Difícil lembrar das primeiras palavras aprendidas na infância, fase do desenvolvimento humano em que a necessidade de se comunicar é compreendida como condição essencial para a manutenção da vida. Para as famílias que ainda procuram prolongar a tradição de anotar os passos iniciais de seus herdeiros, é costumeiro o registro dos sons improvisados de quem desejou chamar todas as coisas ao redor por intermédio de murmúrios monossilábicos. Por outro lado, nem mesmo os mais conservadores cuidaram de registrar os momentos em que a palavra “justiça” foi pronunciada prematuramente, e não poderia ser diferente, considerando o fato de não ser a primeira infância o período no qual o indivíduo consegue externar a dor de ser preterido.
Nos primeiros meses de vida, o recém-nascido se entrega com maestria às práticas primitivas da tirania. No uso repentino do choro histérico até fazer oscilar a cor da pele é que se procura desfrutar das vantagens de ser mínimo, principalmente quando se trata do tão esperado primogênito. Nesses primeiros anos da existência, não é a Terra que circunda o Sol, mas todos os astros que giram ao redor da criança. Sendo o senhor dos seus pais, a pequena criatura escraviza qualquer um que se encante ao vê-la repousar em sono sereno, como se fosse a prova incontestável de uma divindade.
Com o passar do tempo, a consciência vem chegando sorrateiramente, e com ela o medo genuíno da vida, gérmen da violência que em breve será lançada contra tudo e todos. Seja pelo choro do pai desempregado, ou pelo último diagnóstico do avô amigo, o antigo ditador de fraldas começará a compreender o cenário que o cerca. Cada ser encontrará a fonte de sua dor que perdurará pela eternidade. Um amor juvenil não correspondido, por exemplo, perdido para alguém que escarnece daquilo que nos foi sagrado, costuma ser infalível. Outros conhecerão a realidade na escola, onde a podridão que se preciptou na porta de casa por lá vagueia livre como um animal bravio. A experiência do bullying, bem como o dissabor das humilhações proferidas por aqueles que se vangloriam de terem nascido com o dom de educar, têm sido muito bem-sucedidos na tarefa de arrancar das estranhas o pronunciamento da palavra injustiça.
Nada mais natural do que o repúdio ao injusto, principalmente quando esse mal repousa sobre a nossa pele ou a dos nossos entes queridos. Entretanto, compreender a sua inversão como o ideal de justiça representa um erro de vida, uma ilusão juvenil. Em uma análise puramente etimológica, a palavra injustiça é formada por derivação, representada como antônimo de justiça, um mero substantivo feminino abstrato, nada mais do que isso. Embora essa explicação faça todo o sentido no campo das letras, não se pode dizer o mesmo em relação à órbita do que tocamos ou sentimos. A noção de justiça se passa apenas na mente do homem delirante. Injusta é a nossa própria existência, e todo o resto que transita dentro e fora da matéria. A sua ausência, ou sua menor influência, não nos permite estabelecer, pela via da interpretação contrario sensu, qualquer espécie de contraponto para encontrarmos a definição do que seria justo.
Por se tratar de uma palavra sem qualquer sentido realístico, a humanidade se habituou a utilizá-la de modo aleatório, à margem de qualquer reflexão filosófica. Leis são criadas em nome da justiça, e os promotores, no exercício de suas atribuições, procuram aplicá-las para promover tal utopia dentro das paredes dos tribunais, também chamados de Justiça. Vê-se muitos homens envolvidos na missão de alcançar aquilo que não sabem sequer o significado.
