Um olhar do direito penal à violência obstétrica

03/06/2019 às 18:00
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Os índices alarmantes de violência obstétrica devem ser levados em consideração pelos órgãos de proteção à mulher, sejam administrativos, policiais, do MP ou judiciais. Não devemos tampar o sol com a peneira.

Um olhar do direito penal à violência obstétrica

O ato violência obstétrica, em seu sentido mais amplo, nada mais representa a realidade de um momento que atinge muitas mulheres durante a gestação, o parto, o puerpério, ou em situação de abortamento. Para a mulher, talvez um dos momentos de maior fragilidade física e psicológica. Muitas das grávidas são adolescentes com gravidez não planejada (a taxa no Brasil está acima da média, conforme pesquisa divulgada pela ONU em 2018), outras, que escolheram o momento certo de sua vida pessoal e profissional (gravidez após os 35 anos cresce 65% no Brasil, Folha de São Paulo 13/1/2019), mas todas podem acabar levando para toda a vida as marcas negativas desse momento que devera ser especial.

Os índices alarmantes de violência obstétrica devem ser levados em consideração pelos órgãos de proteção à mulher, sejam administrativos, policiais, do MP ou judiciais. Não devemos tampar o sol com a peneira. Não aceitar o termo violência obstétrica (adotado pela Organização Mundial da Saúde), conforme direcionado pelo Despacho n.º 9087621 emitido em 10/5/2019 pela Coordenação-Geral de Saúde das Mulheres do Ministério da Saúde, com a justificativa de conotação inadequada é de uma interpretação rasa; é colocar na vala comum a melhor compreensão de um problema crescente em diversas regiões do país.

Podemos mudar o nome, enquadrar melhor seu significado, mas, sobretudo, devemos buscar soluções mais plausíveis para o seu enfrentamento. Nesta senda o MPF em audiência pública realizada em dezembro de 2018, no Egrégio Tribunal Federal da 3.ª Região, reconheceu a violência obstétrica como um dos tipos de violência sexual à mulher (Revista Crescer, 5/12/2018 www.revistacrescer.globo.com).

Para o direito penal a violência poderá resultar de atos intencionais ou culposos. Não seria diferente para o enquadramento dos atos de violência obstétrica. Não podemos generalizar que todos os atos obstétricos, muitos dos quais necessários e urgentes, realizados durante os momentos já referidos, podem vir maculados com tal impressão negativa. Mas, procedimentos médicos, de enfermagem, entre outros ligados à saúde e à ética profissional que desrespeitam, por exemplo, a leges artis e as normativas do Conselho Federal de Medicina e do Conselho Federal de Enfermagem, podem causar sérios danos à mulher, e não adentrando no mérito da responsabilidade civil e do erro médico, ser imputados nas condutas penais já previstas em nossa legislação pátria.

É da nossa essência, quando a sociedade não consegue uma efetiva resposta de suas mazelas nos ramos tradicionais do Direito, caberá ao direito penal atuar para o encontro de um equilíbrio necessário. Nesta situação estamos longe de buscar uma nova resposta, mas apenas, àquela já existente em nosso ordenamento jurídico-penal, observando, especialmente, o balizamento da teoria do Garantismo Penal (Luigi Ferrajoli) e de sua atuação em ultima ratio.

Dentre os atos de violência obstétrica elencados nas diretrizes de atenção à saúde das mulheres com deficiência ou mobilidade reduzida divulgada em 1/1/2018 pelo Ministério da Saúde, tomaremos alguns como exemplos, e outras condutas ilegais e desumanas para o devido enquadramento penal, não esgotando o assunto que de longe se apresenta complexo. Algumas condutas que podem importar em responsabilidade penal:

