A autoexecutoriedade do poder de polícia estatal e a (des)necessidade de intervenção judicial.

20/06/2019 às 10:16
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Palavras-chave: Poder de Polícia. Autoexecutoriedade. Inafastabilidade da Jurisdição. Interesse de agir.

UCAM – UNIVERSIDADE CANDIDO MENDESLIA COELHO DE ALBUQUERQUE            A AUTOEXECUTORIEDADE DO PODER DE POLÍCIA ESTATAL E A (DES)NECESSIDADE DE INTERVENÇÃO JUDICIAL             

FORTALEZA – CE2019UCAM – UNIVERSIDADE CANDIDO MENDESLIA COELHO DE ALBUQUERQUE            A AUTOEXECUTORIEDADE DO PODER DE POLÍCIA ESTATAL E A (DES)NECESSIDADE DE INTERVENÇÃO JUDICIAL     Artigo Científico apresentado à Universidade Cândido Mendes – UCAM, como requisito parcial para a obtenção do título de Especialista em Direito Administrativo.        

  FORTALEZA – CE2019 A AUTOEXECUTORIEDADE DO PODER DE POLÍCIA E A (DES)NECESSIDADE DE INTERVENÇÃO JUDICIAL             Lia Coelho de Albuquerque 

RESUMO O presente trabalho investiga os limites e as condições para a verificação do atributo da autoexecutoriedade dos atos emanados pelo Poder Público no exercício do Poder de Polícia, mormente com a finalidade de identificar, com precisão, as hipóteses que carecem de intervenção judicial, sendo vedada à Administração a adoção de meios diretos de coerção. Sobressaem-se, nesse contexto, os princípios da legalidade, da razoabilidade, da proporcionalidade, da moralidade e do devido processo legal, cuja observância configura condição sine qua non para a legitimidade da imposição de métodos de execução material das obrigações impostas aos administrados. Fundamental, também, é a análise do tema à luz do princípio da inafastabilidade da jurisdição, não só como prerrogativa dos particulares, a fim de evitar eventuais abusos ou ilegalidades perpetradas pela Administração, mas sobretudo como instrumento do próprio Poder Público, notadamente quando as medidas implementadas com fulcro na autoexecutoriedade do Poder de Polícia mostrarem-se insuficientes para a efetiva concretização do interesse público. 

Palavras-chave: Poder de Polícia. Autoexecutoriedade. Inafastabilidade da Jurisdição. Interesse de agir.  Introdução

A preocupação central do presente trabalho consiste em pormenorizar as limitações impostas ao exercício do Poder de Polícia, em especial no que se refere ao atributo da autoexecutoriedade dos atos administrativos emanados com o objetivo de condicionar ou restringir o uso e gozo de bens, atividades e direitos individuais em benefício da coletividade, cujo fundamento reside na predominância do interesse público sobre o particular. Nesta perspectiva, almeja-se distinguir os casos que autorizam a utilização de meios diretos de coação daqueles em que se faz necessário prévio acionamento do Poder Judiciário. 

Desse modo, a sensibilidade do tema justifica-se justamente pela dificuldade de identificar, precisa e objetivamente, os critérios empregados para tal, mormente porque as medidas de polícia encontram-se inseridas no âmbito da discricionariedade da Administração (DI PIETRO, 2018), não restando alternativa para o controle do atos decorrentes do poder de polícia senão a verificação de conformidade dos mesmos no que tange aos princípios norteadores da atividade administrativa, com destaque para a legalidade, a adequação e a razoabilidade, a moralidade e o devido processo legal.

Cumpre ainda traçar um panorama das limitações à autoexecutoriedade do poder de polícia à luz do princípio da inafastabilidade da jurisdição, consagrado no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal, segundo o qual “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. (BRASIL, 2018, p. 7) 

Daí extrai-se o fundamento para a adoção do sistema da unidade da jurisdição pelo direito brasileiro (CARVALHO FILHO, 2017), conduzindo à conclusão fundamental de que qualquer que seja o autor da lesão – o Poder Público inclusive – poderá o prejudicado socorrer-se das vias judiciais. 

