Direitos Humanos e as pessoas com deficiência mental no Brasil

09/06/2019 às 09:58
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Este artigo apresenta uma breve perspectiva histórica e crítica da transformação do Direito em relação às pessoas com deficiência mental e suscita questionamentos sobre a efetividade dos direitos positivados no ordenamento jurídico nacional.

1. Introdução

Este trabalho tratará, de forma sucinta, da positivação dos direitos humanos das pessoas com deficiência mental no ordenamento jurídico brasileiro, suas consequências no plano institucional e as implicações na vida social e dignidade dessas pessoas. Será traçado um panorama histórico descrevendo e analisando os avanços jurídicos e a conquista de direitos dessa população e, por fim, uma avaliação crítica do arcabouço jurídico-institucional atualmente existente em relação à efetivação de tais direitos. A metodologia adotada na feitura deste artigo foi a revisão bibliográfica e literária, de forma explicativa e qualitativa.

2. Perspectiva histórica

Até o início do século XX, não existia no Brasil nenhuma lei que tratasse das pessoas com transtornos mentais, então, as pessoas em sofrimento psíquico eram segregadas da sociedade em cadeias públicas, sem qualquer critério ou avaliação médica, juntamente com criminosos e outros indesejados e desprezados pela comunidade.

Em 1903, portanto, foi editado o Decreto nº 1.132, que dispôs sobre a guarda dos bens dos alienados, a possibilidade de alta, a proibição de segregação em cadeias públicas, a inspeção dos asilos feita por comissão constituída pelo Ministro da Justiça, suas condições de funcionamento, o pagamento das diárias dos doentes mentais e a composição dos trabalhadores do Hospício Nacional e das colônias de alienados, entretanto, somente em 1934, com o Decreto nº 24.559 que passou-se a falar em acompanhamento médico e social para os pacientes, antes, durante e depois das internações, e foi criado um Conselho para proteção e prevenção aos psicopatas, instituindo a relação entre psiquiatria e Justiça (BRITTO apud DEL’OLMO e CERVI, 2017, p. 203/204).

Apesar da inovação no campo institucional, para a época, existem registros de tratamento desumano de pessoas com transtornos mentais nos hospícios e colônias brasileiros durante todo o século XX. Um caso muito conhecido é o do Hospício de Barbacena, em Minas Gerais, documentado em obra jornalística, segundo a qual, 60 mil pessoas morreram internadas naquele local, de frio, sede, fome e maus-tratos (ARBEX, 2013).

Diante desse quadro, surgiu, no final da década de 1970, movimentos dos trabalhadores em saúde mental reivindicando melhores condições de trabalho e a humanização do tratamento dado aos doentes mentais. Depois, juntaram-se a esse grupo políticos, empresários, usuários e familiares, dando origem ao Movimento Nacional da Luta Antimanicomial, que passou a pressionar o Poder Público para a construção de uma legislação e políticas públicas protetivas e que respeitassem os direitos humanos das pessoas com transtornos mentais, ao que se chamou Reforma Psiquiátrica.

Nesse ínterim, em 1999, ocorreu a denúncia de violação dos direitos humanos de Damião Ximenes Lopes, pessoa com transtorno mental, à Corte Interamericana de Direitos Humanos, a fim de responsabilizar o Estado brasileiro pelos maus-tratos e morte do citado paciente, quando internado em clínica psiquiátrica vinculada ao SUS, o que ocorreu, em 2003, em decisão da Corte, que considerou que o Brasil desrespeitou direitos e garantias consagradas na Convenção da qual é signatário, condenando o Estado a reparar material e moralmente a família Ximenes, com pagamento de indenização, investigação e responsabilização dos culpados pela morte do paciente e implantação de políticas públicas de formação e capacitação de profissionais da saúde mental.

Além de ter sido o primeiro caso brasileiro admitido e julgado pela Corte Interamericana, o caso Ximenes Lopes foi o primeiro a originar uma sentença que abordou o tratamento cruel e discriminatório dado às pessoas com transtornos mentais, reconhecendo a sua situação de vulnerabilidade, criando uma jurisprudência internacional e fortalecendo, no âmbito nacional, as ações do Movimento da Luta Antimanicomial (DEL’OLMO e CERVI, 2017, p. 209/210).