Usando a experiência no âmbito criminal como exemplo, a disposição dos sujeitos processuais em sala de audiência é rica em simbolismo direcionado ao tema. Juízes e promotores, que no mínimo mantém uma relação de coleguismo, sentam-se lado a lado em posição consideravelmente mais alta do que a concedida ao réu, que lança o olhar para os seus inquisidores sempre de baixo para cima, tornando-se necessário inclinar a cabeça em quarenta e cinco graus quando lhe é dada a palavra. Desse modo, não resta a menor dúvida de que, ao menos no Brasil, o triângulo representativo do Princípio da Isonomia jamais foi equilátero, tendo sido construído com base em um engodo doutrinário, cuja utilidade se presta apenas ao campo acadêmico. Em que pese o texto constitucional ter consagrado o Sistema Acusatório, o que se nota em termos práticos é a luta de dois contra um. E nos casos em que uma tese defensiva se encerra bem-sucedida, ainda assim não nos compete considerar a hipótese como exemplo de justiça. Trata-se apenas de uma injustiça maior não consolidada, o mitior ao invés do gravior, adotando a linguagem pomposa dos nossos jurisconsultos.
Na mesma linha segue o legislador ordinário ao intensificar as injustiças sob o pretexto de liquidar uma suposta dívida contraída historicamente pela maioria em relação à minoria, ou minoria em relação à maioria (será que alguém sabe dizer a que lado pertence?). Todos se sentem injustiçados e carregam a crença de que o equilíbrio possa ser restaurado a partir da construção de um culpado, escolhido para expiar os pecados universais.
O século XIX foi marcado pelo patriotismo exacerbado, fanático, xenofóbico e beligerante, mediante o qual se distinguia irmãos pela cor da bandeira, além de hinos repletos de mentiras dignas de um quadro grave de psicopatia. Hoje, os mesmos homens que consideram essa ruptura social como evidência do atraso de nossos ancestrais, promovem uma divisão ainda mais perversa, na qual torna-se impossível enxergar o próximo como ser humano, mas como mulher, homem, homosexual, transexual, indígena, negro, branco, idoso, instalando uma luta surpreendentemente patética entre gêneros, etnias, faixas etárias etc. É o que se vê em nossa ordenamento jurídico atual, severamente piorado pela interpretação ininteligível dos Tribunais Superiores. O amontoado de leis injustas constantes no acervo do Congresso Nacional não têm outro destino a não ser a conversão em jurisprudência ainda mais reprovável.
Neste exato momento em que as estas letras são registradas na tela do computador, um homem acaba de ser condenado, enquanto os seus personagens orgulhosos começam a desafogar os corredores do Fórum com a sensação de dever cumprido. Independentemente do resultado obtido no processo, é bem provável que em um dos lados haja uma mãe solitária se apoiando na parede para chorar em silêncio. Certamente alguém dirá que a justiça foi feita. Para Anatole France (1844-1924), que preconizava que “a justiça é a sanção das injustiças estabelecidas”, talvez.
Na década de sessenta, em meio a luta de libertação da Argélia do domínio francês, Albert Camus (1913-1960), após receber o Prêmio Nobel, foi interpelado por um estudante enquanto ministrava uma palestra para os alunos de uma universidade de Estocolmo. Instigado por seus colegas, o jovem argelino fazia uma série de perguntas constrangedoras ao escritor sobre a situação política da região, em razão do seu posicionamento conservador a respeito da questão da independência das antigas colônias. Foi então que Camus fez uma de suas colocações mais famosas. Disse ao rapaz: “- Neste momento estão lançando bombas nos bondes em Argel. Minha mãe pode estar em um desses bondes. Se essa é a sua justiça, eu prefiro a minha mãe.”. Ironia do destino para um filósofo que havia escrito sobre o “homem absurdo”. Era hora de conhecer a justiça absurda.