Não obstante a nobre finalidade de atribuir o monopólio da função jurisdicional ao Poder Judiciário – órgão dotado de garantias de imparcialidade (DI PIETRO, 2018), a fim de evitar excessos da Administração em detrimento de direitos individuais, permitindo-lhe a apreciação e consequente invalidação de atos viciados –, também é importante examinar o direito ao acesso à justiça enquanto prerrogativa do próprio Poder Público, notadamente quando as medidas implementadas com fundamento na autoexecutoriedade do poder de polícia mostrarem-se insuficientes para a efetiva concretização do interesse público. 

Para alcançar tais objetivos, mostra-se necessária a abordagem de aspectos eminentemente doutrinários relacionados com a temática em estudo, utilizando-se como principal recurso metodológico a pesquisa bibliográfica, realizada a partir da análise minuciosa de materiais já publicados na literatura e artigos científicos divulgados no meio eletrônico. 

Desenvolvimento

O estudo acerca do Poder de Polícia fatalmente remete à bipartição dos sentidos que comportam a expressão. Em sua acepção mais ampla, “significa toda e qualquer ação restritiva do Estado em relação aos direitos individuais” (CARVALHO FILHO, 2017, p. 83), de modo a abranger, além da atividade administrativa propriamente dita, a atividade legislativa, que inova na ordem jurídica com a criação de direitos e obrigações. Nesse sentido, referindo-se ao exercício do Poder de Polícia tanto pelo Executivo como pelo Legislativo, Maria Sylvia Zanella Di Pietro elucida:

O poder de polícia reparte-se entre Legislativo e Executivo. Tomando-se como pressuposto o princípio da legalidade, que impede à Administração impor obrigações ou proibições senão em virtude de lei, é evidente que, quando se diz que o poder de polícia é a faculdade de limitar o exercício de direitos individuais, está-se pressupondo que essa limitação seja prevista em lei. 

O Poder Legislativo, no exercício do poder de polícia que incumbe ao Estado, cria, por lei, as chamadas limitações administrativas ao exercício das liberdades públicas. A Administração Pública, no exercício da parcela que lhe é outorgada do mesmo poder, regulamenta as leis e controla a sua aplicação, preventivamente (por meio de ordens, notificações, licenças ou autorizações) ou repressivamente (mediante imposição de medidas coercitivas). (DI PIETRO, 2018, p. 192)

Por sua vez, o conceito restrito do Poder de Polícia compreende, tão somente, “o exercício da função administrativa, fundada na lei, que restringe e condiciona o exercício de direitos e atividades privadas, com o objetivo de implementar o interesse público”. (OLIVEIRA, 2017, p. 265). 

É exatamente essa extensão – convencionalmente ilustrada pela expressão Polícia Administrativa (CARVALHO FILHO, 2017) – que utilizaremos no presente trabalho, a fim de representar, máxime, “as limitações administrativas à liberdade e propriedade privadas, deixando de fora as restrições impostas por dispositivos legais”. (MAZZA, 2018) 

A respeito do fundamento do Poder de Polícia, afirma-se, tradicionalmente, que decorre da própria ideia de supremacia geral do Estado sobre seu território (SOUZA; FIDALGO, 2018). Di Pietro (2018) igualmente justifica as manifestações de polícia pelo princípio da predominância do interesse público sobre o particular, referindo-se à posição de supremacia da Administração sobre os administrados. 