- Julgamentos, chacotas, piadas, descaso e outros tipos de violência psicológica: são condutas inapropriadas que poderão incorrer qualquer profissional da área médica ou outros que estejam envolvidos no atendimento da mulher. A agressão psicológica, muitas vezes disfarçada de brincadeiras de mau gosto, a diminuição da figura da mulher, ou até mesmo de seus sentimentos físicos (especialmente a aparência) e psíquicos, ou da medida de sua dor (aliás, ninguém é capaz de medir a dor de outrem), ou ainda, um olhar diferente e de discriminação, seja com a mulher ou até muitas vezes com a aparência do filho nascido, em um momento delicado e de tamanho desiquilíbrio hormonal, podem levar o agente a cometer ofensa a sua reputação e caracterizar a conduta de difamação (artigo 139 do Código Penal, pena, detenção de 3 meses a 1 ano), ou de ofender à dignidade ou decoro da mulher, e lhe ser imputado a conduta de injúria (artigo 140 do Código Penal, pena, detenção de 1 a 6 meses); consistindo a injúria na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa (mulher que optou por um planejamento familiar mais tardio) ou da mulher portadora de deficiência, incidirá em uma pena maior, de reclusão de 1 a 3 anos.

- Constrangimento ilegal: a mulher durante o parto não é cobaia. Não devemos no momento mais difícil encontrar soluções mirabolantes para o aprendizado, para empregar novas técnicas (sem o conhecimento ou aprovação da mulher), seja do próprio médico ou dos futuros formandos ou residentes. Já houve casos em que o médico-professor foi ensinar médicos residentes a cortar e costurar a fissura realizada no procedimento da episiotomia. Muitas vezes na presença de muitos profissionais, sem anestesia, amarradas na cama em posição ginecológica. Não vale tudo pelo conhecimento. Aliás, sabedoria e conhecimento se complementam. O constrangimento ilegal poderá advir de diversos atos, muitas vezes revestidos de procedimentos normais pelo agente, mas que na verdade são abusos que maculam para todo o sempre, seja física ou espiritualmente. Esse seria um dos exemplos que poderá caracterizar a conduta prevista no artigo 146 do Código Penal. Pena, detenção de 3 meses a 1 ano. À conduta poderá ser somada a da violência, aumentando a pena até seu dobro, na mesma linha quando ocorrer o concurso de mais de 3 agentes no ato de constrangimento ilegal.

- Aborto provocado por terceiro: durante o procedimento se ocorrer o aborto provocado por profissional da equipe médica, quando essa conduta se apresente injustificável, por exemplo, para salvaguardar a vida da mulher (aborto necessário artigo 128, inciso I do CP), ou por aceleração de parto, ou outra causa ou doença congênita, poderá caracterizar a conduta do artigo 125 do Código Penal. Pena, reclusão de 3 a 10 anos; a pena será aumentada de 1/3 se sobrevier lesão corporal de natureza grave, ou será duplicada caso ocorra à morte da gestante;

- Aborto de gestante menor ou alienada, ou mediante fraude, grave ameaça ou violência: se a gestante não é maior de 14 anos, ou alienada (ou o ultrapassado termo débil mental), poderá ser caracterizado o aborto previsto no artigo 125 do Código Penal, com a pena igual à prevista no artigo 126 do Código Penal, parágrafo único, também, aplicável quando do procedimento médico decorra fraude, violência ou grave ameaça injustificáveis dentro da seara médico-legal. Pena, reclusão de 1 a 4 anos;

- Violência física, fórceps, cesáreas desnecessárias e indesejadas: poderá estar presente nestes atos de violência, uso forçado e desmedido de fórceps ou empurrões em excesso, e outras condutas, que além de poder caracterizar lesão corporal culposa nos termos do artigo 129, § 6.º do Código Penal, se for resultante da inobservância de regra técnica de profissão, arte ou ofício aplica-se a causa de aumento de 1/3 da pena prevista no artigo 121, § 4.º do Código Penal. A conduta poderá ser cumulada com a de constrangimento ilegal, conforme vimos anteriormente, bem como, se da conduta se vislumbrar um ato intencional e da violência resultar lesão corporal grave com aceleração de parto, a conduta, será enquadrada no artigo 129, § 1.º, inciso IV, do Código Penal, com pena de 1 a 5 anos, ou ainda, lesão corporal gravíssima com aborto, a conduta se enquadrará no artigo 129, § 2.º, inciso V do Código Penal, agora com pena de reclusão de 2 a 8 anos.

