6 AS REVOLUÇÕES LIBERAIS DOS ESTADOS UNIDOS E DA FRANÇA
Evoluindo na arqueologia dos movimentos constitucionais, vai-se considerar o constitucionalismo moderno como sendo aquele que se estende do final do século XVIII até a Segunda Guerra Mundial. Houve o surgimento das primeiras constituições escritas, formais e rígidas. Pode ser mencionada a experiência constitucional dos Estados Unidos. As 13 ex-colônias inglesas unir-se-iam para estabelecer uma confederação, na qual cada uma delas iria manter a sua soberania assinando um tratado internacional.
No entanto, isso não ocorreu. O que se deu foi uma Assembleia Constituinte com a criação de uma federação. Os estados-membros passaram a ter apenas autonomia. Firmara-se a ideia de supremacia da Constituição, que deve ser preservada pelo controle de constitucionalidade.
O controle de constitucionalidade surgiu em 1803, numa decisão proferida pelo juiz Marshall no caso Marbury vs. Madison. O Poder Judiciário é que se coloca como guardião da Constituição, em função de ser o mais neutro de todos os poderes, não se envolvendo tanto no jogo político. Passa-se a falar na jurisdição constitucional.
Outra contribuição importante da experiência norte-americana foi o sistema presidencialista de governo. Veja-se que a forma federativa de estado não foi criada pelos norte-americanos, pois já havia sido consagrada nos cantões suíços, mas foi nos EUA que ela ganhou projeção mundial. Da obra de Loewenstein (1979, p. 374-375) é possível assimilar a seguinte passagem:
Junto a la constitución escrita y el establecimiento de la forma «republicana» de gobierno, esto es, no monárquica, en Estados con un extenso territorio, el federalismo es la aportación americana más importante a la teoría y a la práctica del Estado moderno. Uniones de Estados de tipo federal habían existido anteriormente: en la antigua Grecia, las ligas o sinoikias délica, anfictiónica, helénica y aquea; la «alianza eterna» (ewige Bund) de los cantones suizos desde el siglo XIV y XV, la Unión de Ultrecht (1569) entre las siete provincias norteñas de los Países Bajos.
Na França, a Constituição foi prolixa, diferentemente da Constituição norte-americana. Ela versou sobre vários temas além dos direitos fundamentais, da estrutura do Estado e dos três Poderes. Além disso, foi naquele país que se firmou a noção de Poder Constituinte Originário e Poder Constituinte Derivado, com a obra do Abade Joseph Sieyès. O abade entendia que o verdadeiro titular do Poder Constituinte era a Nação – conceito que hoje é ampliado para povo –, sendo esse poder inalienável e inesgotável com o seu exercício. Por fim, a separação de Poderes também foi trabalhada no âmbito francês, assim como foi nos EUA.
A noção da rule of law, que já era vigorante na Inglaterra do século XVII, foi reforçada com o conceito de Estado de Direito durante o constitucionalismo moderno. O Estado liberal surge, sendo marcado pelo abstencionismo, não atuando no domínio social e econômico. Só age na segurança pública e na ordem pública. O resto seria iniciativa privada. Os direitos fundamentais consagrados nessa época são os da burguesia. Ocorre a limitação dos poderes do soberano. A Administração Pública passa a respeitar o princípio da legalidade. Foi nesse momento que surgiram os direitos fundamentais de primeira dimensão. São os direitos de defesa e os direitos políticos.
É importante lembrar que foi com uma palestra proferida pelo tchecoslovaco Karel Vasak que ficou consagrada a ideia de dimensões dos direitos fundamentais. O professor associou os direitos fundamentais aos valores que são lemas da revolução francesa: liberdade, igualdade e fraternidade. Norberto Bobbio, na obra A Era dos Direitos, deu projeção a essa classificação de Karel Vasak e, posteriormente, Paulo Bonavides, no Brasil, tratou do tema em seu Curso de Direito Constitucional, incluindo a quarta e a quinta geração.
Assim afirma Bonavides (2007, p. 563):
Enfim, se nos deparam direitos da primeira, da segunda e da terceira gerações, a saber, direitos da liberdade, da igualdade e da fraternidade, conforme tem sido largamente assinalado, com inteira propriedade, por abalizados juristas. Haja vista a esse respeito a lição de Karel Vasak na aula inaugural de 1979 dos Cursos do Instituto Internacional dos Direitos do Homem, em Estrasburgo.
Mencione-se, agora, o Estado Social, ainda dentro do contexto do constitucionalismo moderno. Houve duas experiências constitucionais marcantes que deram origem a essa fase. A Constituição Mexicana de 1917 não foi a primeira a consagrar direitos sociais, pois a francesa já os havia previsto, mas ela trouxe, junto com a Constituição de Weimar de 1919, a assunção pelo Estado de assuntos que antes eram de interesse apenas privado.