Cumpre mencionar, entretanto, a doutrina de Rafael Oliveira, que, discorrendo sobre o tema à luz do fenômeno da constitucionalização do Direito Administrativo, reputa “mais adequado afirmar que o fundamento de toda e qualquer ação estatal deve ser a promoção e a proteção dos direitos fundamentais” (OLIVEIRA, 2017, p. 271). Com efeito, no Estado Democrático de Direito, os direitos fundamentais passam a assumir duplo papel de controle sobre a atividade estatal, funcionando ao mesmo tempo como fundamento e como condicionante do exercício das prerrogativas públicas. (JUSTEN FILHO, 2009)

Nesse escopo, dando continuidade ao estudo do Poder de Polícia, ora referindo-se às características que lhes são próprias, costuma-se apontar como atributos a discricionariedade, a coercibilidade e a autoexecutoriedade. (DI PIETRO, 2018)

O exercício do poder de polícia, salvo algumas exceções, encontra-se amparado por uma margem de “liberdade conferida pelo legislador ao administrador para escolher, por exemplo, o melhor momento de sua atuação ou a sanção mais adequada no caso concreto” (OLIVEIRA, 2017, p. 272), notadamente nas hipóteses em que há previsão legal de duas ou mais sanções para determinada infração. Trata-se da denominada discricionariedade administrativa. 

A coercibilidade, por sua vez, reporta-se à aptidão do ato administrativo de criar unilateralmente obrigações aos particulares, independentemente da anuência destes. Isto é, consiste na autorização para que o Poder Público ingresse na esfera jurídica dos particulares, impondo-lhes obrigações. (GONÇALVES, 2010). Convém mencionar, no entanto, que nem toda medida de polícia é dotada de coercibilidade, podendo-se apontar como exceção os consentimentos de polícia, os quais, por serem editados a pedido dos particulares, classificam-se como espécie de atos negociais.

Desse modo, segundo Alexandre Mazza, a coercibilidade – abordada pelo autor como sinônimo de imperatividade –, consiste na capacidade da Administração de vincular terceiros a deveres jurídicos, com fundamento no chamado poder extroverso. Logo, “ao contrário dos particulares, que só possuem poder de auto-obrigação (introverso), a Administração Pública pode criar deveres para si e também para terceiros”. (MAZZA, 2018. p. 297)

Por derradeiro, em relação à autoexecutoriedade, Carvalho Filho (2017) precisamente define-a como sendo a prerrogativa da Administração de colocar suas decisões em imediata execução, independentemente do consenso do administrado e sem necessidade de prévia manifestação judicial; sendo, bem por isso, denominada de privilége d’action d’office no Direito Administrativo francês. 

O atributo da autoexecutoriedade encontra-se essencialmente traduzido, portanto, na possibilidade de execução direta e integral de determinado ato administrativo – desde que, por óbvio, observada a presença dos respectivos pressupostos legais –, facultando-se, inclusive, a utilização da “força física se preciso for para desconstituir situação violadora da ordem jurídica”. (MAZZA, 2018, p. 297)

Desse modo, destacam-se como típicas expressões da autoexecutoriedade do poder de polícia estatal: i) o guinchamento de carro estacionado em local proibido; ii) o fechamento de restaurante pela vigilância sanitária; iii) a apreensão de mercadorias contrabandeadas; iv) a demolição de construção irregular em área de manancial; v) a requisição de escada particular para combater incêndio; vi) a interdição de estabelecimento comercial irregular; vii) a destruição de alimentos nocivos ao consumo público e expostos à venda; viii) o confisco de medicamentos necessários para a população, em situação de calamidade pública. (MAZZA, 2018)

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Imperioso ressaltar, nesse tocante, que a autoexecutoriedade não se confunde com a (mera) exigibilidade. Embora também relacionada com a prerrogativa conferida ao Estado de induzir terceiros à observância de seus atos, a exigibilidade apenas autoriza a imposição de providências indiretas, a exemplo da inscrição do débito em dívida ativa e da aplicação de penalidades, como multas, advertências e interdição de estabelecimentos comerciais. 

Nesse escopo, explica Gonçalves (2010, p. 64):

A diferença, portanto, entre a exigibilidade e a executoriedade está no meio coercitivo. Enquanto com a exigibilidade a Administração só pode se utilizar de meios indiretos de coerção (por exemplo: imposição de multa), na executoriedade, a Administração emprega meios diretos de coerção, compelindo materialmente o administrado a fazer alguma coisa, utilizando-se da força, inclusive, quando necessário. 

