Nos contratos de empréstimo bancário são imprescindíveis informações tais como: margem consignável e da base de cálculo das prestações; incidência de custos operacionais agregados e qualquer outra taxa ou acréscimo eventualmente incidentes; taxa de juros; valor total do empréstimo, com e sem juros; valor, número e periodicidade das prestações; data do início e fim das prestações são imprescindíveis para o bom cumprimento da obrigação de informar.

Ainda, é dever da instituição financeira, a análise do crédito, através da solicitação de esclarecimentos quanto à existência de outras dívidas, bem como quanto às despesas do consumidor e o volume de comprometimento da renda do consignado, advertir dos riscos ou mesmo negar o crédito, se aquela concessão ultrapassar os limites legais.

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É importante frisar que a letra da Lei diz expressamente que a totalidade dos descontos consignados não pode ultrapassar 35% da remuneração mensal do trabalhador.

Essa norma visa a preservar o mínimo indispensável para a subsistência digna do trabalhador, evitando que o descontrole financeiro cause prejuízo ao seu sustento e de sua família. É necessário que haja a adequação do comprometimento da renda, a fim de que seja preservada a proteção à dignidade da pessoa humana, sempre que houver superação desse limite.

Essa posição se harmoniza com o princípio da boa-fé que deve orientar a atuação dos fornecedores de produtos e serviços no mercado de consumo, em especial na concessão de crédito, a qual deve ser realizada de maneira ética e responsável, a fim de não inviabilizar a subsistência digna do mutuário.

A limitação imposta por lei, portanto, não se refere a cada empréstimo individualmente e nem mesmo deve ser analisado apenas o percentual que cada mutuante desconta, mas sim a totalidade do que está sendo descontado dos ganhos do consumidor.

É responsabilidade das Instituições Financeiras fornecer o serviço de maneira a cumprir a lei, não concedendo crédito consignado a quem já possui 30% (trinta por cento) de seu salário líquido comprometido com outras dívidas.

Caso não façam esta verificação, devem arcar com os riscos decorrentes, como por exemplo, diminuir a parcela do empréstimo para se adequar à lei.

Portanto, não só o consumidor deve fazer escolhas responsáveis ao adquirir crédito, em especial o crédito consignado que afeta diretamente o seu salário, como o fornecedor deve agir de forma responsável, em acordo com a Lei, e suportando os riscos do negócio.

Sobre a autora
Laísa Brito de Sousa

Sócia no Escritório HENRIQUE DE SOUSA & ADVOGADOS. Bacharel em Direito pelo UniCeub. Pós-graduanda em Advocacia Empresarial, Contratos, Responsabilidade Civil e Família.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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