A principal diferença entre o Estado social e o Estado socialista é que o primeiro adere ao capitalismo. A Alemanha nazista e a Itália fascista foram Estados Sociais, da mesma forma como o Brasil getulista da década de 1930. Porém, isso não inibia que houvesse uma vertente socialista que contestasse a ideologia liberal. Liberati (2013, p. 40) afirma:
A concepção do constitucionalismo socialista, fundada na revolução social dos postulados de Karl Marx e Friedrich Engels, apartada do vértice do Estado de Direito, desprezou os direitos fundamentais e, principalmente, deixou de limitar o poder político, permitindo a afirmação ideológica da ditadura do proletariado.
O que caracteriza o Estado Social é o intervencionismo. Intervém nos campos econômico, social e laboral, passando a ter papel decisivo na produção e distribuição de bens e serviços. Passa a assegurar o bem-estar mínimo.
Atualmente, o Estado brasileiro tem muito mais características de um Estado social do que de um Estado liberal. Foi durante o constitucionalismo moderno que foram consagrados os direitos fundamentais de segunda dimensão, ligados ao valor igualdade substancial. O Estado passa a ter o dever de prestações materiais ou de prestações jurídicas para assegurar a redução das desigualdades fáticas. Esses direitos sociais, econômicos e culturais surgem juntamente com as garantias institucionais, pois a família, o funcionalismo público, a imprensa livre, dentre outros, precisavam ser assegurados.
7 O NEOCONSTITUCIONALISMO
O constitucionalismo contemporâneo (neoconstitucionalismo) vai do fim da Segunda Guerra Mundial até os dias atuais. A força normativa da Constituição foi consagrada. Nos EUA isso já era plenamente reconhecido, mas na Europa só foi ganhar projeção com a obra de Konrad Hesse, pois antes as Constituições eram vistas apenas como documentos políticos.
Houve a rematerialização dos textos constitucionais, pois o conteúdo das constituições atuais se aproxima mais do texto da Constituição Francesa de 1791 – são prolixas e não sintéticas como a norte-americana. Isso se dá por causa dos regimes totalitários que prejudicaram os países da Europa e da América do Sul.
Há o fortalecimento do Poder Judiciário com a judicialização de questões políticas e sociais; a dignidade da pessoa humana passou a ser o núcleo axiológico das Constituições contemporâneas e houve uma centralidade dos direitos fundamentais; aconteceu a constitucionalização do direito, que é consagração constitucional de normas de outros ramos do Direito; passou a acontecer a filtragem constitucional, que é a interpretação das leis de acordo com a Constituição; foi reconhecida a eficácia horizontal dos direitos fundamentais, que significa a aplicação dos direitos fundamentais nas relações privadas, para que não haja opressão entre pessoas que estão no mesmo plano jurídico.
Sarmento (2006, p. 115) menciona que a Carta Política se tornou “ubíqua”, sendo que tal realidade pode ser verificada em vários países. No Brasil, isso pode ser considerado algo bom, mas que traz consigo alguns problemas: o autor destaca que aquilo que é constitucionalizado sai da esfera de decisão das maiorias, ou seja, os representantes do povo passam a não mais deliberar sobre determinadas matérias. Outra crítica que poderia ser formulada seria que a constitucionalização poderia dar ensejo a uma “anarquia metodológica”, vez que os juízes passam a trabalhar com normas por demais vagas e abstrata.
De eficácia horizontal dos direitos fundamentais, também se passa a falar em eficácia diagonal desses direitos, o que significa também a aplicação dos direitos fundamentais nas relações privadas, mas quando houver uma desigualdade fática, a exemplo da relação trabalhista ou da relação de consumo. O autor Rafael de Lazari afirma:
Não se pode esquecer, contudo, da chamada eficácia diagonal dos direitos humanos/fundamentais, aplicada às relações entre particulares em que haja subordinação entre estes, notadamente nas relações de trabalho (empregador/empresa e empregado). De acordo com tal prisma de eficácia, em algumas hipóteses, mesmo nas relações entre particulares, alguns agentes encontram-se em posição desfavorável, desprivilegiada em relação a outros agentes, o que faz com que tal relação deva ser equilibrada por uma incidência proporcional de direitos fundamentais/humanos. Apesar de termos posição bastante restritiva e crítica quanto a esta teoria, sobretudo pensando que as teorias das eficácias horizontal e vertical foram feitas pensando apenas nos agentes ‘indivíduo’ e ‘Estado’ singularmente considerados, sem qualquer carga valorativa entre estes (não se fala em Estados mis ou menos importantes/indivíduos mais ou menos importantes), pode-se pensar na lógica de aplicação da eficácia diagonal também às relações consumeristas, principalmente nos casos de consumidor hipervulnerável (LAZARI, 2017, p. 378).
Com o fim da Segunda Guerra Mundial, surgiu um novo modelo de Estado, que foi o Estado Democrático de Direito. Esse modelo sintetiza as experiências dos Estados liberal e social, buscando superar as deficiências que existiam em ambos. O princípio da soberania popular passa a legitimar o poder. A ideia de império da lei é substituída pela força normativa da Constituição.
