A Soberania dos Veredictos e o Duplo Grau de Jurisdição do Procedimento do Júri

Breve análise do artigo 593, § 3º do CPP

08/06/2019 às 12:15
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Trata-se de uma análise sobre a impossibilidade de um novo recurso que desconsidera as circunstancias relevantes não examinadas e consequentemente não utilizadas como fundamento no primeiro recurso de contrariedade.

 

A priori, insta salientar que o Tribunal do Júri é considerado uma instituição democrática, isto porque são sete jurados sorteados aleatoriamente para participar de um julgamento. Seguindo o raciocínio de LOPES JR (2016, p. 452)., a independência dos jurados resta prejudicada pelas influências externas, sem que possam ter elementos para blindar-se disto. Os jurados, obviamente, sem uma visão técnica, valoram a prova à sua maneira. Assim, o debate da acusação e da defesa acaba sendo aquilo que poderá pesar na condenação ou absolvição. Os jurados, em sua posição de juízes leigos, poderão proceder com sua decisão sem um requisito importante, passível de nulidade em condições normais: a motivação, assim, a “íntima convicção”, despida de qualquer fundamentação, permite a imensa monstruosidade jurídica de ser julgado a partir de qualquer elemento.” (LOPES JR., 2016). Quanto à motivação, para exemplificar:

Não sendo a decisão dos jurados motivada, não há como o tribunal ad quem saber se, por exemplo, no caso de condenação, os jurados decidiram ou não pela procedência, mesmo em caso de dúvida. Mas os desembargadores poderão, fazendo a própria avaliação, concluir se, no caso, a prova dos autos permite um juízo seguro, além de qualquer dúvida razoável, da culpa do acusado. Em caso contrário, se o membro do tribunal concluir que a hipótese é de dúvida, pois há um segmento da prova que dá suporte à versão acusatória, mas outro arrima a tese da inocência, deverá dar provimento ao recurso, cassando o primeiro julgamento e mandando o acusado a novo júri. (BADARÓ, 2017, p.188)

Entretanto, neste momento, não será realizada questionamentos sobre a escolha dos jurados ou procedimentos, e sim sobre a recorribilidade destas decisões. Em sede de Tribunal do Júri, o duplo grau de jurisdição recebe uma espécie de mitigação com vistas a assegurar a soberania dos vereditos (art. 5.ºXXXVIII, da CF). Para tanto, há um rol taxativo para interposição de apelação, disposto no art. 593III, do CPP. A importância da decisão dos jurados é tamanha que nem mesmo o tribunal ad quem possui atribuição para modificar o resultado final, e inclusive os jurados poderão decidir mesmo quando for contrária às provas constantes nos autos.

Desta maneira, no máximo, o Tribunal de Justiça decide por um novo julgamento – anulando o primeiro – com novos jurados (Súmula 206 do STF) ou uma correção de algum ato do juiz togado. Pela sua fundamentação ser vinculada, como a súmula 713 do Supremo Tribunal Federal, in verbis: “O efeito devolutivo da apelação contra decisões do júri é adstrito aos fundamentos da sua interposição”. Ou seja, para interposição do recurso e as razões é necessário a demonstração do motivo elencado no aludido artigo acima do diploma processualista penal, delimitando a matéria a ser analisada pelo tribunal em apelação. Renato Brasileiro Lima (2016) questiona posições contrárias a hipótese do art. 593, III, d:

Há posição minoritária na doutrina que entende que o disposto no art. 593III, alínea d, do CPP é inconstitucional, sob o argumento de que, por força da soberania dos veredictos, não é possível que um tribunal superior composto por juízes togados determine a realização de novo julgamento, sob a justificativa de manifesto desrespeito à prova dos autos. Prevalece, todavia, a orientação de que é inconcebível que uma decisão manifestamente contrária à prova dos autos não possa ser revista por meio de recurso, o que poderia inclusive caracterizar afronta ao princípio do duplo grau de jurisdição, previsto implicitamente na Constituição Federal, e explicitamente na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Dec. 678/92, art. , nº 2º, alínea h).

