O ATO PEDAGÓGICO DA CF/88

A importância do Ato Político de ler a Constituição.

15/06/2019 às 02:08
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Ler a CF/88 para restaurar a Política.

O Departamento de Educação da UFSCar realizou, ao longo do primeiro semestre de 2019, um amplo debate sobre a integralidade da Constituição Federal de 1988 – 15 encontros semanais –, sob a orientação de que a CF/88 é uma Carta Política: o espaço público normatizado pela democracia e voltado à emancipação. Este texto é o princípio da minha fala no encerramento, dia 26 de junho, no Auditório Florestan Fernandes. Fecharei minha participação como comecei, com apelo para que o respeito à Lei Fundamental requisite uma Educação que leve à Verdade, Liberdade e Igualdade
O educador Paulo Freire ensinou que “o diálogo entre os homens é a essência da democracia”. Via ele, na educação, um foro privilegiado em que se formariam consciências críticas, envolvendo-se o povo ativamente no ideal do “autogoverno”, da participação com responsabilidade social e com a construção da “autoridade individual interiorizada”: a autonomia era (e é) necessária à autarquia – ao que se sobrepõe a auditoria.
Sempre esteve convicto de que o desenvolvimento econômico e da infraestrutura social modificaria o “pensar do povo”, rumo à modernidade e urbanização. Mas, de modo crítico, Paulo Freire sempre pautou o risco claro de uma “massificação de consciências ingênuas”; afinal, o processo de aculturação e da cultura de massas estava (e está) em curso. O remédio, mais uma vez, estaria na “educação popular crítica” e na “aquisição de uma clara consciência sobre os fatores e condições que a determinam”.
Contra o passado, de mentalidade aristocrática e de dominação paternalista, Paulo Freire só via saída na caracterização de uma “consciência privilegiada na/pela transformação da vida social”. Também por esse caminho se insurgia contra a “domesticação” que provinha do ensino bancário.
Era (é) necessário formar novos quadros que se orientassem pela modernidade, desenvolvimento econômico e democratização das relações sociais com consciência crítica e autônoma. O processo de educação e de conscientização viria prenhe da “riqueza da experiência de vida” de cada educando: como “coautor de si mesmo e de seu entorno”. Mediante as discussões acerca da própria vida, o educando já estaria praticando o diálogo, exercitando a reflexão, exercendo o direito de livre expressão, observando interativamente os condicionamentos e os efeitos sobre a realidade da vida plural.
A educação libertadora dotaria o trabalhador/produtor da capacidade da Isegoria (“tomar a palavra”) e utilizá-la em seu favor (Equidade), para transformar o mundo que se avista diante de seus olhos, bem como na existência maltratada pela desigualdade (Isonomia).
No fundo, a educação deve ser esperança e determinação. Educação não é só transferência de conhecimentos, mas testemunho de vida e crítica. Nesta imbricação entre Política (Direito), ciência (tecnologia) e educação, Paulo Freire ainda nos dizia: "É esse o momento também em que o educador progressista percebe que a claridade política é indispensável, necessária, mas não suficiente, como também percebe que a competência científica é necessária, mas igualmente não suficiente" (Educação e Política, p. 54).
Ao que ainda acrescentaríamos, neste mix entre razão e criação, entre techné e liberdade: “Gostaria de viver num mundo em que pudesse ser mais criativo, do que sou crítico. Mas, hoje isso não é possível, sem perder a consciência ainda presa aos poucos cabelos que me restaram – e que, infelizmente, também começam a perder a cor que receberam de início. Neste dia, ainda não custa sonhar, certamente viveríamos num mundo fantástico. Pense que nossa consciência proviria da criatividade e não da crítica dura, ácida que temos de desenvolver. A cada dia somos obrigados a afiar o olhar e a crispar a fala ou nossa escrita – sobre tudo e todos. Neste dia, até a morte seria vista melhor, quem sabe bem vinda, porque nós a teríamos como víamos a vida, como poetas e não como cientistas”.
“Simplesmente, teríamos passado boa parte da vida lembrando de nossas criações, e não presos à razão que nos força incontestes à crítica. Neste momento, falaríamos mais de liberdade do que de responsabilidades. Também aprenderíamos muito mais com nossos alunos, do que os criticamos, por exemplo, quando eles mesmos copiam os "maus" comportamentos dos mais jovens (e, sobretudo, dos mais velhos). Neste mundo, imagine, as pessoas não seriam ingênuas ou imaturas ou incautas – aliás, como são hoje –, mas sim honestas e maduras o suficiente para criar o melhor para a vida. Você imagina isso em sua vida, algum dia, nalgum lugar? Se puder ver, diga-me onde estás, quem sabe possamos nos encontrar. Isto é utopia pura, como um dia alguém escreveu sobre ‘a guerra pura”.
Nessa trilha, a CF/88 nos ensina que “é preciso desnaturalizar as desigualdades materiais entre as pessoas” e libertar as almas, os desejos, as ações, a práxis, para o exercício da liberdade na igualdade. Também por isso, ler a Constituição é um ato de fé pública, crença na ficção do Direito Justo e práxis da utopia democrática.
Vinício Carrilho Martinez (Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito)
Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar
Departamento de Educação- Ded/CECH
Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS

 

Sobre o autor
Vinício Carrilho Martinez

Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

Informações sobre o texto

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