Dessa forma, o desafio passa a não ser consagrar direitos fundamentais no plano formal, mas sim efetivá-los. Para isso, é preciso valorizar o conteúdo ou o aspecto material desses direitos. Senão, a Constituição não será nada além de uma folha de papel, como diria Ferdinand Lassalle.
No Estado Democrático de Direito, ocorre uma limitação do Poder Legislativo. O Poder Judiciário faz o controle formal e material dos atos normativos produzidos por este Poder, inclusive pela via da ação ou da omissão. Assim, a Constituição passou a impor deveres ao Parlamento, e se este não atua, o Judiciário faz o controle, a exemplo do que fez com o direito de greve dos servidores públicos.
O Judiciário não pode obrigar o Parlamento a legislar. E nem pode o Judiciário, ele próprio legislar. O que pode fazer é regulamentar situações inconstitucionais geradas pelas lacunas deixadas no ordenamento pelo Parlamento.
São consagrados os direitos fundamentais ligados ao valor fraternidade/solidariedade, que são os direitos de terceira geração. Exemplos seriam o direito ao desenvolvimento, direito ao meio ambiente, direito à autodeterminação dos povos, direito do consumidor, idoso, criança e adolescente, direito à comunicação, etc.
Os direitos de quarta dimensão, de acordo com Paulo Bonavides, seriam a democracia – direitos que permitem uma participação mais ativa do cidadão –, a informação e o pluralismo – diversidade de concepções e respeito às diferenças (BONAVIDES, 2007).
8 A IMPORTÂNCIA DA CONCEPÇÃO CULTURAL DE CONSTITUIÇÃO (CONSTITUIÇÃO TOTAL) PARA A DEFESA DOS DIREITOS DAS MINORIAS E GRUPOS VULNERÁVEIS
Lazari (2017), em sua obra Manual de Direito Constitucional, traz a noção do que seria a Constituição no sentido cultural, tese essa que foi defendida por Peter Häberle.
A concepção cultural de Constituição indica a ideia de Constituição total, com aspectos sociológicos, jurídicos e econômicos, numa perspectiva unitária. O nome cultural advém da cultura total da sociedade que faz a Constituição como conjunto de normas fundamentais, mas essa cultura também é modificada pela própria Carta.
Nas palavras de Lazari (2017, p. 95):
Defendida a partir do pensamento de Peter Häberle, a concepção cultural preconiza que a Constituição, em verdade, tem um aspecto sociológico, político e jurídico, remetendo a um conceito de Constituição total (isto é, em todos os aspectos). Ao mesmo tempo em que uma Constituição é resultante da cultura de um povo, ela também é condicionante dessa mesma cultura com seu surgimento, contribuindo para formação de novos valores.
George Salomão Leite e Glauco Salomão Leite fazem as seguintes considerações acerca da Constituição numa visão total e tridimensional:
Certamente, a Constituição não se apresenta como meros fatos sociais, como pretendem Lassalle e Schmitt. A Constituição é norma jurídica, aliás, compõe-se de normas jurídicas, de imperativos-autorizantes. Não pretendemos aqui utilizar o conceito jurídico de Constituição difundido por Kelsen, numa perspectiva estritamente reducionista, tal qual os outros conceitos acima mencionados e defendidos por Lassalle e Schmitt. A Constituição é norma jurídica, mas a ela não se reduz. Portanto, optamos pela adoção de um conceito total ou estruturante de Constituição, mais atento a uma perspectiva tridimensional do Direito, que não perde de vista a dimensão axiológica inerente às Constituições (LEITE; LEITE, 2008, p.18)
Assim, a Constituição acaba sendo uma obra a se construir. Aquilo que o Poder Constituinte Originário definiu como sendo o texto promulgado não encerra a realidade constitucional em sua plenitude. A Constituição brasileira trouxe como fundamento da República o pluralismo político, sendo que isso representa o respeito e atendimento dos interesses dos mais variados setores da sociedade, incluindo as minorias étnicas, de gênero, de faixa etária, e grupos cujos interesses precisam ser resguardados, como os consumidores.
Se o art. 1º, V da Constituição de 1988 trouxe o pluralismo, o art. 3º, I traz como objetivo fundamental da República a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Porém, é preciso observar o seguinte: o Direito brasileiro foi muito construído pautado da ideia de Estado e do normativismo. Hoje, a doutrina mais moderna defende uma readequação da teoria jurídica para se sair de um passado estritamente dogmático normativista para se passar a encarar o Direito sob a perspectiva da pluralidade social, da complexidade, dos paradoxos e dos riscos (ROCHA, 2013).
É dizer: a doutrina pós-moderna do Direito reconhece a insuficiência da noção de norma jurídica para a análise do que seriam os novos direitos e os novos sujeitos. É preciso, então, trazer a noção de Direito Reflexivo, um Direito que passa a ser visto sob a perspectiva do sistema da teoria de Günther Teubner e do sistema autopoético luhmanniano (ROCHA, 2013). Como diria Wolkmer (2013, p. 1), “[...] o arcabouço normativista da moderna teoria jurídica convencional é pouco eficaz e não consegue atender a extensão competitiva das atuais sociedades globalizadas”.