Ocorre que quando tratar-se de decisão manifestadamente contrária às provas, a medida só permite a utilização deste motivo apenas uma vez. Nesta hipótese, há um questionamento: e se no novo julgamento novamente incidir a decisão contrária às provas nos autos? Não há possibilidade prevista de nova apelação com este fundamento. Assim, é razoável extrair que a vedação do art. 593§ 3ºCPP comporta em dois vislumbres a serem observados: i) Mesmo que seja decisão manifestadamente contrária às provas e; ii) a segunda apelação tenha como objeto de fundamentação o mesmo motivo, não seria este novo recurso conhecido.

Portanto, um entendimento ampliado, pela interpretação baseada, entre outros princípios, na ampla defesa, duplo grau de jurisdição e no valor universal da dignidade humana, uma nova apelação poderia ser possível quando a decisão não tiver levado em consideração determinada circunstância que modificaria o status do processo. Desta maneira, será que deve ser permitida uma segunda apelação contrária às provas, mas, que sejam analisadas outras circunstâncias, como as qualificadoras, nos quais não são analisados nos quesitos apresentados aos jurados? A resposta inicial dada pela lei e pela doutrina majoritária seria negativa ou positiva? Cabe analisar um caso hipotético para adentrar com duas correntes a respeito:

Em processo criminal, em que atribuído homicídio qualificado ao réu, toda prova direciona-se no sentido de que deva ser condenado por homicídio simples. Entretanto, ao ser julgado pelo júri, resta absolvido. Inconformado, o Ministério Público apela, com base no art. 593IIId, do CPP. Provido este recurso pelo tribunal de justiça, o julgamento é anulado, determinando essa corte que outro seja realizado. No 2º Júri, o réu é condenado por homicídio qualificado. Considerando que as provas do processo conduzem à sua condenação por homicídio simples, persistiram os jurados a decidir contra a prova dos autos. (AVENA, 2017, p.838)

Nesta hipótese, dois entendimentos sobre a vedação ou a possibilidade de uma segunda apelação. Considerando o recurso do Ministério Público, a defesa poderia recorrer com a mesma alínea ‘d’? Primeira corrente: A corrente majoritária entende que cabe apenas apelar com fulcro em outras alíneas do art. 593, tais como ‘a’, ‘b’ e ‘c’, já que o MP já utilizou da fundamentação ‘d’, recaindo a vedação do § 3º. Segunda corrente: seria autorizado o cabimento de uma apelação com o mesmo fundamento para cada parte, uma vez ao MP e outro para a defesa. Então no caso hipotético acima, no raciocínio desta segunda corrente, a defesa poderia se socorrer de uma segunda apelação fundamentando que os jurados decidiram contra o conjunto probatório. Não obstante, a questão da condenação e sua análise de quesitos realizados pelos jurados, em determinada temática, não foi matéria questionada no juízo ad quem.

Nesta esteira, o Tribunal de Justiça não poderá conhecer de uma apelação com fundamentos antes questionados. Importa ressaltar, já que houve um posicionamento a respeito, os tribunais devem seguir seus próprios precedentes, pelo princípio da uniformidade das decisões, confiança a legítima e de segurança jurídica. Mas, há que se entender que os motivos da apelação com sentença condenatória (adentrando a outros quesitos) contrária às provas e por outro lado, o reconhecimento de uma qualificadora ou circunstância contrária à prova nos autos trata de perspectivas diversas. Há também o entendimento, já rechaçado, de que a apelação da hipótese recursal prevista no art. 593, inciso III, alínea ‘d’ do CPP, ser restrita a defesa. Entretanto, tal tese foi afastada pelo HC n. 111.867, DJe de 18/12/2013:

EMENTA: CONSTITUCIONAL E PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINÁRIO. HOMICÍDIO QUALIFICADO – ART. 121§ 2ºII E IV, DO CÓDIGO PENAL. ABSOLVIÇÃO DE UM DOS RÉUS E DESCLASSIFICAÇÃO, QUANTO AO OUTRO, PARA O CRIME DE LESÃO CORPORAL SEGUIDA DE MORTE (ART. 129§ 3º, DO CP). APELAÇÃO PROVIDA SOB O FUNDAMENTO DE QUE A DECISÃO DO TRIBUNAL DO JÚRI CONTRARIOU A PROVA DOS AUTOS. EXCESSO DE LINGUAGEM NO VOTO CONDUTOR. INEXISTÊNCIA: OBSERVÂNCIA DO LIMITE ENTRE O DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS (ART. 93IX, DA CF) E O PRONUNCIAMENTO JUDICIAL COMEDIDO NOS PROCESSOS DO TRIBUNAL DO JÚRI. APELAÇÃO FUNDADA NO ART. 593III, D, DO CPP. JUÍZO DE CASSAÇÃO, E NÃO DE REFORMA. LEGITIMIDADE ATIVA DE AMBAS AS PARTES. INEXISTÊNCIA DE OFENSA AO PRINCÍPIO DO IN DUBIO PRO REO. COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL DO JÚRI E SOBERANIA DE SEUS VEREDICTOS
PRESERVADAS. INADMISSIBILIDADE DE UTILIZAÇÃO DO HABEAS CORPUS COMO SUCEDÂNEO O RECURSO CABÍVEL.(...)
2. In casu:
- (i) o paciente e outro foram submetidos a julgamento do Tribunal do Júri pela prática do crime de homicídio duplamente qualificado (CP, art. 121§ 2ºII e IV), seguindo-se sua absolvição e, quanto ao corréu, a desclassificação para o crime de lesão corporal seguida de morte (CP, art. 129§ 3º); e
- (ii) o Tribunal local proveu recurso de apelação interposto com esteio no art. 593IIId, do CPP, para anular a sentença absolutória, sob o fundamento de contrariedade à prova dos autos.
3. O acórdão que provê apelação interposta com fundamento no art. 593III, alínea d, do CPP, para anular sentença absolutória contrária à prova dos autos, traduz mero juízo de cassação, e não de reforma, por isso que não cabe falar em afronta à competência do Tribunal do Júri e da soberania de seus veredictos (HC 94.052/PR, Rel. Ministro Eros Grau, Segunda Turma, Julgamento em 14/04/09, DJe 14/08/2009; HC 82.050/MS, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJe de 21.3.2003; HC 88.707-SP, Rel. Min. Ellen Gracie, DJe de 16.10.2008).
4. A legitimidade ativa para interpor recurso de apelação fundado no art. 593III, alínea d, do CPP, é de ambas as partes, e não apenas da defesa, a despeito de afronta do princípio do in dubio pro reo, como sustentado nas razões da impetração (...)

De modo a ilustrar e concatenar ideias há que compreender duas situações: uma sentença que absolve o réu, mesmo comprovado materialidade e autoria, todas as provas direcionam em um só sentido. Primeira situação: O MP poderia recorrer fundamentado na alínea ‘d’ por tratar de decisão contrária às provas nos autos? O STJ entende que sim, como no acórdão transcrito supra, não ofenderia a soberania das decisões dos jurados e nem mesmo o princípio do in dubio pro reo, pelo fato de ser a sentença cassada e não reformada. Segunda situação: Agora, se após o MP recorrer na hipótese do artigo e ser anulado para a realização de novo julgamento e neste o réu é condenado por um homicídio qualificado, bem como surgido os quesitos constantes no art. 483§ 3º do CPP, em que os jurados avaliam a “ I - causa de diminuição de pena alegada pela defesa e II - circunstância qualificadora ou causa de aumento de pena, reconhecidas na pronúncia ou em decisões posteriores que julgaram admissível a acusação.”, a defesa poderia recorrer da qualificadora?. Neste segundo momento surge uma nova análise, nos quais não foram apreciados na primeira apelação.

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Destarte, Cristina Emy Yokaichiya aduz que é possível, considerando os aspectos constitucionais, uma segunda apelação referente às “qualificadoras ou de outras circunstâncias que não tenham sido abordadas no primeiro recurso, desde que manifestamente contrária à prova dos autos.”. Em síntese, seria uma apelação para cada motivo, motivos estes não abordados e analisados pelo tribunal ad quem. Porém, para LIMA (2016, p.2312), o não conhecimento de uma segunda apelação fundada no art. 593, III e a vedação do § 3º do mesmo artigo “prima pela segurança jurídica, porquanto impede a utilização do expediente recursal como maneira de eternizar a lide criminal.”.