Destarte, afirma-se que a exigibilidade, por si só, não garante a possibilidade de utilização de mecanismos de coação material, faculdade que, conforme já aduzido, é própria da autoexecutoriedade. Ocorre que esta, turno, nem sempre se faz presente, haja vista que sua legitimidade encontra-se adstrita às hipóteses em que “a lei previr expressamente ou quando a necessidade for condição indispensável à eficaz garantia do interesse público confiado pela lei à Administração”. (GONÇALVES, 2010, p. 63)

No mesmo sentido, para Mazza (2018), apenas duas espécies de atos administrativos afiguram-se autoexecutáveis, é dizer: aqueles com tal atributo conferido por lei – como é o caso do fechamento de restaurante pela vigilância sanitária e da demolição de obras pelos órgãos ambientais –, bem como os atos praticados em situações emergenciais cuja execução imediata mostre-se indispensável para a preservação do interesse público, como na hipótese de dispersão de manifestação que acaba convertendo-se em ato de vandalismo.

Ainda sobre a temática das restrições impostas à autoexecutoriedade do Poder de Política, Souza e Fidalgo (2018, p. 361) retratam:

Nem todo ato de polícia, contudo, é autoexecutório. Veja-se o caso da multa: trata-se de uma possível penalidade imposta aos administrados que violarem as ordens de polícia. Ela é coercitiva, mas não autoexecutória. O administrado é obrigado a pagar a multa na data aprazada, mas, se não o fizer, a Administração Pública não pode simplesmente bloquear a sua conta corrente. Deve buscar o Poder Judiciário, através do ajuizamento de uma ação de execução fiscal, para poder obter a transferência do valor objeto da multa.

 Em arremate, de acordo com a doutrina majoritária, afirma-se que o atributo da autoexecutoriedade não está presente em todos os atos administrativos, mas somente quando a lei assim dispuser ou em situações de excepcional interesse público. Caso contrário, não resta outra alternativa ao Poder Público senão buscar o Judiciário para garantir o cumprimento de suas decisões. É o que se verifica da hipótese da cobrança de multa, em que, como já exposto, faz-se necessário o ajuizamento de ação de execução fiscal para que a Administração possa obter a efetiva transferência do valor objeto da multa. 

Sob outra perspectiva, mesmo quando a autoexecutoriedade encontra-se aprioristicamente autorizada, enquadrando-se em uma das duas situações retrocitadas, releva notar que o afastamento da finalidade pública pela autoridade administrativa conduzirá, inevitavelmente, à caracterização de desvio de poder, impondo-se o reconhecimento de nulidade do ato com todas as consequências nas esferas civil, penal e administrativa. (DI PIETRO, 2018)

Isso porque o exercício do Poder de Polícia não é um fim em si mesmo. Consoante bem acentuado por Moreira Neto (2014), as medidas de polícia – assim como todo e qualquer ato administrativo –, gozam de inequívoco caráter instrumental, na medida em que somente devem ser implementadas com vistas à persecução do interesse público. 

Expondo raciocínio semelhante, Oliveira (2017) destaca que a legitimidade da atuação de polícia depende do respeito ao ordenamento jurídico – aqui entendido como princípio da juridicidade –, de modo a contemplar não só a estrita observância à legalidade, mas também aos princípios da motivação, da ampla defesa e do contraditório, bem como da adequação, da proporcionalidade e da razoabilidade, exigindo bom senso e moderação na aplicação da autoexecutoriedade. 

É importante deixar claro, neste aspecto, que, a autoexecutoriedade dos atos administrativos em nada prejudica a possibilidade de controle pelo Poder Judiciário. O que se dispensa, na verdade, é tão somente a obrigatoriedade de autorização prévia. 

Sendo assim, na hipótese de revelar-se ilegal ou abusiva a ação estatal, o administrado poderá valer-se da utilização de todos os mecanismos judiciais postos à disposição, notadamente em razão do princípio da inafastabilidade da jurisdição. 