2.1 Direitos humanos e assistência psicossocial

A partir desse contexto, e sob o novo prisma político e institucional advindo da Constituição Federal de 1988, que estabelece como princípios da nação a dignidade humana e a igualdade entre todas as pessoas, foi sancionada a Lei nº 10.216/2001, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas com transtornos mentais e estabelece uma atenção psicossocial comunitária, com a participação da família e da sociedade, colocando a internação como medida excepcional, e estipulando que o tratamento terá a finalidade permanente de reinserção social do paciente em seu meio.

Dentre os direitos conferidos pela citada lei às pessoas com transtornos mentais estão: acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde, consentâneo às suas necessidades; serem tratadas com humanidade e respeito, no interesse exclusivo da recuperação de sua saúde, com inserção na família, no trabalho e na comunidade; proteção contra qualquer forma de abuso e exploração; ser tratada em ambientes terapêuticos pelos meios menos invasivos possíveis, acompanhamento médico e acesso à informação e meios de comunicação disponíveis.

Vemos, pois, que, embora a lei nacional da Reforma Psiquiátrica não mencione em seu texto a palavra dignidade, tal diploma legal a garante por meio da proteção de direitos fundamentais da pessoa com transtorno mental, assegurando que todo indivíduo em sofrimento psíquico será tratado com humanidade e respeito, alinhando-se aos Direitos Humanos internacionalmente reconhecidos.

Não obstante, são cabíveis críticas em relação à sua efetividade, uma vez que tal reforma não alcançou a esfera penal, ou seja, infratores doentes mentais, internados em manicômios judiciários, não se favoreceram da reorientação do modelo assistencial preconizado pela lei, permanecendo reclusos enquanto não for cessada sua periculosidade. Outrossim, sua brevidade e superficialidade, sendo omissa sobre sanções e medidas repressivas àqueles que descumprirem seus preceitos e falta de clareza quanto à implantação de políticas públicas e definição de responsabilidades dos agentes públicos (CORREIA JUNIOR e VENTURA, 2014, p. 55).

Já em relação às políticas públicas para as pessoas com transtornos mentais adotadas no Brasil, em trabalho sobre o tema, Mariana Dionísio de Andrade (2017) avalia que elas evidenciam avanços, como a implantação de Centros de Atenção Psicossocial, Residências Terapêuticas e a instituição do auxílio-reabilitação psicossocial, para assistência, acompanhamento e inserção social, fora dos hospitais psiquiátricos. Segundo a autora, são mudanças significativas que demonstram a preocupação com a dignidade das pessoas com transtornos mentais e que colocam o dever de vigília da jurisdição nacional em relação ao funcionamento e eficácia desses serviços.

Ainda assim, pondera que a realidade dos hospitais psiquiátricos brasileiros nem sempre condiz com o respeito aos direitos humanos e que é preciso vigilância constante para que eventos que reduzem a dignidade humana não sejam considerados fator comum (ANDRADE, 2017, p. 16/17).

2.2 Direitos humanos e capacidade civil

Em 30 de março de 2007 foi assinada, em Nova York, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo. O Brasil foi um dos signatários e os referidos atos foram ratificados pelo Congresso Nacional, em 9 de julho de 2008, com equivalência de emenda constitucional. Tal Convenção foi promulgada no país pelo Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009.

A incorporação de tal Tratado ao ordenamento jurídico brasileiro impôs a feitura de uma lei nacional para regulamentar os direitos das pessoas com deficiência dispostos naquele diploma, o que veio a ocorrer com a edição da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015).

Logo em seu primeiro artigo a citada lei expõe que seu objetivo é “assegurar e promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoas com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania”. A novel lei determinou, pois, um novo paradigma jurídico e institucional em relação a tais pessoas, o de dignidade-liberdade, em substituição ao anterior de dignidade-vulnerabilidade (TARTUCE, 2017, p. 641).