- Laqueadura tubária: ato de esterilização através de cirurgia para a qual deverá haver consentimento prévio, expresso e se possível por escrito da mulher que passará pelo procedimento. Integra-se ao conceito de autodeterminação da mulher, e do planejamento familiar. Entretanto, sem seu consentimento, privando a mulher da decisão e de colocar em prática seu projeto existencial, deverá caracterizar tal conduta a prática do crime de lesão corporal gravíssima pela perda ou inutilização da função, nos termos do artigo 129, § 2.º, inciso III do Código Penal. Pena, reclusão de 2 a 8 anos.

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 - Esterilização compulsória de deficientes: uma decisão que ultrapassa o mínimo razoável. O artigo 6.º do Estatuto da Pessoa com Deficiência – Lei 13.146/2015 nos traz que a deficiência por si não afeta a plena capacidade civil da pessoa, inclusive para fins de exercer seus direitos sexuais e reprodutivos; decidir sobre o número de filhos e de ter acesso às informações sobre planejamento familiar, e de conservar sua fertilidade, sendo vedada sua esterilização compulsória. Se assim ocorrer, fora de uma plausibilidade médica e jurídica, deverá caracterizar tal conduta a prática do crime de lesão corporal gravíssima pela perda ou inutilização da função, nos termos do artigo 129, § 2.º, inciso III do Código Penal. Pena, reclusão de 2 a 8 anos.

- Episiotomia: corte no períneo, às vezes muito longo, desnecessário ou realizado de forma a causar lesão e consequências futuras e danosas à mulher. Aqui, na mesma linha da violência já tratada, se constatado a presença de culpa no procedimento médico, poderá ser imputando ao causador a conduta de lesão corporal culposa prevista no artigo 129, § 6.º do Código Penal, e, se presente a inobservância de regra técnica de profissão, arte ou ofício aplica-se a causa de aumento de 1/3 da pena prevista no artigo 121, § 4.º do Código Penal. Pena, detenção de 2 meses a 1 ano, mais o aumento.

- Homicídio culposo: em caso, por exemplo, do agravamento da lesão do procedimento de Episiotomia, se o ato se apresentar desnecessário, ou realizado com imperícia, negligência ou imprudência, e este ato poder levar a mulher à morte poderá caracterizar a conduta de homicídio culposo previsto no artigo 121, § 4.º do Código Penal, com 1/3 de aumento da pena. Pena, detenção de 1 a 3 anos, mais o aumento.

Não olvidamos de acentuar nosso entendimento de que nos casos em que esteja presente a intencionalidade do agente transgressor (dolo), ou pela prova produzida caracterizar-se a presença do risco de se produzir o resultado danoso (dolo eventual), o enquadramento e consequente imputação das condutas criminosas, especialmente quanto aos crimes de lesão corporal culposa ou de homicídio culposo, poderão ser transmudadas em condutas dolosas de lesão corporal dolosa e de homicídio doloso.  

O avanço nos casos de violência obstétrica justifica um novo posicionamento, agora jurídico-penal, buscando-se a salvaguarda dos interesses da mulher, neste ponto em especial, de um momento por muitos considerado como passageiro, mas, pela certeza da efemeridade da vida, devemos admitir: quando da geração da vida, somente boas lembranças devem ser revestidas como indeléveis.

Ricardo Alves de Lima. Advogado. Doutorando em Direito FADISP. Mestre em Direito Universidade de Coimbra/USP, [email protected], [email protected].

Sobre o autor
Ricardo Alves de Lima

Advogado e Professor de Graduação e de Pós/MBA. Doutorando em Direito FADISP. Mestre em Direito Universidade de Coimbra/USP. Diretor Acadêmico da EXCELSU Educacional. Diretor Acadêmico da Faculdade INPG. Curriculo lattes: http://lattes.cnpq.br/3630490926291518. Contato: [email protected], [email protected]

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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