Nesse sentido, as lições de Celso Antônio Bandeira de Mello:

A executoriedade não deixa o administrado ao desabrigo de proteção jurídica, pois pode-se sempre recorrer ao Poder Judiciário tanto para impedir preventivamente sua utilização quanto para sustar a medida executória aplicada, sempre que o uso desta providência administrativa fira direitos dos ameaçados ou atingidos. (MELLO, 2009, p. 416)

Nesse contexto, como principais instrumentos de controle judicial da Administração Pública, destacam-se o habeas corpus e o habeas data, os mandados de segurança individual e coletivo, o mandado de injunção, além da ação popular, ação civil pública e ação de improbidade administrativa. (OLIVEIRA, 2017).

Ressalte-se, por oportuno, ser de extrema importância o controle judicial dos atos administrativos, porquanto consiste, em última análise, em poderoso instrumento de proteção do povo, que, na condição de titular do poder constituinte, é quem viabiliza a existência e a manutenção do Estado, gerindo e organizando os chamados poderes constituídos. (MENDES; BRANCO, 2017, p. 102). Isto é, trata-se o aludido controle de uma forma de se estabelecer a viabilidade sustentável da atividade estatal em prol do cidadão, sem a qual perderia sentido conceder-lhe autorização para a implementação do interesse público. (FRANÇA, 2018)

Destarte, sem ignorar as limitações impostas ao juiz na análise da conveniência e oportunidade das decisões administrativas discricionárias, em consonância com a ideia de tripartição de poderes, pode-se afirmar, com fulcro no princípio da sindicabilidade, que “todas as lesões ou ameaças a direito, no exercício da função administrativa, estão sujeitas a algum mecanismo de controle” (MAZZA, 2018, p. 144), permitindo ampla gerência da atuação da Administração Pública pelo Judiciário, especialmente nas hipóteses em que a ação estatal examinada reveste-se do atributo da autoexecutoriedade. 

Acrescente-se, a esse respeito, que a concepção de acesso à justiça costuma ser interpretada tão somente em prol dos administrados, com a finalidade precípua de conter eventuais abusos e ilegalidades levados a cabo pela Administração; constituindo, conforme já estudado, importante instrumento de garantia do Estado Democrático de Direito. 

Não obstante, não se pode olvidar a relevância do estudo da inafastabilidade da jurisdição também sob a ótica do Poder Público – enquanto sujeito regular de direitos –, notadamente quando as medidas implementadas com fundamento na autoexecutoriedade do Poder de Polícia não forem suficientes para o efetivo alcance da finalidade pública pretendida.

Exsurge-se, nesse ínterim, importante discussão acerca da existência, ou não, de interesse de agir do Poder Público em juízo frente à suficiência de poderes administrativos para o cumprimento integral de seus atos e decisões, independentemente da participação do Judiciário. É o caso das ações possessórias movidas pela Fazenda Pública para defender-se da ocupação irregular de área de pública, bem como das ações demolitórias propostas em face de edificação ilegal em faixa de domínio cujo embargo de construção tenha sido desrespeitado. 

Desse modo, cumpre verificar se a Administração goza de interesse de agir para tutelar em juízo medidas que poderia obter apenas com base no Poder de Polícia, sob a perspectiva da autoexecutoriedade. 

Observa-se, nesse panorama, diversas ações sendo extintas, sobretudo em primeiro grau de jurisdição, com fulcro na premissa de que o Poder Público carece de interesse processual para postular providência com finalidade idêntica à que se poderia implementar de forma autônoma, sem necessidade de intervenção judicial. O entendimento que vem sendo assentado no âmbito dos tribunais, em contrapartida, aponta para a impossibilidade de vedar à Administração o acesso ao Judiciário, por violar não só o princípio da inafastabilidade da jurisdição, mas também o do devido processo legal. 