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O fato é que tal mudança de paradigma impactou diretamente no regime da capacidade e incapacidade disciplinado pelo Código Civil de 2002. Até então, o Código dispunha que eram absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de 16 anos; os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tivessem o necessário discernimento para a prática desses atos; e os que, mesmo por causa transitória, não pudessem exprimir sua vontade. Após a sanção da Lei de Inclusão, foram revogadas as segunda e terceira disposições, passando a existir apenas uma única forma de incapacidade absoluta, qual seja, a dos menores de 16 anos de idade, prevista, agora, no caput do art. 3º. 

Apesar da promulgação da Convenção e da edição da Lei de Inclusão, existe uma contradição formal no ordenamento jurídico brasileiro em relação à capacidade civil da pessoa com deficiência mental, pois o Código de Processo Civil, de 2015, trata do instituto da interdição de pessoas com doença mental. Sendo assim, na ausência de revogação expressa do disposto no CPC, cabe a doutrina e a jurisprudência fazer a melhor interpretação jurídica, conforme o caso. O Doutor em Direito Processual Fernando Gajardoni (2018) é da opinião de que, em que pese o deficiente mental não ser mais considerado absolutamente incapaz e, portanto inexistente o instituto da interdição, tais disposições do CPC permanecem úteis para o reconhecimento da incapacidade relativa, que podem ensejar dois tipos de assistência em matéria negocial e patrimonial, exclusivamente, conforme a Lei de Inclusão: a curatela, em casos de deficiência mais acentuada; e a tomada de decisão apoiada, em deficiência mental de menor grau.

3. Conclusão

Diante do exposto, depreende-se que houve, no plano jurídico e institucional brasileiro, significativos avanços em matéria de direitos humanos e civis para as pessoas com deficiência mental. Entretanto, no caso dos direitos assistenciais, é necessária uma constante vigilância para que desvios nos serviços oferecidos não se tornem comuns; e, no caso dos direitos civis, uma transformação da mentalidade social para acompanhar o progresso legislativo trazido pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos, notadamente, dos familiares das pessoas com transtornos mentais que, geralmente, são os autores das ações que visam à declaração da incapacidade civil de seus entes, e dos magistrados que julgam tais demandas.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, M. D. de. Direitos Humanos das pessoas com deficiência mental: tratamento institucional no contexto brasileiro. Quaestio Iuris, UERJ, Rio de Janeiro, v. 10, n. 2, p. 1226-1243, 2017. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/quaestioiuris/article/viewFile/25082/20504. Acesso em: 6 dez. 2018.

ARBEX, D. Holocausto Brasileiro. São Paulo: Geração Editorial, 2013.

CORREIA JUNIOR, R.; VENTURA, C. A. O tratamento dos portadores de transtorno mental no Brasil- da legalização da exclusão à dignidade humana. Revista de Direito Sanitário, USP, São Paulo, v.15, n. 1, p. 40-60, 2014. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/rdisan/article/view/82805/85760. Acesso em 5 dez. 2018.

DEL’OLMO, F. S.; CERVI, T. M. D. Sofrimento mental e dignidade da pessoa humana: os desafios da reforma psiquiátrica no Brasil. Sequência, Florianópolis, n. 77, p. 197-220, 2017. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/seq/n77/2177-7055-seq-77-197.pdf. Acesso em 3 dez. 2018.

GAJARDONI, F. F. Ainda existe ação de interdição no CPC/2015? Jota, 2 de abril de 2018. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/novo-cpc/ainda-existe-acao-de-interdicao-no-cpc-2015-02042018. Acesso em 6 dez. 2018.

TARTUCE, F. Direito de Família. 11 ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Forense, 2017.

Sobre o autor
Victor Siébra Pereira Ramos

Formado em Direito pela Universidade Federal da Paraíba e pós-graduado em Direitos Humanos pela Faculdade de Educação São Luís, do estado de São Paulo. Atua como advogado, preponderantemente, em Direito das Famílias e como correspondente jurídico, em várias cidades da Paraíba.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Artigo apresentado como Trabalho de Conclusão do Curso de Especialização em Direitos Humanos, da Faculdade de Educação São Luís, aprovado em 04 de janeiro de 2019.

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