Nas demais alíneas do art. 593, já constam hipóteses de impugnações a ações do magistrado, que possa aplicar injustamente a pena, podendo ser até mesmo retificada pelo juízo ad quem (§§ 1º e 2º). Mas, como formular um recurso direcionado especificamente a decisão dos jurados em considerar uma qualificadora? Para Aury Lopes Junior, independente da fundamentação, o § 3º veda a possibilidade de segunda apelação. E quanto ao significado “mesmo motivo”, após “vacilo jurisprudencial”, é pacífico que trata de novo recurso com base na letra d, não podendo utilizar duas vezes a mesma fundamentação legal?

1. Júri absolve – MP recorre com base na letra d – novo júri – réu novamente absolvido – MP pode apelar com base na letra d? Não, pois não se admite segunda apelação pelo mesmo motivo.
2. Júri absolve – MP recorre com base na letra d– novo júri – réu é condenado – pode a defesa recorrer com base na letra d? Não. É ilógico que a mesma prova seja manifestamente contrária à decisão absolutória e condenatória.
3. Júri condena – defesa recorre com base na letra d – novo júri – réu novamente condenado – cabe nova apelação com base na letra d? Não, pois não se admite segunda apelação pelo mesmo motivo.
4. Júri condena – defesa recorre com base na letra d – novo júri – réu absolvido – cabe apelação por parte do MP, com base na letra d? Não, é ilógico. (LOPES JR., 2016, p.838).

O ordenamento jurídico brasileiro está sob a égide da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) em seu art. 8.2.h, estabelece que “Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: direito de recorrer da sentença a juiz ou tribunal superior”. Portanto, tendo em vista a plenitude de defesa expresso no art. 5.ºXXXVIIIaCF, há a possibilidade de uma interpretação no sentido de reverificar ou ressignificar a expressão “pelo mesmo motivo”, não direcionando, desta forma, diretamente a alínea ‘d’, mas, sim, aos motivos específicos de fato alegados na primeira apelação, que terão uma visualização diferenciada ao analisar outros fundamentos não postos em discussão anteriormente no tribunal. O segundo recurso caberia, neste raciocínio, exclusivamente para a análise: i) das qualificadoras e circunstancias não questionadas no recurso anterior, em decisão absolutória ou ii) que sendo condenação, tenha o novo julgamento propiciado uma maior amplitude, explorando a posteriori outras temáticas não abordadas na primeira condenação. Considerando que a decisão dos jurados poderá contrariar a prova uma qualificadora, causa de aumento ou de diminuição da pena.

Ante o exposto, tal posicionamento é de notória relevância, partindo dos argumentos analisados, a impossibilidade de um novo recurso pela vedação do art. 593, § 3º desconsidera as circunstancias relevantes não examinadas e consequentemente não utilizadas como fundamento no primeiro recurso de contrariedade, ainda mais no que concerne à qualificadora que possa ser contrária ao restante do conjunto probatório. Não obstante, o impedimento de um segundo recurso para a defesa, por motivo diverso, – outro tópico da condenação – atacando outro ponto anteriormente não vislumbrado, no qual não se utilizou da mesma oportunidade de questionar a decisão dos jurados que contrariou as provas, poderá caracterizar uma supressão do duplo grau de jurisdição e limitação da plenitude de defesa. Portanto, há ainda muitas possíveis discussões que podem render neste sentido, de forma a ponderar a plenitude de defesa em detrimento da soberania dos veredictos.

REFERÊNCIAS

AVENA, Norberto Cláudio Pâncaro. Processo penal. 9.ª ed. rev. e atual. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2017.

BADARÓ, Gustavo Henrique. Manual dos recursos penais. 2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017.

BRITO, Alexis Couto de. Processo penal brasileiro. 3. ed. São Paulo : Atlas, 2015.

LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único. 4. ed. rev., ampl. e atual. – Salvador: Ed. JusPodivm, 2016.

LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2016.

YOKAICHIYA, Cristina Emy. A vedação legal e o duplo grau de jurisdição no procedimento do júri. Disponível em https://www.ibccrim.org.br/boletim_artigo/5731-A-vedacao-legaleo-duplo-grau-de-jurisdicao-no-proce.... Acesso em 20 de setembro de 2018.

Sobre a autora
Ingryd Stéphanye Monteiro

Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/2914037905761536

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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