Por oportuno, convém trazer à baila os seguintes excertos da ementa do REsp 1.651.622/SP, recém julgado pelo Superior Tribunal de Justiça, em que se confirma o entendimento ora expressado:

PROCESSUAL CIVIL. NUNCIAÇÃO DE OBRA NOVA. PROCEDÊNCIA DA AÇÃO. CONFIRMAÇÃO DO JULGADO DE PRIMEIRO GRAU PELO TRIBUNAL A QUO. INTERESSE DE AGIR. VERIFICAÇÃO. CERCEAMENTO DE DEFESA. JULGAMENTO ANTECIPADO DA CAUSA. SÚMULA 7 DO STJ. PARECER DO MINISTÉRIO PÚBLICO QUE CONFIRMA O ACÓRDÃO COMBATIDO. 1. Cuida-se de confirmação de sentença de primeiro grau, pelo Tribunal a quo, proferida nos autos de nunciação de obra nova ajuizada pela Prefeitura Municipal, em razão da realização de obra sem a apresentação de projeto arquitetônico no departamento competente, violando, portanto, a legislação local. 2. Verifica-se configurado o interesse de agir (art. 267, I, CPC), visto que a autoexecutoriedade afeita à pessoa política não retira desta a pretensão em valer-se de decisão judicial que lhe assegure a providência fática que almeja, pois nem sempre as medidas tomadas pela Administração no exercício do poder de polícia são suficientes. [...]5. Recurso Especial não provido.

Nessa esteira, com a clareza que lhe é peculiar, Márcio Cavalcante sintetiza: 

A autoexecutoriedade não retira da Administração Pública a possibilidade de valer-se de decisão judicial que lhe assegure a providência fática que almeja, pois nem sempre as medidas tomadas pelo Poder Público no exercício do poder de polícia são suficientes. (CAVALCANTE, 2019)

Sobressai-se, portanto, a orientação de que, embora seja a Administração dotada da prerrogativa de auto executar seus atos, tal fato – por si só –, não a impede de demandar a tutela jurisdicional pretendida. Sob o mesmo raciocínio, tampouco se pode condicionar o interesse de agir à exigência de que a Administração esgote todos os meios coercitivos e coativos para o adimplemento da obrigação.

É bem verdade, no entanto, que, seja qual for o desfecho, a questão não será bem solucionada se examinada de forma apriorística. É preciso que a verificação do aludido interesse processual seja norteada, no caso concreto, pela presença do binômio necessidade-adequação, com vistas à demonstração da efetiva utilidade da tutela postulada pelo ente público demandante. Nessa senda, segundo destaca Leonardo Gonçalves, “o provimento jurisdicional buscado deve ser uma medida necessária ao objetivo perseguido pela ação e essa deve ser adequada ao objetivo perseguido”. (GONÇALVES, 2010, p. 178)

Conclusão

Com o propósito de alcançar o principal objetivo a que se propôs o presente trabalho – qual seja: a análise dos limites e das condições para a legitimidade do atributo da autoexecutoriedade das manifestações de polícia estatal e as respectivas hipóteses de intervenção judicial –, foi necessário abordar os diversos conceitos doutrinários que permeiam o tema, bem como as nuances jurisprudenciais pertinentes à matéria. 

Desse modo, chegou-se, primeiramente, à conclusão de que a autoexecutoriedade afigura-se como importante instrumento destinado à efetivação da ação estatal, na medida em que autoriza a adoção de métodos de execução material das obrigações impostas aos administrados.

Convém explicitar, por relevante, que a presença de tal atributo não deve ser entendida como regra nas manifestações de polícia, somente se fazendo legítima diante de expressa previsão legal ou quando as particularidades do caso justificarem, sempre à luz do interesse público, por certo.

Constatou-se também que, mesmo nas hipóteses em que se mostra aprioristicamente autorizada, a legitimidade da atuação de polícia depende da conformidade com relação ao ordenamento jurídico, examinando-se este em sua completude, com destaque para os princípios da legalidade, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade e devido processo legal. 