O caráter subjetivo do conceito de justiça fica bem claro na resposta de Camus ao se referir à justiça do outro. Realmente, cada um procura convencionar o que é justo de acordo com o que lhe convém, como algo que possa servir de retribuição a uma ação motivada por um ideal valorado positivamente, um suposto esforço recompensado. Entretanto, é curioso notar jamais ter havido um ditador sanguinário, ou mesmo um revolucionário empertigado, que não invocasse a justiça para justificar assassinatos, estupros, pilhagem, migração forçada, entre outras expressões de violência. É possível que por esta razão D.H. Lawrence (1885-1930) tenha revelado que “o que as pessoas querem é o ódio, o ódio, nada mais do que o ódio, em nome do amor e da justiça, odeiam.”. Difícil encontrar argumentos para contestar as diferentes visões acima apresentadas. Afinal de contas, o que é justiça? Grandes filósofos tentaram nos dizer, e alguns deles só encontraram injustiça, assim como Sócrates (469 a.C.-399 a.C), julgado por possuir autonomia na arte de pensar.
Na religião é fácil encontrar quem tenha explicação para tudo, inclusive para esta pergunta sem resposta. Aliás, a busca por justiça é o ponto em comum de todas as crenças, independentemente do Deus para o qual se faz reverência. Enquanto os budistas creem na instrumentalidade do Karma para que o homem corrija todos os males causados em vidas passadas até alcançar o Nirvana, os cristãos acreditam no julgamento feito por um Cristo ressuscitado no final dos tempos. A justiça não seria concebida no tempo da vida terrena, mas sim em outro mundo, ao lado do Criador. Confiam que “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão fartos” (Mateus 5:6). Eis a fé cristã! Deixemos para os especialistas a palavra final, mas tudo indica que o reino onde a sede e a fome de justiça serão saciadas pertença a outro mundo, e não a este dos homens sem santidade. A resposta de Jesus a Pilatos não deixa dúvidas: “- O meu reino não é deste mundo.” (João 18:36). Portanto, justiça neste planeta não há, nunca houve, nem mesmo para o Filho de Deus, incompreendido, traído, caluniado, açoitado, crucificado e vilipendiado. Contudo, mais cedo ou mais tarde todos clamarão a Deus por justiça, aqui e agora, inclusive aqueles que mais promoveram injustiças na face da Terra, onde até Lúcifer se sente injustiçado.
Embora ninguém saiba conceituar justiça, todos saberão dizer com clareza, salvo raras exceções, o que seria injustiça (para variar, alguns mais do que os outros). Difícil crer que um médico de hospital público brasileiro não seja capaz de nos esclarecer sobre o sentido de injustiça ao discorrer a respeito de receber menos de um terço dos vencimentos de um agente de segurança da Câmara dos Deputados, e de dez vezes menos que um promotor (de justiça). Igualmente não faltarão argumentos para o violinista que ouve diariamente nossos ilustres artistas de três acordes, com rimas no infinitivo, serem chamados de gênios pelas emissoras de televisão. Melhor ainda o depoimento dos nossos mestrandos e doutorandos que estão ingressando na Uber para sustentar a família, enquanto os jogadores de futebol de segunda categoria ostentam nas redes sociais helicópteros, iates e mansões. Aliás, não há razão para tanta especialização de fatos ilustrativos. Perguntemos aos pais que perdem seus filhos transfixados por balas de fuzil; às pessoas que morrem lentamente pela falta de tratamento; às famílias que ceiam nas calçadas repartindo o lixo nosso de cada dia; aos inocentes encarcerados; às crianças violentadas; aos cônjuges traídos e usados, lançados à sarjeta apenas com as roupas do corpo; aos filhos trocados por um punhado de drogas; aos trabalhadores com sapatos sem sola.
Com exceção daqueles que nasceram com o corpo e alma virados para a Lua, somos os “vira-latas atropelados”, retratados por João Cabral de Mello Neto em “Morte e Vida Severina”; os “Likvidators” envenenados até os ossos em Chernobyl; a “Escolha de Sofia” das mães miseráveis nos campos da Somália. Sabemos o que é trabalhar sem receber, plantar sem colher, dar sem ter, adoecer sem saber onde morrer, e morrer sem viver. Injustiça é aqui, onde se faz e não se paga. Justiça, talvez em outro lugar.