Destarte, foi possível inferir que a autoexecutoriedade, tal como os demais atributos dos atos administrativos e todos os limites que os circundam, insere-se em um sistema em que a Constituição constitui o vértice, situando-se abaixo dela as demais espécies normativas. Contudo, a razão maior – não só do Texto Maior, mas do sistema como um todo –, deve ser a plena satisfação do interesse público. (GONÇALVES, 2010)

Nesse contexto, concluiu-se que os mecanismos diretos de coação apenas devem ser utilizados à míngua de outro meio mais brando igualmente eficaz, devendo ser, portanto, invalidados quando afigurarem-se desproporcionais ou excessivos em relação ao interesse tutelado.

A partir daí, passou-se a discutir sobre a sindicabilidade do ato administrativo e dos mecanismos judiciais postos à disposição dos administrados para o controle de eventuais abusos e ilegalidades do Poder Público, notadamente em razão do princípio da inafastabilidade da jurisdição.

Assim, chegou-se à conclusão de que todo ato administrativo está sujeito ao controle judicial, desde que respeitada a margem de discricionariedade conferida à Administração. 

Mas não é só. Verificou-se fundamental, ainda, a abordagem da inafastabilidade da jurisdição à luz do próprio interesse público

. Nesse ínterim, destacou-se a controvérsia acerca do interesse de agir da Fazenda Pública para buscar, judicialmente, a efetivação de medida que poderia ser imposta diretamente com base no atributo da autoexecutoriedade. Concluiu-se, daí, que compete ao Judiciário verificar, caso a caso, a utilidade da medida, por meio do binômio necessidade-adequação, bem como, por evidente, o embasamento jurídico do pedido, pois só́ assim estar-se-ia exercendo, de fato, as prerrogativas de um Estado Democrático de Direito.

REFERÊNCIAS

BRASIL. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988. Brasília, DF, out. 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>.  Acesso em: 05 mar. 2019.

BRASIL. LEI Nº 4.717, DE 29 DE JUNHO DE 1965. Brasília, DF, jun. 1965. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L4717.htm>. Acesso em: 08 mar. 2019.

BRASIL. LEI Nº 9.605, DE 12 DE FEVEREIRO DE 1998. Brasília, DF, fev. 1998. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9605.htm>. Acesso em: 05 mar. 2019.

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BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº. 1.651.622/SP. Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 28/03/2017. Disponível em:<http://www.stj.jus.br>. Acesso em: 10 mar. 2019.

CARVALHO, Matheus. Manual de Direito Administrativo. 4. ed. Salvador: Juspodivm, 2017.

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 31. ed. São Paulo: Atlas, 2017.

CAVALCANTE, Márcio André Lopes. A administração pública possui interesse de agir para tutelar em juízo atos em que ela poderia atuar com base em seu poder de polícia. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/2e2079d63348233d91cad1fa9b1361e9>. Acesso em: 10 mar. 2019.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 31. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018.

FRANÇA, Phillip Gil. O controle do ato administrativo e a jurisprudência do STF e do STJ. Empório do Direito, Florianópolis. Disponível em: <https://emporiododireito.com.br/leitura/o-controle-do-ato-administrativo-e-a-jurisprudencia-do-stf-e-do-stj>. Acesso em: 10 mar. 2019.

GONÇALVES, Leonardo de Melo. Limites da autoexecutoriedade do poder de polícia. 195 p. Dissertação (Mestrado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010.

JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

MAZZA, Alexandre. Manual de Direito Administrativo. 8. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.

MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2009.

MENDES; Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende de. Curso de Direito Administrativo. 5. ed. São Paulo: Método, 2017.

SOUZA, Jorge Munhós de; FIDALGO, Carolina Barros. Legislação Administrativa para concursos. 4. ed. Salvador: Juspodivm, 2018. 

Sobre o autor
Lia Coelho de Albuquerque

Graduaçao em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Especialização em Direito Processual pelo Centro Universitário 7 de Setembro (UNI7). Especialização em Direito Administrativo pela Universidade Cândido Mendes (UCAM).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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